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A PARTICIPAÇÃO DO ESTADO NA CONSTRUÇÃO DA LIBERDADE INDIVIDUAL E COLETIVA

PROCESSOS ACUMULADOS NAS DIVERSAS ESFERAS JUDICIÁRIAS

2. JUDICIÁRIO COMO INSTITUIÇÃO DE “ÚLTIMO RECURSO”

2.1 A PARTICIPAÇÃO DO ESTADO NA CONSTRUÇÃO DA LIBERDADE INDIVIDUAL E COLETIVA

Uma idéia um tanto autárquica dos sindicatos e das relações coletivas de trabalho sustenta a tese/aspiração da absoluta liberdade dos sindicatos, ressaltando o princípio da não interferência e a legitimidade advinda da ação direta dos sindicatos, principalmente quanto à fixação das bases contratuais de execução do trabalho. Ora, uma perspectiva histórica do capitalismo pressupõe o reconhecimento de que o exercício da liberdade decorre dos marcos ideológicos, políticos e jurídicos da autoridade política erigida pela sociedade. A naturalização da liberdade é um eficiente instrumento de aglutinação e ação políticas, mas as condições do seu exercício são bem mais concretas e complexas.

A liberdade existe e exterioriza-se como contraposição ao interesse de outros indivíduos, grupos e classes. A formulação filosófica e política que engendrou o Estado nacional destina a ele o monopólio da violência legal, como árbitro, em última instância, dos conflitos de interesses e de classes em seu interior, ainda que destituído de comportamento neutral em sua atividade. Portanto, é o Estado quem assegura a liberdade, inclusive em sua dimensão sindical.

O suposto da não-intervenção do Estado - como sinônimo de imunidade para os atos sindicais sobre as organizações de trabalho - não possui aderência histórica no capitalismo, nem nas experiências de socialismo

real. Seja para negá-la, estimulá-la, permiti-la ou mesmo proibi-la - como na lei Chapellier (1791), na França pós revolução, a dimensão e amplitude da liberdade política decorre da intricada relação entre classes sociais e Estado. E nela se insere a liberdade sindical.

A mercantilização e a desmercantilização12 parcial do trabalho também decorrem da ação do Estado. O Estado, e especialmente o Judiciário, funciona como um assegurador, em última instância, dos mecanismos de operabilidade da liberdade sindical e, em aparente contradição, da intervenção estatal, inclusive sobre os sindicatos. As condicionantes da construção da institucionalidade que cerca o mercado de trabalho, inclusive a participação dos agentes interessados, tem múltiplas causalidades, tanto externas como internas, relacionadas com a trajetória da formação de cada estado- nação e dos seus processos de industrialização.

As estratégias de desenvolvimento nacional dos países retardatários, que promoveram sua unificação política quando já avançada a 1ª. Revolução industrial e no limiar da 2ª, imprimiram ao conflito capital e trabalho

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Sping-Andersen (1988: 21-22) expõe um conceito mais profundo de de-commodification ou desmercantilização, relacionando-o com o status de cidadão, segundo as interações de classe engendradas pelas sociedades nacionais, seguindo a tipologia de welfare-state. De acordo com ele De-commodification occurs when a service is rendered as a matter of right, and when a person can maintain a livelihood without a reliance on the market. No aspecto que se relaciona com a presente dissertação, vale a sua constatação de que There is no doubt that de-commodification has been a hugely contested issue in welfare state development. For labor, it has always been a priority. When workers are completely market-dependent, they have difficult to mobilize for solidaristic action. Since their resources mirror market inequalities, divisions emerge between the “ins” and the “outs” making labor-movement formation difficult. De-commodification strehgthens the worker and weakens the absolute autority of the employer. It is for exactly this reason that employers have always opposed de-commodification.

Numa tradução livre diria que a “Desmercantilização ocorre quando um serviço é prestado como uma questão de direito, e quando uma pessoa pode manter um modo de viver sem subordinação ao mercado (de trabalho)”. E que “Não existe dúvida de que a desmercantilização tem sido uma questão arduamente contestada do desenvolvimento do estado do bem-estar social. Para o trabalho, ela é sempre uma prioridade. Quando os trabalhadores são completamente dependentes do mercado, têm dificuldades de mobilizar-se em torno de ações solidárias. Dado que seus recursos refletem as desigualdades de mercado, emergem divisões de interesses entre os que estão ativos “no mercado” e aqueles que estão fora da atividade, o que torna mais difícil a organização do trabalho. Desmercantilização robustece os trabalhadores e relativiza a autoridade absoluta dos empregadores. É exatamente por esta razão que os empregadores são sempre contrários à desmercantilização.”

soluções distintas que, grosso modo, buscaram combinar abstenção de processos de ruptura institucional em troca de algum nível de mobilidade sócio-econômica e de uma futura segurança econômica traduzida em políticas de welfare e crescente participação política nas questões de Estado.

A experiência brasileira ganha mais dramaticidade exatamente porque a industrialização mais intensa, conducente à superação da economia agrária, ocorreu quando já avançado o 2º quarto do século XX, com os elementos da 2ª Revolução Industrial já amadurecidos e formados os grandes conglomerados industriais e financeiros nos países centrais.

Na ordem liberal que precedeu à revolução de 1930, por certo o Estado operava em outras circunstâncias e sobre outras premissas, como a coerção à liberdade individual, atrelada à coerção ao trabalho. É no curso da industrialização de cada Estado-nação que surgirão diferenciações no âmbito do trabalho, tensionando os marcos regulatórios e os interesses ali envolvidos, mormente em torno de estratégias de ação, organização e financiamento.

Um dado relevante acerca da intervenção do estado nas condições de exercício da liberdade sindical extrai-se da trajetória da formação dos sindicatos nos Estados Unidos, onde as decisões judiciais tornaram- se um dos instrumentos de ação do estado liberal para conter a organização sindical, como salienta Flávio Limoncic13:

E os juízes americanos exerceram seu poder político de forma larga. A interferência do Poder Judiciário na vida associativa dos trabalhadores americanos remonta a 1806, quando, pela primeira vez, foi adotada a doutrina da conspiração por um tribunal federal, indicando que a compreensão dos direitos republicanos que os trabalhadores esposavam era bem distinta da esposada por aqueles oficialmente designados como os intérpretes da Constituição. Inspirada tanto pela common law como pelas Combination Acts britânicas, aprovadas pelo Parlamento em 1799 e 1800 e produzidas no clima de reação à Revolução Francesa, que tornavam criminosas quaisquer ações coletivas de trabalhadores

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para melhorar suas condições de vida, a doutrina americana definia a conspiração como um acordo entre duas ou mais pessoas para perpetrar um ato ilegal. Embora pátria da Revolução, a Assembléia Francesa também aprovaria, em 14 de junho de 1791, a Lei Chapelier, que proibia qualquer associação de pessoas da mesma ocupação, mesmo que para fins recreativos, baseando-se na idéia de que, no regime da liberdade, nenhum corpo intermediário entre o estado e o indivíduo deveria ser reconhecido.

Nos Estados Unidos, no entanto, ao contrário do ocorrido na Inglaterra e na França, foi o Poder Judiciário, e não o Legislativo, que definiu, com exclusividade, o princípio da conspiração. Aplicada às organizações de trabalhadores, ela afirmava que a negociação coletiva do trabalho, em contraposição à individual, representava uma conspiração contra a operação natural do mercado, por elevar artificialmente os salários e destruir a competitividade econômica. Ou, no dizer de um economista do período, “A sociedade é uma vasta colméia de compradores e vendedores, e todo homem traz algo para o mercado e leva algo consigo. Eu faço algo por você, você faz algo por mim, esta é a lei fundamental da sociedade”.

Essa característica de detentor, em seu aspecto formal, do máximo grau de “enforcement” tende a identificar o Judiciário com o caráter repressor do Estado. A circunstância de ser ele o último elemento da jurisdição civil no exercício do monopólio da violência legal, no entanto, não exclui as possibilidades de que suas ações possam não apenas ocorrer na imposição da ordem sobre as camadas subalternas, mas também espraiar-se para outras áreas e dimensões da sociedade capitalista, inclusive contrários aos interesses dos empregadores e do próprio Estado.

A experiência brasileira, no que pertine ao mercado de trabalho e à Justiça do Trabalho, mostra clara inflexão do tratamento dado ao trabalho a partir da regulação pública dos anos 30 e particularmente das funções assumidas por uma organização que, nascendo do Poder Executivo, tornou-se membro relevante do Poder Judiciário. Dois pilares dessa regulação serão constantemente revisitados nesse trabalho: 1) a eleição do trabalho como um problema nacional e não local, retirando o trabalho subordinado e urbano da influência do poder político local e da própria Justiça Estadual; 2) e o expresso reconhecimento da assimetria entre capital e trabalho, com a perspectiva de

promoção desse último com a ampliação da hoje chamada relação salarial, ao menos do ponto de vista individual.

Esse é um ponto relevante para compreender a inserção do Judiciário brasileiro como um elemento do sistema de relações do trabalho, dado que um aspecto fundamental da organização dos sindicatos permaneceu sob as hostes da Justiça Estadual: as discussões acerca das suas receitas e as disputas da representação sindical, ao menos até a promulgação da emenda constitucional 45/2004. Por outro lado, tomaram caráter nacional a instituição da Justiça do Trabalho e a assunção pela União do monopólio legiferante sobre direito do trabalho e mercado de trabalho.

O novo marco regulatório supera parcialmente o caráter regional dos mercados, inclusive do mercado de trabalho, criando condições de operacionalidade em âmbito nacional, ainda que mantida na legislação federal a regionalização do salário mínimo. De todo modo, superou-se a possibilidade de imposições de barreiras regionais à livre circulação de mão-de-obra e ao tratamento desigual do trabalho pelas unidades políticas regionais.