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Proximidades e distanciamentos

1. PREMISSAS EPISTEMOLÓGICAS

1.3. Princípios e regras

1.3.1. Proximidades e distanciamentos

Há, na doutrina, muitos conceitos controversos afastando e aproximando princípios e regras jurídicas. Não temos pretensão de resolver tais dissensões. Basta fazer um apanhado geral das teorias mais aceitas na atualidade, e aparatar o leitor para a escolha da que entender mais apropriada.

Sem dúvida, em matéria de princípios, os autores mais referenciados na atualidade são Robert Alexy e Ronald Dworkin.

Para o primeiro:

Princípios são mandamentos de otimização. Como tais, são normas que ordenam que algo seja realizado em máxima medida relativamente às possibilidades reais e jurídicas. Isso significa que elas podem ser realizadas em diferentes graus e que a medida exigida de sua realização depende não somente das possibilidades reais, mas também das possibilidades jurídicas. As possibilidades jurídicas da realização de um princípio são determinadas não só por regras, como também, essencialmente, por princípios opostos. Isso implica que os princípios sejam suscetíveis e carentes de ponderação. A ponderação é a forma característica da aplicação dos princípios.100

Em Ronald Dworkin a definição é esta:

Denomino princípio um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável101, mas porque é uma exigência de justiça ou

equidade ou alguma outra dimensão da moralidade. [...]

A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.

[...]

Mas não é assim que funcionam os princípios [...]. Mesmo aqueles que mais se assemelham a regras não apresentam consequências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas. [...]

Um princípio como “Nenhum homem pode beneficiar-se de seus próprios delitos” não pretende [nem mesmo] estabelecer condições que tornem sua aplicação necessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa direção, mas [ainda assim] necessita uma decisão particular. [...] Tudo o que pretendemos dizer, ao afirmarmos que um princípio particular é um princípio do nosso direito, é que ele, se for relevante, deve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como [se fosse] uma razão que inclina numa ou noutra direção.

[...]

100 ALEXY, Robert, 2009, p. 85.

101 A isso Dworkin chama “política”: “Denomino política aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral, uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deva ser protegido contra mudanças adversas)”. DWORKIN, Ronald, 2010, p. 36.

Essa primeira diferença entre regras e princípios traz consigo uma outra. Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm - a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é.

As regras não têm essa dimensão. Podemos dizer que as regras são funcionalmente importantes ou desimportantes [...]. Nesse sentido, uma regra jurídica pode ser mais importante do que outra porque desempenha um papel maior ou mais importante na regulação do comportamento. Mas não podemos dizer que uma regra é mais importante que outra enquanto parte do mesmo sistema de regras, de tal modo que se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior.102

Nas duas construções, alguns traços parecem comuns: regras e princípios são espécies normativas, e, portanto, componentes do direito positivo. Acerca disso já discorremos anteriormente; regras diferem-se de princípios por sua densidade normativa mais aguda, de modo que reclamam aplicação subsuntiva, no modo tudo ou nada, ao passo que os princípios possuem densidade maior em relação ao valores que portam, mas por serem mais genéricos e abstratos quanto aos comportamentos humanos, são aplicáveis em modo mais ou menos, admitindo ponderação de razões que flexibilizem a potência de uns ou outros frente à solução de um caso concreto.

Considerando essas duas principais teorias, e ainda a obra de outros autores mais afastados no passado, José Joaquim Gomes Canotilho encontra cinco critérios diferentes para apartar regras de princípios:

a) Grau de abstracção: os princípios são normas com um grau de

abstracção relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstracção relativamente reduzida.

b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações

concretizadoras (do legislador, do juiz), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação directa.

c) Carácter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza estruturante ou com um papel

fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua

importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito).

d) «Proximidade» da ideia de direito: os princípios são «standards»

juridicamente vinculantes radicados nas exigências de «justiça» (Dworkin) ou na «ideia de direito» (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional.

f) [sic] Natureza normogenética: os princípios são fundamento de

regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.103

E o remate do doutrinador é preciso:

Os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (nos termos de Dworkin: applicable

in all-or-nothing fashion), a convivência dos princípios é conflitual

(Zagrebelsky), a convivência de regras é antinómica; os princípios coexistem, as regras antinómicas excluem-se. Consequentemente, os princípios, ao constituírem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à «lógica do tudo ou nada»), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflituantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos. Como se verá mais adiante, em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação e de harmonização, pois eles contém apenas «exigências» ou «standards» que, em, «primeira linha» (prima facie), devem ser realizados; as regras contém «fixações normativas» definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias. Realça-se também que os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas, devem ser alteradas).104

Tais conclusões, entretanto, não são unânimes.

Entre nós, a principal voz dissonante está em Humberto Ávila. Sua teoria, contudo, é bastante longa e repleta de pressupostos que desviariam por completo o objeto deste trabalho, o que inviabiliza um tratamento minucioso. Remetemos o leitor à obra já referenciada, para um detalhamento conveniente e bastante enriquecedor.

Nada impede, doutra feita, apontarmos suas principais conclusões:

103 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, 2003, p. 1160. 104 Ibid., p. 1161-1162.

O professor Ávila diferencia regras e princípios de acordo com os seguintes critérios: a) critério da natureza do comportamento prescrito105; b) critério da natureza da justificação exigida106; e c) critério da medida de contribuição para a decisão107. Eis o extrato que ele mesmo apresenta de sua teoria:

As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangendo, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.108

Em que pesem as críticas que esse trabalho tem recebido109, as ponderações de Humberto Ávila parecem-nos muito razoáveis. Em especial quanto ao critério de que se utiliza para definir que os princípios são normas imediatamente finalísticas, dirigidas à realização de “um estado de coisas” sem descrever, diretamente, qual o comportamento devido para atingir tal estado.

Eis o conceito de “estado de coisas” também por ele formatado: “estado de coisas pode ser definido como uma situação qualificada por determinadas qualidades. O estado de coisas transforma-se em um fim quando alguém aspira conseguir, gozar ou possuir as qualidades presentes naquela situação”110.

Ao contrário, as regras – ainda na concepção dessa teoria – são normas jurídicas primordialmente orientadas para que o comportamento humano modalizado produza, precisamente, aquelas qualidades postas pelos princípios.

Assim, regras e princípios relacionam-se numa ordem clara de meios e fins, respectivamente. As regras dão-nos o “o que fazer” e os princípios, o “para que” este comportamento se dirige. 105 ÁVILA, Humberto, 2016, p. 95. 106 Ibid., p. 97. 107 Ibid., p. 100. 108 Ibid., p. 102.

109 Por exemplos as que se veem em: SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2011; ou ainda em: STRECK, Lenio. Lições de crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2016.

Outra transcrição do material original de Ávila colabora na compreensão:

[...] os princípios, ao estabelecerem fins para serem atingidos, exigem a promoção de um estado de coisas – bens jurídicos – que impõe condutas necessárias à sua preservação ou realização. Daí possuírem caráter deôntico-teleológico: deôntico, porque estipulam razões para a existência de obrigações, permissões ou proibições; teleológico, porque as obrigações, permissões e proibição decorrem dos efeitos advindos de determinado comportamento que preservam ou promovem determinado estado de coisas. Daí afirmar-se que os princípios são normas-do-que-

deve-ser (ought-to-be-norms): seu conteúdo diz respeito a um estado

ideal de coisas (state of affairs).

Em razão das considerações precedentes, e com base nos escritos de Wright, pode-se afirmar que os princípios estabelecem uma espécie de

necessidade prática: prescrevem um estado ideal de coisas que só será

realizado se determinado comportamento for adotado.

Já as regras podem ser definidas como normas mediatamente

finalístcas, ou seja, normas que estabelecem com maior exatidão qual o

comportamento devido; e, por isso, dependem menos intensamente da sua relação com outras normas e de atos institucionalmente legitimados de interpretação para a determinação da conduta devida. Enfim, as regras são prescrições cujo elemento frontal é o descritivo. Daí possuírem caráter deôntico-deontológico: deôntico, porque estipulam razões para a existência de obrigações, permissões ou proibições;

deontológico, porque as obrigações, permissões e proibições decorrem

de uma norma que indica “o que” deve ser feito. Daí afirmar-se que as regras são normas-do-que-fazer (ought-to-do-norms): seu conteúdo diz diretamente respeito a ações (actions).111

Compreendendo a construção deste autor, vê-se que ela não é oposta ou extremada em relação à de Alexy ou de Dworkin em muitos de seus aspectos. Do contrário, que diferença existe em afirmar que princípios estatuem “mandamentos de omitização” ou que se prestam a “promover ou garantir um estado ideal de coisas”? Não parece ser possível afirmar que o estado ideal é único e imutável, mas ao contrário progressivo e proximal.

Disso, portanto, concluímos – neste aspecto em particular – não haver incompatibilidades nas duas teses. Parece-nos, com o devido respeito de opiniões contrárias, que a tese de Alexy ganha contribuições interessantes e complementares na lição do professor brasileiro.

Concordamos especialmente, aliás, com seu pressuposto de que tanto princípios quanto regras podem ser extraídos dos mesmos dispositivos legais, caracter a que nomina “dissociação em alternativas inclusivas”112.

A proposta aqui defendida diferencia-se das demais porque admite a coexistência das espécies normativas em razão de um mesmo dispositivo. Um ou mais dispositivos podem funcionar como ponto de referência para a construção de regras, princípios e postulados. Ao invés de alternativas exclusivas entre as espécies normativas, de modo que a existência de uma espécie excluiria a existência das demais, propõe-se uma classificação que alberga alternativas inclusivas, no sentido de que os dispositivos podem gerar, simultaneamente, mais de uma espécie normativa. Um ou vários dispositivos, ou mesmo a implicação lógica deles decorrente, pode experimentar uma dimensão imediatamente comportamental (regra), finalística (princípio) e/ou metódica (postulado).

[...]

Analise-se o dispositivo constitucional segundo o qual todos devem ser tratados igualmente. É plausível aplica-lo como regra, como princípio e como postulado. Como regra, porque proíbe a criação ou aumento de tributos que não sejam iguais para todos os contribuintes. Como princípio, porque estabelece como devida a realização do valor da igualdade. E como postulado, porque estabelece um dever jurídico de comparação [...] a ser seguido na interpretação e aplicação, preexcluindo critérios de diferenciação que não sejam aqueles previstos pelo próprio ordenamento jurídico.113