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Parmênides e Heráclito – o ser imutável e o ser como movimento

2. IGUALDADE NA “REALIDADE REALMENTE REAL”

2.1. Parmênides e Heráclito – o ser imutável e o ser como movimento

as bases filosóficas da civilização ocidental. Convém destacar dois pré-socráticos neste momento – Parmênides e Heráclito – para opor suas ideias, fundacionais que foram de dois sistemas lógicos absolutamente essenciais. O primeiro, chamado de sistema de lógica formal, ou de analítica, clássica, ou ainda, aristotélica. O segundo, chamado de lógica dialética ou concreta120.

Para Parmênides, as coisas deste mundo que estão em movimento são irreais, a substância das coisas é de tal modo estável e perene que não se admite sequer o movimento, tanto mais a mudança. Por isso, as coisas deste mundo que estão em movimento, que nascem e morrem, não são uma realidade realmente real, elas são apenas uma doxa, uma mera aparência, e opinião dos homens, sob a qual não há um ser verdadeiro121.

Num poema do qual chegaram até nós numerosos fragmentos, Parmênides conta-nos uma viagem em busca da verdade, realizada por ele sob orientação da divindade. Ultrapassado o limiar da separação entre o domínio da luz e o das trevas, Parmênides aprende, diretamente da voz de uma "deusa" — identificada por alguns estudiosos como Mnemosine (a Memória) e por outros como Necessidade —, que há, em princípio, somente duas “vias”, quer dizer, duas possibilidades abertas ao pensamento, que consistem uma no pensar “que é (estin) e que não é possível que não seja”, outra no pensar “que não é (ouk estin) e que é necessário que não seja”. Imediatamente a deusa acrescenta que a primeira via é conforme à verdade, da qual devemos nos persuadir, ao passo que a segunda não pode ser percorrida porque “o não ser (to me

eon) não pode ser nem pensado nem dito”122

120 Usaremos tais expressões como sinônimas, sem prejuízo de anotações específicas de particularidades que possam se mostrar pontualmente úteis ou relevantes. Convém registrar, contudo, que nos manuais de lógica se oferecem classificações bastante mais extensas, complexas e historicamente detalhadas. Por todos, oferecemos como referência a obra de KELLER, Vicente; BASTOS, Cleverson Leite. Aprendendo lógica. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 15. Não sendo, porém, nosso objetivo o exame da lógica em si, mas apenas uma abordagem instrumental para compreender um dialogismo entre os modos de pensar analítico e dialético, desnecessário profundo rigor para além dos parâmetros de interesse.

121 LIMA, Carlos Cirne, 2015, p. 26.

122 BERTI, Enrico. No princípio era a maravilha: as grandes questões da filosofia antiga. Trad. Fernando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 60.

E ele vai além, sacrificando “todas as aparências, as múltiplas coisas deste mundo em que vivemos, no altar de uma racionalidade exacerbada, de um logos uno, único, imóvel e imutável, infinito. O que é, diz Parmênides, é. O que não é, não é. E o que não é não é nada, não significa nada e não faz nada. O não ser não existe, ele não pode ser nem mesmo pensado”123.

Paulo Ghiraldelli Junior concorda com essa construção:

Há uma forma didática interessante para se expor o essencial do poema de Parmênides:

1. Qualquer coisa de que se possa falar ou se possa pensar deve ser. 2. O nada não pode ser.

3. Então, o nada não pode ser falado nem pensado. 4. O que é não é o nada.

5. Então, o que não é não pode ser enunciado ou pensado. Podemos, então, falar em mudança? Ora, não podemos. Veja:

6. Podemos falar e pensar sobre o que muda somente se podemos falar ou pensar sobre o que não é.124

Seguindo a tônica de Parmênides, assim, o movimento, a mutabilidade, são refratários da verdade perene e constante, afinal, o movimento representa a passagem do ser para o não ser (perecer) ou a passagem do não ser para o ser (nascer), e é insensato pressupor a passagem de um não algo para algo, e vice-versa, de modo que nascer e desaparecer são movimentos da simples aparência, ilusões.

Para ele, em simbologia bastante conhecida, o ser é uno, perfeito e acabado, imóvel e imutável, como uma esfera pela qual percorre o dedo do observador e não encontra princípio, fim, ou qualquer fissura de irrupção a perturbar a unidade essencial.

Segundo, ainda, Parmênides, “não é correto [...] falar de ‘regiões do ser’, porque o ser é a única realidade existente, homogênea, indivisível, toda igual em cada uma de suas partes”125.

Os que o sucederam (precedendo, porém, a Platão), continuaram com a ideia da imutabilidade do ser,

123 LIMA, Carlos Cirne, 2015, op. cit. p. 26.

124GHIRALDELLI JUNIOR, Paulo. A aventura da filosofia – de Parmênides a Nietzsche. Barueri, SP:

Manole, 2010, p. 20.

[...] sublinhando sua unidade e sua imutabilidade (Zenão) ou atribuindo-lhe um caráter material (Melisso); ou romperam a unidade do ser, conservando, no entanto, a homogeneidade de suas partes, fossem elas os quatro elementos (Empédocles), as sementes de todas as coisas (Anaxágoras) ou os átomos (Leucipo e Demócrito).126

Já Heráclito desenvolve uma ideia bastante diferente da de Parmênides.

Suas ponderações envolvem a observação do mundo concreto, da natureza em que estava inserido (physis), na qual ele percebe a mudança, um permanente estado de movimento e transformação de todas as coisas – Panta Rei – tudo flui.

A realidade não é apenas Ser, ela não é, por igual, apenas Não Ser. A realidade realmente real é uma tensão que liga e concilia Ser e Não Ser. Aparece aqui, pela primeira vez na História da Filosofia, a Dialética. Ser e Não Ser, tese e antítese são conciliados, num plano mais alto, através de uma síntese. Ser e Não Ser, que, à primeira vista, se opõem e se excluem, na realidade realmente real constituem uma unidade sintética, que é o Ser em Movimento, o Devir. No Devir existe um elemento que é o Ser, mas existe por igual um outro elemento igualmente essencial que é o Não Ser. Ser e Não Ser, bem misturados, não mais se repelem e se excluem, mas entram em amálgama e se fundem para constituir uma nova realidade.

Temos aí, já em Heráclito, os traços fundamentais da Dialética. Numa primeira etapa, temos dois polos contrários que se excluem mutuamente. Tese e antítese se contrapõem, uma contra a outra, uma excluindo a outra. Nesta primeira etapa, um polo anula e liquida o outro, sendo eles excludentes. Só que a coisa não para aí. Há um movimento, há um desenvolvimento, há um progresso. E então, nesta segunda etapa, num patamar mais alto, uma nova unidade.127

A figuração exemplificativa aqui não é mais a da esfera, mas a da lira.

O instrumento musical, espécie de versão simplificada da harpa, é construído ao se tensionar uma peça de madeira até que se vergue em formato de arco. Nas duas extremidades do arco, prendem-se as pontas de um fio; e do fio que mantém o arco tensionado à base curva do próprio arco, outras cordas paralelas.

A abstração que se quer promover com o exemplo da lira é a de que as peças que formam o instrumento permanecem e estado de permanente disputa, o arco de madeira quer voltar ao seu estado de repouso, reto, enquanto que o cordão que o mantém vergado opõe tensão que não pode vacilar, sob pena de destruir o instrumento. O arco quer rebentar a corda, e a corda quer vergar o arco128.

126 BERTI, Enrico, 2010, op. cit., p. 59. 127 LIMA, Carlos Cirne, 2015, p. 28-29. 128 Ibid., p. 29.

Dessa tensão permanente, põem-se em suspenso as particularidades de cada peça, que permanecem ainda ali ainda substanciais e íntegras, mas em interação dialética sublimam-se, passam a um conjunto maior, completamente novo – a lira. Da soma da tese do arco com a antítese do fio, nasce a síntese da lira, extraordinária em sua complexidade mais nobre e mais elevada, capaz de promover a música que, sozinhas, madeira e fio não podiam.

Hegel empregará, séculos adiante, uma expressão em alemão para explicar essa interação entre as forças subjacentes a tese e antítese – aufheben

um verbo que significa suspender. Mas esse suspender tem três sentidos diferentes. O primeiro sentido é o de negar, anular, cancelar (como ocorre, por exemplo, quando suspendemos um passeio por causa do mau tempo, ou quando um estudante é suspenso das aulas e não pode comparecer à escola durante algum tempo). O segundo sentido é o de erguer alguma coisa e mantê-la erguida para protegê-la (como a gente vê, por exemplo, num poema de Manuel Bandeira, quando o poeta fala do quarto onde morou há muitos anos e diz que ele foi preservado porque ficou “intacto, suspenso no ar”). E o terceiro sentido é o de elevar a qualidade, promover a passagem de alguma coisa para um plano superior, suspender o nível. Pois bem: Hegel emprega a palavra com os três sentidos diferentes ao mesmo tempo. Para ele, a superação

dialética é simultaneamente a negação de uma determinada realidade,

a conservação de algo de essencial que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível superior.129

Eis alguns dos fragmentos de Heráclito: “o contrário é convergente e dos divergentes a mais bela harmonia”130; “conjunções: completas e não completas, convergente e divergente, consoante e dissonante, e de todas as coisas um e de um todas as coisas”131. E talvez os mais importantes e conhecidos: “nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”; “não é possível entrar duas vezes no mesmo rio”132. O sentido é claro: o rio é aparentemente sempre o mesmo, mas na

realidade é feito de águas sempre novas, que se acrescentam e se

dispersam; por isso, à mesma água do rio não se pode descer duas vezes, justamente porque, quando se desce a segunda vez, já é outra a água que se encontra; e porque nós mesmos mudamos, no momento em que completamos a imersão no rio, tornamo-nos diferentes do momento em que nos movemos para mergulhar, como sempre diferentes são as águas que nos banham: assim Heráclito pode dizer, do seu ponto de vista, que entramos e não entramos no rio. E pode também dizer que somos e não somos, porque, para ser o que somos em dado momento, devemos não ser mais aquilo que éramos no precedente momento, assim como, para

129 KONDER, Leandro. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 25.

130 HERÁCLITO, de Éfeso. Fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários Alexandre Costa. São Paulo: Odysseus Editora, 2012, p. 129. Fragmento 6.

131 Ibid., p. 133. Fragmento 22. 132 Ibid., p. 141. Fragmentos 49 e 50.

continuar a ser, devemos logo não ser mais aquilo que somos neste momento. E isso vale, segundo Heráclito, para todas as coisas, sem exceção.133

Implica, tal forma de pensar, que o movimento é o que justifica e conforma a

physis, a natureza, e somente essa é a realidade realmente real, e “a única imutabilidade

é a da perpétua mudança”134, e tudo está “sujeito a um desvanecimento e um constante

vir a ser [...] nada é, tudo flui”135. “Guiado por essa ideia, [Heráclito] concluiu que essa mudança universal talvez fosse mais que uma simples realidade das coisas, que talvez fosse o mais importante, o fundo a própria existência das coisas”136.

Formam-se, pois, duas grandes correntes escolásticas, uma, de Parmênides, fixista, da imutabilidade das coisas que são, onde o movimento é mera aparência, e o essencial se preserva inerte; a outra, de Heráclito, que trata o movimento como sendo da essência das coisas, e o mundo como um perpétuo “jogo dos opostos”137, influxo de equilibrar forças e convertê-las em coisas novas.

Eis pois o nosso dilema fundamental: as coisas são o que são, como são, em sua essencialidade imutável; ou, contrariamente, apenas estão, pois o ser é permanente mudança e transformação?

Troquemos “coisas” e “o ser” por “trabalhadores”, e a frase fica: os trabalhadores são o que são, como são, em sua essencialidade imutável; ou, contrariamente, apenas estão, pois o trabalhador é permanente mudança e transformação?

Antecipamos nossa resposta: as duas ponderações parecem corretas em dada medida. Pessoas e coisas, em sua ontologia, possuem algo de essencial, traços que determinam característica mais profundas, intrínsecas, e muito pouco sujeitas a mutações. De outro lado, porém, imaginá-las idealisticamente138, como categorias universais, ou como formas (na esteira do conceito de Aristóteles, do qual falaremos mais adiante) fixas e imutáveis, também é demasiado rígido e desproporcional. Entra em cena, aí, a

133 REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Trad. Marcelo Perine. Vol. 1. São Paulo: Loyola, 1993, p. 64.

134 GHIRALDELLI JUNIOR, Paulo, 2010, p. 20.

135 GONÇALVES, William Couto. Gênese dos direitos humanos na antiga filosofia grega. Rio de Janeiro: Editora Lumen Iuris, 2007, p. 65.

136 BERGSON, Henri. Cursos sobre a filosofia grega. Trad. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 200.

137 LIMA, Carlos Cirne, 2015.

138 Com Henri Lefebvre, “chamaremos de ‘idealistas’, por definição, as doutrinas que elevam ao absoluto uma parte do adquirido, fazendo de tal parte uma ideia ou um pensamento misterioso que, segundo eles, existem antes da natureza e do homem real”. (LEFEBVRE, Henri, 1979, p. 53).

possibilidade de mudança, de evolução, e a força da dialética que as supera, fazendo de coisas e pessoas novos seres.

Para provar esse ponto de vista, é importante visitarmos ainda uma outra oposição importante na filosofia grega, agora entre Platão e Aristóteles.

2.2. Platão e Aristóteles – duas ontologias distintas