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CONCEPTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA: A FAMÍLIA E A CONTRUÇÃO DE PROJECTOS VOCACIONAIS DE

2. Um quadro teórico de compreensão construtivista, ecológico e desenvolvimentista

2.2. A perspectiva narrativa

A emergência da perspectiva narrativa, dentro do quadro teórico das abordagens construtivistas, pode proporcionar um contributo na compreensão e na intervenção da Psicologia Vocacional. Esta abordagem acentua a primazia da construção de significados no funcionamento e na mudança psicológica. Ou seja, considera que a acção humana tem subjacente uma estrutura pré-narrativa (Ricoeur, 1984), sendo a narrativa um processo espontâneo de construção simbólica da experiência humana.

Howard (1991), ao reconhecer a importância da estrutura narrativa na determinação e estruturação da experiência humana, propõe que se deveria designar o homem, mais como homo fabulans e não tanto como homo sciens/rationalis, para enfatizar que os humanos constroem a realidade e a sua experiência não em forma de algoritmos, mas através de narrativas pessoais dotadas de plasticidade, dinamismo e de significados idiossincráticos; ou como Weimer (1977) propõe: os humanos são teorias vivas dos seus contextos de vida e estas teorias são suportadas por uma natureza narrativa.

Husserl (in Carr, 1986, p.126), partindo da análise fenomenológica da experiência temporal, apresenta a actividade narrativa como parte integradora da experiência e da acção humana: “contam-se ao serem vividas e vivem-se ao serem

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contadas. As acções e o sofrimento da vida podem considerar-se como um processo de narração das nossas próprias histórias, no acto de escutá-las, interpretá-las ou de viver através delas”. Como elemento estruturador da acção, a narrativa fornece referências sobre a forma como o sujeito organiza a sua vida e como constrói significados para a mesma. Assim, a narrativa revela-se como uma unidade de sentido daquilo que acontece e confere unidade de significado ao sujeito protagonista da história.

As potencialidades da abordagem narrativa advêm dos recursos poderosos que a narrativa comporta, para iluminar a realidade humana, enquanto tecida de sonhos, emoções e tramas. A narrativa transforma-se na forma privilegiada de representar e de reproduzir a realidade, porque só ela veicula tensões, expectativas, imprevisibilidade, rupturas e contradições da experiência humana (Gonçalves, 1997). Já Emile Zola (in Cochran, 1990, p. 72) acreditava que a narrativa poderia vir a ser uma aproximação científica para a compreensão das pessoas e das sociedades, porque as histórias permitem integrar simultaneamente a complexidade, a diversidade e a unicidade do projecto humano. O que nos torna diferentes dos computadores é a possibilidade de lidarmos com ambiguidades e contradições, tornando as metáforas mecanicistas, inadequadas à compreensão do homem. Porque as pessoas não respondem a estímulos do meio, mas tomam posição acerca do meio (Rychlack, 1991).

A perspectiva narrativa pode ser um dispositivo de análise do desenvolvimento vocacional, porque os projectos vocacionais podem ser conceptualizados como um percurso que se vai construindo e reconstruindo ao longo da vida; isto é, a trajectória vocacional de um indivíduo, é um conjunto de histórias que vão sendo escritas e reescritas no itinerário histórico-social de cada sujeito. Assim, a narrativa é uma forma sintética que poderá representar o percurso do sujeito através do tempo; ou seja, descrever o itinerário vocacional de uma pessoa é como contar uma história. A vida não é um texto, mas um conjunto de textos articulados, onde se encontra incluído o texto vocacional (Epston, White & Murray, 1992). Neste sentido, os seres humanos são autores de auto-narrativas e actores em auto-narrativas (Sarbin, 1986).

Recentemente, vários investigadores têm tematizado o desenvolvimento vocacional a partir de abordagens biográficas ou das perspectivas narrativas (Cochran, 1990, 1991, 1997; Sankey & Young, 1996; Young & Collin, 1992; Young, Friesen & Borychi, 1994; Young, Valach, Dillabough, Dover& Matthes, 1994). A partir da

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narrativa, procuram perceber como os sujeitos são actores principais, secundários ou meros espectadores na "escrita" das suas histórias vocacionais e como essas narrativas se revelam, através do seu potencial de transformação, como organizadoras da acção e da re-escrita de histórias alternativas.

Em contraste com as perspectivas mais positivistas da investigação que enfatizam o quantificável, as regularidades, tendendo a reificar a realidade, as perspectivas narrativas dão relevância ao tempo experiencial vivido como oportunidade da viabilização de um projecto humano marcado pela historicidade, sem se preocuparem se o relato de uma vida contribui para a construção de um caminho segundo os critérios de ”verdade” científica (Cochran, 1990). Todas as narrativas são construídas no tempo histórico – a História –, enquanto coordenada essencial da existência humana, sendo o cenário onde se desenrola a trama humana. Foi a própria História que se responsabilizou por demonstrar que os humanos – que o cientismo interpretou como objectos –, são, antes de mais, projectos, anseios, expectativas, que, no espaço intersticial da existência, constroem experiências carregadas de significados, que vão dar origem a narrativas de que são autores; isto é, a acção humana é organizada e determinada pelas significações construídas e co-construídas mediante a estrutura narrativa.

Há várias razões que justificam afirmar que a narrativa espelha a realidade humana experienciada e vivida e, concretamente, a realidade vocacional (Cochran, 1990):

(a) vive-se na história. Na experiência humana há sempre um antes e um depois, uma memória e uma antecipação, sem os quais o presente se torna ininteligível (Carr, 1986). A narrativa emerge e reflecte a realidade humana, porque a organização temporal do antes, do presente e do depois é sempre uma narrativa construída ou a construir. Referindo a problemática vocacional, é óbvio que não se pode perceber integralmente os investimentos actuais de formação e de profissão dos indivíduos, bem como os seus projectos, sem se explorar o palco (contextos naturais de vida: família, escola, comunidade social de pertença…) onde o sujeito construiu as suas expectativas, crenças, representações em relação ao mundo das formações/profissões, ou seja, sem apelar e actualizar a sua memória histórica vocacional. Vivemos e recriamos projectos dentro de um contexto de uma comunidade com os outros. Os limites das nossas relações são construídos através de restrições e potencialidades

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históricas, políticas, económicas, sociais e culturais. A nossa possibilidade de eleger uma narrativa ou outra não é ilimitada, mas existe dentro de contextos determinados pelo nosso mundo de relações que proporciona uma série de oportunidades, mas inviabiliza o acesso a outras;

(b) representa-se a vida na história. Citando Hardy (1968): "nós sonhamos, lembramos, antecipamos, esperamos, desesperamos, acreditamos, planeamos, questionamos, construímos, pensamos, aprendemos e amamos na e pela narrativa" (p. 5). Se representamos a vida na história, então as histórias que nós contamos aos outros sobre nós próprios são parte da vida experienciada e co-vivida/partilhada. Assim, partindo da temática vocacional, através da narrativa, contam-se histórias do passado vocacional, do presente e do que se deseja e projecta ser no futuro, nos contornos das oportunidades do presente. Desde a perspectiva narrativa, o itinerário vocacional envolve a representação de histórias de pessoas que elas próprias foram construindo acerca de si próprias e dos seus projectos de vida na relação com os outros;

(c) desenvolve-se através da história. É através da exploração, ou seja, pela relação que se estabelece com segmentos diversificados da realidade física e sobretudo social que é possível reconstruir novos projectos vocacionais (Campos & Coimbra, 1991). É no espaço temporal histórico que se questionam os investimentos actuais, se exploram dimensões novas da experiência humana e se reconstrói o investimento actual; é na história que se constroem, desconstroem e reconstroem as histórias vocacionais possíveis, pelas oportunidades sociais/históricas proporcionadas ou inviabilizadas; (d) por fim, constrói-se significado através da história. A função semântica da narrativa

facilita a integração, de forma coerente e consistente, da globalidade da experiência complexa, diversa, discrepante e fragmentada. A modalidade narrativa é a forma sintética de integrar pessoas, lugares e acontecimentos. É possível a compreensão do humano e do mundo através da história, porque esta proporciona uma forma de integração e compreensão da realidade física e social, simultaneamente contraditória, dialéctica e harmónica.

As narrativas não têm apenas esta função de actualização das memórias históricas, mas realizam no presente uma função estruturante da acção humana para a construção de significados alternativos para a experiência actual, enquanto são contadas

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a nós próprios e aos outros. Assim, as narrativas permitem conferir significação à vida, mas este significado redefine a própria vida. Isto é, cada vez que contamos uma história, reflectimos sobre uma experiência pessoal e estamos a produzir novas alternativas para experiências futuras. Sendo assim, a história de vida pode ser uma possibilidade ou impossibilidade de nos conhecermos, mas é certamente uma possibilidade de tomarmos o pulso à orientação da nossa história de vida (Gonçalves, 1995).

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