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Princípios e axiologia do Direito

1. PREMISSAS EPISTEMOLÓGICAS

1.2. Princípios de Direito

1.2.1. Princípios e axiologia do Direito

Começamos com essa última característica – a axiologia nos princípios – porque isso colaborará na fixação de um importante paradigma filosófico com que se deseja manejar todo o trabalho – o pós-positivismo.

Nessa diretriz, dizer da importância do sistema de valores imbricados com o Direito é falar muito sobre o paradigma filosófico com que se opera. Podemos dizer até mesmo – com Ronald Dworkin – ser crucial perceber que “os problemas de teoria do direito são, no fundo, problemas relativos a princípios morais e não a estratégias ou fatos jurídicos”38.

Seguindo-o de perto, Robert Alexy afirma que o principal problema na definição do que vem a ser o Direito é a sua relação com a Moral. De fato, “apesar de uma discussão de mais de dois mil anos, duas posições fundamentais continuam se contrapondo: a positivista e a não positivista”39 ou como mais comumente é conhecida, jusnaturalista.

Essas duas grandes correntes teóricas apontam para definições opostas do Direito, quando em conjunção o papel da Moral nas suas formação e desenvolvimento. Trata-se, em suma, de um debate de ideias quanto ao papel da Moral como legitimadora ou não do Direito.

Norberto Bobbio chega a afirmar que as duas escolas estão em posição de perpétua guerra, tendendo cada uma à eliminação da outra40.

As teorias positivistas partem de uma cisão entre Direito e Moral. Afirmam que o Direito é posto pelo Estado, de modo independente, desconectado das premissas do bem viver comunitário que definem o mundo ético. Já entre os jusnaturalistas, a ideia base do sistema é a justiça enquanto valor supremo, metafísico, fundante de um sistema pressuposto e/ou superposto ao Direito.

Bastante elucidativa, conquanto sintética, é a construção de André Araújo Molina41 a respeito dessa oposição entre as teorias:

38 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 12

39 ALEXY, Robert. Conceito e Validade do Direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 3. 40 BOBBIO, Norberto. Jusnaturalismo e positivismo jurídico. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2016b, p. 99.

Enquanto para um jusnaturalistas tem ou deveria ter valor de comando só o que é justo, para a doutrina oposta é justo só o que é comandado e pelo fato de ser comandado. Para um jusnaturalista, uma norma não é válida se não é justa; para a teoria positivista, uma norma é justa somente se for válida. Para uns a justiça é a confirmação da validade, para outros, a validade é a confirmação da justiça.

Norberto Bobbio cita Gustav Radbruch42 para exemplificar um recente defensor dos teóricos jusnaturalistas, e com ele identificar o papel da justiça na decantação da legitimidade das normas jurídicas:

Quando uma lei nega conscientemente a vontade da justiça, por exemplo concede arbitrariamente ou refuta os direitos do homem, carece de validade [...] até mesmo os juristas devem encontrar coragem para refutar-lhe o caráter jurídico

[...]

Pode haver leis com tal medida de injustiça e de prejuízo social que seja necessário refutar-lhes o caráter jurídico [...] tanto há princípios jurídicos fundamentais mais fortes que toda normatividade jurídica, que uma lei que os contrarie carece de validade;

[...]

Onde a justiça não é nem mesmo perseguida, onde a igualdade, que constitui o núcleo da justiça, é conscientemente negada em nome do direito positivo, a lei não somente é direito injusto como carece em geral de juridicidade.

Fica clara, nessas transcrições, a noção de sobreposição da justiça, enquanto valor plasmado pela moral, sobre o sistema do direito positivo, estatalizado.

Os opositores, positivistas, fazem críticas relevantes a essa linha de condução. Kelsen, por exemplo, prega o descolamento entre moral (e com ela a justiça) do direito positivo, na medida em que uma tal coincidência exigiria uma moral perpétua, o que considera – a nosso sentir com acerto – inviável:

Quando se entende a questão das relações entre o Direito e a Moral como uma questão acerca do conteúdo do Direito e não como uma questão acerca da sua forma, quando se afirma que o Direito por sua própria essência tem um conteúdo moral ou constitui um valor moral, com isso afirma-se que o Direito vale no domínio da Moral, que o Direito é uma parte constitutiva da ordem moral, que o Direito é moral e, portanto, é por essência justo. Na medida em que uma tal tese vise uma justificação do Direito — e é este o seu sentido próprio —, tem de pressupor que apenas uma Moral que é a única válida, ou seja, uma Moral absoluta, fornece um valor moral absoluto e que só as normas que correspondam a esta Moral absoluta e, portanto, constituam o valor moral absoluto, podem ser consideradas “Direito”. Quer dizer: parte-se

42 RADBRUCH, Gustav. Rechtsphilosopie. 4. ed. Stutgart: Koehler, 1950, p. 336-353. In: BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 6. ed. São Paulo: EDIPRO, 2016a, p. 55.

de uma definição do Direito que o determina como parte da Moral, que identifica Direito e Justiça.

[...]

Em vista, porém, da grande diversidade daquilo que os homens efetivamente consideram como bom e mau, justo e injusto, em diferentes épocas e nos diferentes lugares, não se pode determinar qualquer elemento comum aos conteúdos das diferentes ordens morais. [...]

E, mesmo que se pudesse determinar um elemento comum a todos os sistemas morais até aqui vigentes, ainda assim não haveria razão suficiente para não considerar como “moral” ou “justa” e, portanto, para não considerar como Direito, uma ordem de coação que não contivesse aquele elemento e prescrevesse uma conduta que ainda não tivesse sido considerada em qualquer comunidade, como boa ou justa, ou proibisse uma conduta que ainda não tivesse sido considerada em qualquer comunidade como má ou injusta. Com efeito, quando se não pressupõe qualquer a priori como dado, isto é, quando se não pressupõe qualquer valor moral absoluto, não se tem qualquer possibilidade de determinar o que é que tem de ser havido, em todas as circunstâncias, por bom e mau, justo e injusto.43

O professor de Viena, por conclusão, pontua que a única concentricidade entre Direito e Moral está na forma, vez que ambos se projetam por meio de normas deontológicas do comportamento humano, nunca quanto ao conteúdo das regras postas por um e outro.

À mesma conclusão parece chegar também Norberto Bobbio, ao apontar inconsistências nas vertentes jusnaturalistas:

Em uma só hipótese poderíamos aceitar reconhecer como direito unicamente o que é justo, se a justiça fosse uma verdade evidente ou pelo menos demonstrável como uma verdade matemática, de modo que nenhum homem pudesse ter dúvidas sobre o que é justo ou injusto. E essa, na realidade, sempre foi a pretensão do jusnaturalismo nas suas várias fases históricas.44

Uma outra crítica desse mesmo autor também é digna de nota. Segundo Bobbio, para que uma doutrina possa ser definida como jusnaturalista, é necessária a presença conjunta de duas afirmações: “uma parte das regras de conduta da sociedade não é obra do homem histórico, (historicamente condicionado); a parte dessas regras naturais, por maior ou menor que seja, está situada em um plano axiologicamente superior àquela composta pelas regras positivas”45.

43 KELSEN, Hans, 2009, p. 72-73. 44 BOBBIO, Norberto, 2016a, p. 55. 45 Ibid., p. 223.

Por isso, conclui que esse claro no conteúdo axiológico pode ser preenchido por qualquer coisa, da vontade transcendental e suprema de um ente sobrenatural, até a pura racionalidade humana, desde que possam ser tidas como justas.

Consideramos, por isso, essa lógica “perfeitamente indiferente no que diz respeito aos possíveis conteúdos com os quais pode ser preenchido”46, convertendo-se, assim, num flerte permanente e perigoso com algo sempre maior e mais valoroso do que o próprio sujeito que pensa ou destinatário da norma; e com potência para sublimar a intersubjetividade comunitária de que se fará senhor.

Pode-se pensar, por conjectura, em um sistema jurídico jusnaturalista que, legitimado por um ideário divinal de dominação masculina, constitui juridicamente uma comunidade sexista e patriarcal, repressiva e segregadora dos direitos de crianças e mulheres. Afinal, seria essa a justiça de deus.

Feitas essas críticas em relação ao jusnaturalismo, é coerência inevitável, por outo lado, enxergar que o positivismo também deixou marcas tristes e indeléveis na história recente da humanidade.

Segundo André Araújo Molina:

O “pecado original” do positivismo normativista foi o desprendimento incisivo da moral – da justiça e do Direito natural como consequência –, daí por que foi teoria fértil para que sementes totalitárias fossem plantadas. O regime nazista que perseguiu Kelsen, utilizou de vários expedientes positivistas para justificar as suas atitudes pela legislação. A violação praticada contra a dignidade humana durante a Segunda Guerra Mundial, cujas arbitrariedades estavam previstas no sistema legal, despertaram críticas ao juspositivismo, apontando para a necessidade de uma reaproximação do Direito à Moral.47

Resta que, de um lado, tem-se uma corrente que pensa o direito totalmente em função dos valores. Qualquer valor, desde que se o possa traduzir sob a forma de uma justiça transcendental, naturalmente óbvia, e por isso mesmo suprapositiva. De outro lado, outra corrente afirma que o Direito está alijado de valores, e não é justiça senão aquilo que a norma positiva diz sê-lo. Pouco importa o conteúdo, desde que a norma veiculada respeite as formalidades exigidas pelo sistema para ser tida como positivada.

46 BOBBIO, Norberto, 2016a, p. 223 47 MOLINA, André Araújo, 2013, p. 22-23.

É um embate entre o formalismo exacerbado, que admite a “injustiça legislada”48, e o conteudismo de um justo absolutamente desparametrado, subjetivo e, por isso mesmo, incontrolável.

Sendo assim, “resultado é que os dois direitos aparentemente entraram num ‘beco sem saída’”49.

O pós-positivismo surge, então, como modelo filosófico que permite aproveitar o melhor do positivismo, enquanto cristalizador da certeza metodológica, da segurança pela forma, e ainda assim, garantir que a moralidade insufle nos pulmões do sistema normativo valores substancialmente relevantes para a condução dos comportamentos humanos numa dada comunidade historicamente contextualizada.

É nesse novo paradigma que se ultrapassa o positivismo normativista, exegético. O aplicador deixa de ser a mera boca da lei, mas não se abandona o formalismo que traduz certeza e segurança para o sistema. Supera-se o positivismo, assim, dialeticamente: a relação primazia da forma versus primazia do conteúdo ganha uma síntese em que algo de conteúdo minimamente ético há de haver no ordenamento, de modo que a Moral, por assim dizer, contamina o conteúdo do Direito, mas este não se deixa dominar por conteúdos supostamente transcendentais, em detrimento de um fundamental nível de previsibilidade e antecipação para o cidadão.

Nesse quadro ideológico, os princípios funcionam como espécies de normas jurídicas, e por isso mesmo, fazem parte do sistema do Direito. Por meio deles, garante- se uma porta aberta, e de acesso controlável, para a entrada dos valores éticos no regime jurídico-positivo.

A frase de André Araújo Molina parece melhor que a nossa: “[...] a Moral interpenetra no Direito por meio dos princípios, colhidos no direito positivo, principalmente na forma de direitos fundamentais. Os princípios, enfim, não são induzidos da Moral, mas são construídos a partir do direito positivo”50.

Na prática, porém, não convém a este trabalho – já marcamos posição clara quanto ao fato de que os princípios, de forma geral, nos interessam enquanto ferramenta de

48 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 124. Vê- se também expressão parônima (“injustiça legal”) em ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 6, por exemplo.

49 Ibid., p. 124.

estudo, e não enquanto objeto de estudo – saber se a primazia deve ser garantida à Moral ou ao Direito, ou se primeiro os valores aos princípios, ou vice-versa.

Interessa-nos, sobretudo, a umbilical e indissociável ligação entre os valores e os princípios; convém ao estudo “[...] compreender que a atribuição do qualificativo

princípios ou regras a determinadas espécies normativas depende, antes de tudo, de

conexões axiológicas que não estão prontas antes do processo de interpretação que as desvela”51.

Talvez por isso, Paulo Bonavides chame os princípios de “normas-valores”, “com positividade maior nas Constituições do que nos Códigos; e por isso mesmo providos, nos sistemas jurídicos, do mais alto peso, por constituírem a norma de eficácia suprema. Essa norma não pode deixar de ser o princípio”52.

Eros Roberto Grau53 elucida que os valores penetram o nível do jurídico, na Constituição, quando contemplados em princípios, sejam eles implícitos ou explícitos.

De algum modo vê-se reverberada essa ponderação também em Carmen Lúcia Antunes Rocha, quando esta afirma que “dotados de originalidade e superioridade material sobre todos os conteúdos que formam o ordenamento constitucional, os valores firmados pela sociedade são transformados pelo Direito em princípios”54.

Nesse mesmo terreno parece enraizado também o pensamento de Walter Claudius Rothenburg, ao dizer que:

Os princípios, portadores dos mais altos valores que uma dada sociedade resolve transformar em preceitos jurídicos, revelam as ‘decisões políticas fundamentais’ (Carl Schmitt), tendo, portanto, uma iniludível carga ideológica, que deve ser assumida e prestigiada ou criticada. Impossível a assepsia por meio de princípios ‘neutros’55.

Em Celso Ribeiro Bastos encontramos ainda:

As Constituições são tributárias de um conjunto de opções axiológicas. Não há constituição neutra. Diante dos plúrimos valores que o mundo encerra, tem ela de encampar um ou mais deles. Não nos será possível,

51 ÁVILA, Humberto, 2016, p. 47. 52 BONAVIDES, Paulo, 2008, p. 276.

53 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988 – interpretação e crítica. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 161.

54 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 23.

55 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 77.

contudo, visualizar essa realidade através de uma “lupa jurídica” que nos demonstrasse perfeitamente como esses valores entram na Constituição. Nem tampouco poder-se-á sustentar que se trata de um “subproduto inconsciente” de quem elaborou a Constituição. Isso porque, embora estejam os valores, na maior parte dos casos, consignados expressamente nas normas constitucionais, muitos outros haverá que, não obstante a falta de declaração explícita, se revelam e se impõem a partir de um amplo conjunto de normas que os dão por pressupostos.56

Há uma série de outros autores postulando nessa mesma diretriz. Por todos, usamos como conclusão57 a frase que abre o primeiro capítulo do livro de Augusto Cesar Leite de Carvalho sobre o tema dos princípios no Direito do Trabalho: “os princípios jurídicos, como tantos o disseram, enunciam valores que encerram compromissos legitimamente assumidos, na seara política, com vistas à harmonização do tecido social”58.

1.2.2. Princípios como parte do sistema do Direito e modalizadores