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A construção de estruturas retabulísticas insere-se no novo espírito contra- reformista saído do Concílio de Trento (1564) que encerrou com directrizes muito específicas no que concerne à criação artística29. Aliado ao poder económico e empreendedor do Cabido da Colegiada de Guimarães, foram os grandes factores responsáveis pela renovação do interior da Colegiada e pelo desenvolvimento das artes decorativas. Reagindo contra a Reforma adepta da depuração dos interiores dos templos, a Igreja Católica vai recorrer às artes decorativas com o intuito de as colocar ao serviço da fé católica. A esta conjuntura devemos aliar as cerimónias litúrgicas realizadas na Colegiada e capelas anexas, conjugadas com sermões, alfaias em ouro e prata, rica paramentaria oriunda de diversos centros europeus, vestidos da Senhora da Oliveira que contribuem para criar um ambiente de maior aproximação com Deus e a utilização da arte como um meio de propaganda do Catolicismo e do próprio esplendor do Cabido da Colegiada de Guimarães.

Entre 1687 e 1713, encontrámos referência ao mestre escultor e entalhador Pedro Coelho, o qual arremata várias empreitadas para a Colegiada. Em 1687 deparamos com a primeira menção notarial ao percurso artístico deste mestre, que atingira já o topo da sua profissão, pois é denominado de mestre escultor. Trata-se de um contrato de obra firmado a 12 de Maio de 1687, na casa do Reverendo Cabido da Igreja de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães “aonde estavao de hua parte os

Reverendos denidades e conegos e prebendados delle (…) e da outra parte estava Pedro Coelho excultor”30. O artista estava contratado para fazer a obra do retábulo-mor da igreja de Nossa Senhora da Oliveira, “e o dar feito e de todo acabado e em sua perfeissao

e obrado por bons ofesiais e peritos na arte”, segundo os rascunhos, apontamentos e

traça, “que para a tall obra se tem feitos e estao asinados tanto por elle Pedro Coelho

como pellos Reverendos Conegos e Cabido”. Numa breve e lacónica notícia averbada

num documento avulso, nada é dito sobre o autor do risco. Apenas é referido que o artista de Gondar comprometia-se a abater ou pagar determinada quantia com o intuito de servir de pagamento ao mestre que rascunhou a traça do retábulo31. 28 Idem, ibidem, p.101.

29 QUEIRÓS, Carla Sofia Ferreira – Os retábulos da cidade de Lamego e o seu contributo para a formação de uma escola

regional (1680-1780), Lamego, Câmara Municipal de Lamego, 2002, p. 39.

30 Oliveira, António José de; Sousa, Lígia Márcia Cardoso Correia de – obra cit., p.79.

31 Transcrevemos na íntegra este manuscrito: “Da escritura da obrigação do retabollo da capella mor que fes Pedro Coelho”

– fol.24v a 12 Mayo de 687. “Declarou elle mestre Pedro Coelho que dos ditos 380 mil reis avia elle de pagar, ou fazer nelles abatimento pera cobrar de menos o que custou he se despendeo com o feitio da trassa que se fes pera a disposissão desta obra com o mestre que a fes e a rascunhou que sera a cantia em que for avaluada. E não dis mais sobre este ponto”.

ha de dar de todo feita e asentada no seu lugar a oito dias de antes de dia de Sam Joao de nosso Senhor do anno vimdouro de seiscentos e oitenta e oito annos”. Uma vez

concluída a obra, esta seria revista por “mestres peritos na arte”, que a aprovariam ou rejeitariam conforme estivesse de acordo ou não com a “trassa e apontamentos e

rascunho”. O artista apresentou dois fiadores residentes na freguesia de Gondar.

Um ano depois, a 4 de Janeiro de 1688, enquanto Pedro Coelho ainda execu- tava a empreitada no altar-mor da Colegiada, novamente nas casas do Cabido da Colegiada, é celebrado um contrato de obra entre o Cabido da Colegiada e o mestre de Gondar para a feitura de três retábulos “para porem nas tres ygreias de murssa e

anexas delles32 tres retabollos com seus goarda pós e suas coartelas que hao de ser para a ygreia matris e os retabollos hao de ser asentados e postos na ygreia de Nosa Senhora de Fialhozo e na de São Sebastião do Popullo e na de Santa Maria Madalena de Candeido e todo e quada cousa sera feito e asentado na forma das trassas e apontamentos que lhe forão mostrados com suas colunas (...)”33.

Como podemos constatar, Pedro Coelho não foi o autor nem da traça nem dos apontamentos, situação que muitas vezes ocorria na arte da talha. Neste contrato notarial, o cliente é exigente no que se refere à qualidade da madeira, que deveria ser “de boa e limpa madeira”, o que possibilitaria um entalhe modelar por parte do artista. O mestre teria de dar como concluída a obra até ao mês de Outubro de 1688, recebendo para tal a quantia de 54$000 réis.

No mês seguinte, reencontramos Pedro Coelho, escultor, na rua de Gatos (arrabalde de Guimarães), como testemunha num contrato estabelecido entre o Reverendo Nicolau Dias e Matos, tesoureiro-mor e fabricante na Colegiada de Guimarães, “em nome do reverendo Cabido della (…) estava composto e comtratado com elle dito

João Pereira da Cunha de que para as obras do retabollo da capela mor e choro da dita Colegiada lhe desse trezentos mil reis a rezão de juro de sinquo por sento comesados a comtarem se des o dia da feitura deste estormento”34. nesta altura, além das obras do retábulo do altar-mor que Pedro Coelho estava a realizar na Colegiada, para finalizar até oito dias antes do S. João, procedia-se também à execução de trabalhos no coro da mesma igreja, sob a orientação de um artista que desconhecemos. Parte do empréstimo, contraído pelo tesoureiro da Colegiada, iria certamente reverter para Pedro Coelho, como pagamento dos trabalhos que aí realizava.

A 12 de Janeiro de 1712, Pedro Coelho firma um novo contrato de obra no “claustro

da Igreja da Insigne e Real Colegiada da Igreja de Nossa Senhora da Oliveira nella cazas do (Assinado:) DOMINGOS DA CUNHA”. (A.M.A.P.= Arquivo Municipal Alfredo Pimenta (Guimarães), C-172, Carta de Reis, Maço nº13B, doc. avulso nº 56).

32 Nos séculos XVII e XVIII eram de apresentação conjunta do Prior e do Cabido a reitoria de Santo André de Murça,

com as suas anexas.

33 Oliveira, António José de; Sousa, Lígia Márcia Cardoso Correia de – obra cit., pp. 79-80. A. L. de Carvalho refere-se

a este contrato, mencionando apenas que o artista trabalhou no altar-mor da igreja matriz de Murça e datando-o de 1687 (Os mesteres de Guimarães, vol.5, 1944, p. 71).

notarial se encontre em muito mau estado, o que dificulta a sua leitura paleográfica. Pelo que conseguimos apurar, Pedro Coelho estava ajustado de “fazer os caixilhos e mais obras

da capella mor desta dita Colegiada” e por este trabalho receberia a quantia de 160$000

réis repartidos em três prestações iguais. O mestre arrematante estava obrigado a dar “a

obra feita posta e acabada athe o dia de São Pedro deste dito ano”, pois caso não cumprisse o

estipulado pagaria de pena por cada dia que passasse desse prazo uma determinada quantia em dinheiro. Para maior segurança do encomendador, Pedro Coelho apresentava como seu fiador e principal pagador António de Andrade, escultor, morador nos extramuros de Guimarães. Através do texto legível do documento, António de Andrade surge apenas como fiador de Pedro Coelho. No entanto, alguns autores afirmam que em 1712-13, Pedro Coelho trabalhou em parceria com António de Andrade, na obra do revestimento em talha da Capela-mor da Igreja da Colegiada36. Será que na parte em que o contrato está em mau estado, é mencionada a parceria destes dois artistas e consequentemente tenhamos realizado uma deficiente leitura? É um ponto a rever.

A 30 de Abril de 1713, enquanto o prazo da obra anterior ainda não tinha expirado, o Cabido da Colegiada de Guimarães celebra um outro contrato com Pedro Coelho, relativo à obra das frestas da capela-mor da mesma igreja37. Tratava-se de concluir o revestimento em talha de toda a capela-mor. Nesta escritura, sem margem para dúvida, sabemos que Pedro Coelho não trabalhou em parceria com António de Andrade, que neste documento não é sequer mencionado, sendo agora seu fiador o seu genro Miguel Correia, entalhador, morador no lugar da Cabreira, da freguesia de São Jorge de Cima de Selho (Guimarães). Se efectivamente tivesse trabalhado em 1712 em conjunto com António de Andrade, é estranho que essa parceria fosse desfeita meses depois, tratando-se da mesma obra. Sabemos que o número de frestas da capela-mor seria de quatro, que levariam da “parte de dentro obra de talha em releição

de taboa grossa (…) de sorte que senão vião os topos da parte da capella que hao de ser para a parte das vedraças e as frentes para a capella adonde levara lagolhos e pasaros e sarafins rozas que mostrem variedade (…)”. Esta obra tinha como prazo de conclusão o

mês de Julho do mesmo ano. Toda a ferragem seria por conta do Reverendo Cabido, que pagaria ao artista 85$200 réis, dando-lhe antecipadamente 34$000 réis “e mais

se lhe heia dando comforme correr a dita obra”.

Toda esta estrutura retabulística executada pelo mestre Pedro Coelho com a campanha de obras executadas em 1771-7438, encontrava-se em 1775 desmontada 35 idem, Ibidem, pp. 90-91.

36 GONÇALVES, Flávio – “A talha na arte religiosa de Guimarães” in Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada,

Actas, vol. 4, Guimarães, 1981, p.345; ALVES, Natália Marinho Ferreira – “Pedro Coelho”, in Dicionário de Arte

barroca em Portugal, dir. José Fernandes Pereira, Lisboa, Editorial Presença, 1989, p. 127. Alfredo Guimarães não

refere António de Andrade afirmando apenas: “São ainda de considerar neste templo as obras de entalhador de Pedro Coelho, em toda a capela-mor (1712)” (Guimarães, Alfredo – A arte em Portugal. Guimarães monumental, Porto, Marques Abreu, 1930, p. 12.

37 Oliveira, António José de; Sousa, Lígia Márcia Cardoso Correia de – obra cit., pp.91-92. Esta, tal como a anterior

escritura notarial, foi assinada no claustro da Igreja de Nossa Senhora da Oliveira.

38 Sobre este conjunto de obras arrematadas pelos mestres entalhadores José António da Cunha e António da Cunha,

da Irmandade de Nossa Senhora da Oliveira reunidos na sacristia do Santíssimo Sacramento decidem dar como esmola o “retabollo da tribuna velha de Nossa Senhora”, à Irmandade do Campo da Feira, tendo em conta o requerimento feito pelos irmãos daquela Irmandade que a pretendiam colocar na “sua capella que andavão fazendo de

novo e que tudo seria em ourra e louvor do Senhor dos Santos Paços”39. Deste modo, a Irmandade de Nossa Senhora decidiu oferecer o referido retábulo e tribuna velha à Irmandade do Campo da Feira dando-lhe então autorização para que esta o mandasse retirar do claustro e a conduzisse para a capela em construção. Além desta oferta à Irmandade do Senhor dos Passos, temos conhecimento de que a Irmandade de Nossa Senhora da Oliveira, em 16 de Maio de 1778, deliberou dar como esmola à Irmandade do Campo da Feira e Santos Paços a verba de 50$000 réis para “ajuda

da obra da sua igreja que andão fazendo para o mesmo senhor”40

À fase do entalhe que acabámos de analisar, não se seguiu imediatamente o douramento e pintura, pois esta última tratava-se de uma operação dispendiosa. Passaram-se quatro anos, até que se efectuasse o douramento e pintura dos diversos elementos de madeira entalhados na oficina do mestre de Gondar. Após a conclusão da obra de entalhe que acabamos de analisar, a 23 de Julho de 1714, é firmado na casa do Reverendo Cabido um contrato de obrigação, entre Francisco de Oliveira Caminhas, pintor, morador na rua das Molianas (arrabalde de Guimarães) e o Cabido da Colegiada “para o douramento da obra de talha que esta na capella mor

desta dita Insigne e Real Colegiada e suas frestas (…)”41.

Neste contrato, podemos observar algumas das técnicas e processos do doura- mento. Analisemos alguns extractos:

“Toda a dita obra da dita capella mor sendo bem aparelhada de gesso e antes de bollo que sera raspado he ligado sendo necessario pera que ajuste bem o ouro pera se dourar e toda cuberta de ouro pulido por todas as partes donde a dita obra se posa ver assim pelo direito como pelas avessas (...) burnidos os baixos aribeirados sobre ouro fino na melhor forma que se possa fazer (...) e as flores e rosas se acharem em a talha serao esmaltadas de modo que bem pareçao o que são (...)”.

O pintor receberia 385$000 réis. Para comprar os aparelhos, o Cabido dava- lhe “logo coarenta e oito mil reis e o ouro se ha de pagar ao batefolha por ordem delle

Reverendo Cabbido”. Em suma, os aparelhos e o ouro seriam “por conta da dita coantia dos trezentos e oitenta e sinco mil reis”. O bate-folha, Bernardo da Costa, morador

na rua de Gatos arrabaldes de Guimarães era o fiador do pintor. Este contrato especifica o número de obreiros que iriam trabalhar no douramento – seis.

39 A.C.N.S.O. = Arquivo da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira (Guimarães), Ir. 69, fls. 47-47v. 40 A.C.N.S.O., Ir. 69, fl. 60

41 Oliveira, António José de; Sousa, Lígia Márcia Cardoso Correia de – obra cit., pp.92-93. Trata-se da obra de talha

Assim terminamos este percurso pela actividade de Pedro Coelho, artista de transição entre os séculos XVII e XVIII, na Colegiada de Guimarães, tendo traçado o seu evoluir desde finais de seiscentos até ao ano de 1713. No ciclo que aqui analisámos deve-se chamar a atenção para o facto de a talha da Colegiada constituir um legado importantíssimo do homem barroco dos séculos XVII e XVIII, bem como o reflexo do dinamismo económico e artístico da instituição, permitindo deste modo o afluxo de conceituados artistas do termo de Guimarães e de diferentes locais do noroeste peninsular42.

42 O autor não pode deixar de manifestar o seu reconhecimento por todos quantos possibilitaram, pelo espírito de

colaboração revelado que este trabalho fosse possível. À Dr.ª Teresa Malheiro, directora do Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, as facilidades concedidas na recolha e transcrição dos variados elementos e a todos os funcio- nários da mesma instituição, pela simpatia com que sempre nos acolheram. Ao Senhor Dom Prior da Colegiada de Guimarães, José Maria Lima de Carvalho, pelo precioso tempo que lhe tomamos na consulta do Arquivo da Colegiada de Guimarães.