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Princípios como construção intersubjetiva dos intérpretes

1. PREMISSAS EPISTEMOLÓGICAS

1.2. Princípios de Direito

1.2.3. Princípios como construção intersubjetiva dos intérpretes

apesar de encerrarem importantes aspectos valorativos, e de serem unidades normativas do direito positivo, não se encontram nestes como dados prontos e acabados. Ao contrário, são o produto da construção do intérprete, que tomam como base os suportes físicos, estes sim, objetivamente colocados na redação do ordenamento.

Com essa ideia, retomamos a premissa debatida ao longo do primeiro item desta dissertação – o direito positivo é composto por textos, por dispositivos legais; as normas jurídicas, em sentido estrito, por outro lado, são produto da interpretação que desses suportes textuais se pode fazer. Retomamos a ideia de construtivismo.

Do ponto de vista da semiótica, qualquer signo comunicacional é composto por três dimensões. A primeira composta por um substrato material, físico, como as marcas de tinta no papel ou as ondas sonoras que nos trazem a fala aos ouvidos. A segunda, uma dimensão ideal que se constrói na mente do intérprete, chamada de significação. É ela o produto da elaboração cognitiva para aquele a quem uma mensagem é entregue eficazmente. A terceira e última dimensão do signo é chamada significado, é a dimensão

90 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, 2003, p. 1173-1175.

propriamente referencial, que procura conectar semanticamente o signo a alguma coisa; ao objeto de que se fala.

Se dissermos, pois, que “isso é um gato”92, o suporte físico da mensagem encontra-se no som, ou mais precisamente nas ondas sonoras transmitidas pelo ar.

A segunda dimensão – a que mais nos interessa na construção da norma jurídica – é a significação, que nesse exemplo pode ser, para um primeiro sujeito, o animal doméstico de pequeno porte da classe dos felinos. Para um outro ouvinte, porém, o gato remete à ideia de um homem de belíssima aparência e porte físico. Para outro ainda, ainda, o gato é a ligação elétrica clandestina em um imóvel irregular.

Por fim, a dimensão referencial será, mantendo a ordem exemplada a pouco, este específico animal que ora aponto, o gatinho Mingau da Magali; aquele específico rapaz com quem namora minha irmã; ou ainda este emaranhado ininteligível de fios em um poste, que improvisa, ilegalmente, a entrega de energia para uma casa.

A percepção dessas dimensões da linguagem, necessariamente simbólica, nos capacita a perceber que

Tudo a que se tem acesso [no direito positivo] são palavras, um conjunto de signos devidamente estruturados na forma de textos e todo o esforço do destinatário volta-se para a construção do sentido destas palavras, para a decodificação do código e compreensão da mensagem legislada.

Ao conjunto estruturado de signos pelo qual se viabiliza a comunicação, dá-se o nome de linguagem (língua + fala). Daí a afirmação segundo a qual o direito positivo se manifesta em linguagem. Fisicamente ele se apresenta na forma idiomática escrita, é composto por signos arbitrariamente construídos e aceitos por convenções linguísticas (símbolos). Este é o seu dado empírico, por isso qualquer estudo jurídico que se pretenda tem como ponto de partida e de retorno a linguagem.

Para sabermos, por exemplo, que regras jurídicas disciplinam as relações familiares, a compra e venda de bens, a constituição de uma sociedade, a contratação de funcionários, etc., temos que nos dirigir aos Códigos Civil, Comercial e à Consolidação de Leis Trabalhistas. E o que encontramos nos Códigos, e nas Leis senão um aglomerado de palavras gravadas num papel? Tudo a que temos acesso, na nossa experiência sensorial com o direito positivo, são palavras estruturadas em frases e sistematizadas na forma de textos. Assim sendo, o trato com o direito positivo sempre nos conduz ao manejo de textos93.

92 Os mesmos exemplos são trabalhados em outros torneios também por CARVALHO, Aurora Tomazini de, 2016, p. 175 e ss.

O direito cristaliza o único aspecto objetivo com que o intérprete labora na construção de sentidos. Pelo regular processo legislativo dá-se apenas o suporte físico – a primeira dimensão dos símbolos jurídicos – com que o intérprete fará suas construções. Disso a diante, o trabalho é eminentemente humano, subjetivo e significativo.

Paulo de Barros Carvalho explica a essencialidade da interpretação como ato humano ao falar da incidência da norma jurídica:

[...] é importante dizer que não se dará a incidência se não houver um ser humano fazendo a subsunção e promovendo a implicação que o preceito normativo determina. As normas não incidem por força própria. Numa visão antropocêntrica, requerem o homem, como elemento intercalar, movimentando as estruturas do direito, extraindo de normas gerais e abstratas outras gerais e abstratas ou individuais e concretas e, com isso, imprimindo positividade ao sistema, quer dizer, impulsionando-o das normas superiores às regras de inferior hierarquia, até atingir o nível máximo de motivação das consciências e, dessa forma, tentando mexer na direção axiológica do comportamento intersubjetivo: quando a norma terminal fere a conduta, então o direito se realiza, cumprindo seu objetivo primordial, qual seja, regular os procedimentos interpessoais, para que se torne possível a vida em sociedade, já que a função do direito é realizar-se, não podendo ser direito o que não é realizável [...]. E essa participação humana no processo de positivação da normativa se faz também com a linguagem, que certifica os acontecimentos factuais e expede novos comandos normativos [...]94.

Tal pensamento também se evidencia em Eros Roberto Grau:

Em síntese: a interpretação do direito tem caráter constitutivo — não, pois, meramente declaratório — e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, de normas jurídicas a serem ponderadas para a solução desse caso, mediante a definição de uma norma de decisão. Interpretar/aplicar é dar concreção [= concretizar] ao direito. Neste sentido, a interpretação/aplicação opera a inserção do direito na realidade; opera a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção na vida. A interpretação/aplicação vai do universal ao particular, do transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [= do direito] no mundo do ser [= mundo da vida]. Como ela se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do texto. Interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o particular.95

94 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 33-34.

Isso parece visível também naquilo que Paulo Bonavides, visitando a obra de Vezio Crisafulli, chama de “dupla eficácia” dos princípios, entrevendo uma eficácia imediata e outra mediata. A primeira, dá aos princípios o caráter de norma jurídica, de regulação dos comportamentos humanos; a segunda, mediata, como programa normativo, ou seja, como diretriz interpretativa que aponta para a construção de sentidos das demais normas96.

Tal raciocínio se alinha, de todo, com a lição de Canotilho. A densificação das normas principiológicas se dá tanto mais estas se aproximam da realidade humana concreta. Em palavras suas, “[...] o processo de concretização constitucional assenta, em larga medida, nas densificações dos princípios e regras constitucionais feitas pelo legislador (concretização legislativa) e pelos órgãos de aplicação do direito, designadamente, os tribunais (concretização judicial), a problemas concretos” 97.

Mas mesmo o princípio construído como regra de comportamento, com eficácia imediata, garante-se como produto de construção, não como algo pronto, dado de forma acabada, e pelo intérprete apenas percebido na simples leitura do texto legal.

Percebe-se nesse raciocínio uma “manifesta confusão entre dispositivo e norma e uma evidente transposição de atributos dos enunciados formulados pelo legislador para os enunciados formulados pelo intérprete”98, como bem recobra Humberto Ávila. E a continuação de seu raciocínio merece transcrição integral:

[...] mesmo que determinado dispositivo tenha sido formulado de modo hipotético pelo Poder Legislativo, isso não significa que não possa ser havido pelo intérprete como um princípio. A relação entre as normas constitucionais e os fins e os valores para cuja realização elas servem de instrumento não está concluída antes da interpretação, nem incorporada ao próprio texto constitucional antes da interpretação. Essa relação deve ser, nos limites textuais e contextuais, coerentemente construída pelo próprio intérprete. Por isso, não é correio afirmar que um dispositivo constitucional contém ou é um princípio ou uma regra, ou que determinado dispositivo, porque formulado dessa ou daquela maneira, deve ser considerado como um princípio ou como uma regra. Como o intérprete tem a função de medir e especificar a intensidade da relação entre o dispositivo interpretado e os fins e valores que lhe são, potencial e axiologicamente, sobrejacentes, ele pode fazer a interpretação jurídica de um dispositivo hipoteticamente formulado como regra ou como princípio. Tudo depende das conexões valorativas que, por meio da argumentação, o intérprete intensifica ou deixa de intensificar e da finalidade que entende deva ser alcançada. Para tanto,

96 CRISAFULLI, Vezio, p. 91. In: BONAVIDES, Paulo, 2008, p. 272. 97 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, 2003, p. 1183.

basta a simples conferência de alguns exemplos de dispositivos formulados hipoteticamente que ora assumem a feição de regras, ora a de princípios.

O dispositivo constitucional segundo o qual se houver instituição ou aumento de tributo, então a instituição ou aumento deve ser veiculado por lei, é aplicado como regra se o aplicador, visualizando o aspecto imediatamente comportamental, entendê-lo como mera exigência de lei em sentido formal para a validade da criação ou aumento de tributos: da mesma forma, pode ser aplicado como princípio se o aplicador, desvinculando-se do comportamento a ser seguido no processo legislativo, enfocar o aspecto teleológico, e concretizá-lo como instrumento de realização do valor liberdade para permitir o planejamento tributário e para proibir a tributação por meio de analogia, e como meio de realização do valor segurança, para garantir a previsibilidade pela determinação legal dos elementos da obrigação tributária e proibir a edição de regulamentos que ultrapassem os limites legalmente traçados.99

Em virtude de toda a justificação feita ao longo do primeiro tópico deste trabalho, demonstrado está o valor da construção de sentido por meio da linguagem intersubjetivamente controlada.

Por conclusão, assim, identificamos que os princípios a) fazem parte do sistema do direito positivo; b) assim como as demais unidades do sistema, são modalizadores do comportamento humano intersubjetivo, espécies de regras; c) são construídos, intersubjetivamente, pelos intérpretes, à partir dos mesmos índices prescritivos contidos no próprio sistema; e d) são impregnados por uma elevada carga axiológica.