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4 MÚSICA E FOLIA

4.5 Poesia e texto na Folia de Reis

O texto base da Folia de Reis como já é sabido, é o texto bíblico que abarca o Nascimento de Cristo desde os escritos proféticos até muitas vezes sua morte. Apresenta suas construções de significante e significado entre as palavras, combinando o enredo, sequência cronológica, e entre tudo isso, formas de falar e entender a palavra dentro do próprio dialeto, neste caso, o caipira. A partir disso constrói, podemos dizer, seu campo poético através da relação da linguagem ligada a fala, a fala ao discurso e o discurso ao pensamento.

No entanto podemos observar as construções das rimas dentro dos textos cantados em que “fé” rima-se com anjo “Gabrié” (Gabriel), que é na maioria das vezes combinado com a entonação da fala, no caso do Palhaço que apresenta uma certa musicalidade em declamar

seus versos. Esse aparece geralmente em sextilhas, realiza uma marcação de estilo em seu texto, separando-a do texto cantado pelos Embaixadores.

Dos pontos do linguajar caipira apresentados na primeira parte do trabalho, através dos estudos de Amadeu Amaral (1982), destacamos por exemplo o uso do “r” ou invés do “l”, em que Amaral aponta para algumas formas arcaicas do linguajar caipira que possivelmente foi recebida pelos colonizadores, por encontrar formas como craro e frôr, em velhos documentos da língua, como também tais formas que “antes de mais nada, obedecem a uma lei da fonética local, a permutação de l subjuntivo por r.” (AMARAL 1982, p. 58).

Em entrevista com Maria Aparecida Ribeiro (Vó Doca), ela relata uma passagem com uma parente sua que ao se casar com um fazendeiro rico torna-se aos olhos dos demais parentes, uma pessoa “metida”. Ela cita um comentário em que faziam na época quando queriam se reportar a alguma pessoa que estava apresentando um comportamento esnobe por ter alcançado classe social mais alta, diziam que “fulano ta cumeno ‘quilhabo’ cum ‘galfo’”. Nessas duas palavras sabemos que a forma correta de “quilhabo” é quiabo e “galfo” é garfo (atenção para esse “r” que na maioria das vezes pronuncia-se arrastadamente acentuado). A letra “l” entra na brincadeira crítica de modo a significar um rebuscamento da língua, já que ela no linguajar caipira é substituída pelo “r” como por exemplo: “frô”, “pranta”, “praca”, etc. No entanto acrescentam a letra “l” as palavras que neste caso pronunciam já de acordo com a norma da língua portuguesa “quiabo e garfo”, provocando conscientemente o trocadilho “quilhabo e galfo”. Sem contar que antigamente a maioria dos caipiras comiam suas refeições com colher, de modo a facilitar o apanhado do alimento, comer com garfo reservava-se apenas para as casas dos donos de fazenda em que apresentavam uma certa etiqueta a mesa. Além do mais, para finalizar a crítica do caipira para com seu semelhante, quiabo é uma comida escorregadia que provavelmente com “galfo” a dificuldade de se chegar a boca é maior do que com a colher, isso arrancava risos.

Assim o nosso dialeto caipira talvez quase constitua mais uma língua em início apenas de formação, com modificações peculiares aos vários núcleos por onde domina (quando a população é disseminada pelo território, essa dispersão favorece a diferenciação dialetal – Vendryes), do que um dialeto ou do que uma língua especial, desenvolvida sobre o fundo comum do português, chumbeado do tupi, primeiro, depois do negro, e, por fim, das múltiplas línguas imigrantes. (DUARTE, in AMARAL 1982, p. 37)

Mesmo a Folia nos dias de hoje, ainda apresenta traços desse dialeto, pois ele está enraizado em seus fazedores, e reflete na maneira de compor sua poesia. As autoras Castro e Couto (1961) apontam que os versos que aparecem nas Folias estudadas por elas são de mais ou menos sete pés, em quadras ou sextilhas, acompanhadas pela pancada rítmica do bumbo. Do mesmo modo acontece também na Folia dos Prudêncio, acrescentando que as rimas dos versos acontecem nos 2º e 4º versos:

Ó minha nobre senhora Vós queira nos desculpar Nosso prazo está vencido Precisamos viajar

Em versos descritos por Araujo (1949, p.431) nas Folias de Cunha, as rimas também aparecem nos 2º e 4º versos:

Eu num le sarvei ainda vós quêra mi descurpá, vô pedi pá Santos Reis qui por mim vem sarvá

No entanto a poesia da Folia é constituída como uma poesia que é para ser “falada” e para ser “cantada”. O som participa efetivamente dessa construção influenciando nas escolhas das palavras.

Nos estudos poéticos de Jean Cohen Estrutura da Linguagem Poética (1966), ele nos mostra que a construção de símbolos e finalidade de transmissão de mensagens através do texto poético, acontece em combinação com diversos tipos de elementos linguísticos:

Nos dois planos da expressão e do conteúdo, como Hjelmslev, devemos distinguir uma “forma” e uma “substância”. A forma é o conjunto das relações estabelecidas por cada elemento dentro do sistema, e é esse conjunto de relações que permite a determinado elemento desempenhar sua função linguística. (COHEN, 1966, p.27)

Os Embaixadores utilizam-se de certos tipos de códigos contidos em sua memória de repertório textual, lançando mão deles a partir da necessidade do momento correspondente, adequando-os à toada escolhida para usar em sua cantoria.

Com efeito, se compreender uma linguagem é conhecer o conjunto das combinações permitidas entre seus termos, então deve-se supor que esse código se acha depositado na memória de cada um dos usuários. No fundo, falar não é construir uma frase, mas escolher, entre os modelos de frase que a memória nos oferece aquele que nos parece corresponder a situação. (COHEN, 1966, p.92)

Suzel Reily em seu texto A música e a prática da memória- uma abordagem

etnomusicológica (2014) nos fala sobre a importância da mobilização da memória na

performance musical. Fala da memória como uma articuladora entre o passado e o presente, em que “passados invocados nas atividades musicais adquirem significado em função das condições de vida dos seus participantes no presente.” (REILY, 2014, p.2), ou seja, memória é trabalho (BOSI, 2010). Assim, aponta para a ideia de auxílio da música no processo de memorização, principalmente nas sociedades em que a tradição oral predomina, além disso traz um dado importante: tais grupos trazem consigo na memória códigos, um inventário de frases, como se fossem fórmulas, com medidas pré-estabelecidas, que usam como base para a sua improvisação. Na Folia apontamos tal prática ao Embaixador, pois esse faz o uso de um conjunto de padrões de fórmulas o tempo todo. A autora diz que esta prática aparece além das Folias de Reis, como também no cururu paulista e na cantoria nordestina.

No seu estudo clássico sobre a performance destas tradições, Albert B. Lord (1973 [1960]) mostrou como estes textos são elaborados no momento da performance com o uso de fórmulas que fazem parte de um inventário de frases retido na memória do bardo. Usando o enredo da estória como guia, o bardo constrói a narrativa utilizando seu repertório de fórmulas. Geralmente as fórmulas ocupam meia linha ou uma linha inteira e encaixam-se na estrutura fixa da frase musical utilizada pelo gênero épico em questão. Frequentemente as estruturas métricas das frases têm características próprias, como no caso dos filid irlandeses. O Kalevala, por exemplo, usa uma métrica conhecida como “tetramética trocaica”. (REILY, 2014, p.5)

Os textos da Folia aparecem sempre na embaixada de modo econômico, pois muitas vezes o Embaixador ao combinar texto e toada, deve suprimir ou acrescentar algumas palavras, como artigos, preposições, plurais, para poder completar ou ajustar sonoramente

com a letra, a melodia da toada. No entanto o texto nem sempre compreende a forma exata métrica da toada. Isso não quer dizer que a mensagem não seja passada e entendida pelos que estão ali ouvindo a Folia.

O linguista Roman Jakobson em Linguística e comunicação (1970) diz que é “a partir do código que o receptor compreende a mensagem.” (JAKOBSON, 1970, p.23). Mesmo o Embaixador suprimindo parte do texto, o código principal da mensagem se mantém, fazendo- se compreender o sentido da mensagem que quer ser passada. As palavras “Estrela”, “Reis Magos”, “Jesus”, “Messias”, “Resplendor”, “Manjedoura”, “Maria”, “Sagrada Guia”, Bandeira”, “Profecia”, “Santo Anjo”, entre outras, já formam dentro do receptor o suficiente para a recriação de alguma parte do épico da Natividade. Essas palavras são o núcleo das mensagens, basta os versos conterem alguma delas que praticamente todo o sentido do texto se faz pré-entendido, pois o enredo já é familiar a todos os presentes. Por isso a supressão de certas palavras dentro do verso, como artigos, preposições etc., não fazem falta para a compreensão da mensagem. No entanto “que uma mensagem comporte tal ou tal número de sílabas, isso não muda sua significação, do mesmo modo que o sentido de uma palavra não se altera quando ela rima ou deixa de rimar com outra.” (COHEN, 1966, p.29). Para um texto que, dependendo do momento deve ser improvisado, ele do mesmo modo tem que conter certos dizeres. Essa prefixação de sentido da mensagem auxilia o Embaixador no momento de encaixar o verso na toada, como por exemplo dizer “boa noite” ou “boa tarde”, pois quando chega a uma casa tem a obrigação de cumprimentar cantando, mesmo se tiver que improvisar algum verso em vista de algum pedido naquele momento, os signos linguísticos já foram atribuídos. Assim o símbolo opera, “antes de tudo, por contiguidade instituída, apreendida, entre significante e significado”. (JAKOBSON, 1970, p.101)

A Folia conta com uma grande quantidade de texto cantado, usado para diversas situações. Cada texto corresponde a um tipo de uso, relacionado para um momento ou ocasião específica. Esses textos apresentam versos “chaves” que podem servir para usos diferentes, como por exemplo: “ó minha nobre senhora, filha da Virgem Maria” que pode ser combinado com: “eu lhe peço humildemente, pra trazer a nossa Guia” ou “vou agora agradecer, o que fez pra Companhia”.

Os textos usados dentro do rito da Folia de Reis dos Prudêncio aparecem em momentos como:

Visita a uma casa Agradecimento de oferta

Pedido para buscar a bandeira e agradecimento ( janta e café) Chegada de almoço/janta

Pede-se para pegar a Guia (Bandeira)

Agradecimento: almoço, janta, café, doações, etc. Pedido de oferta

Despedida

Chegando a uma casa (pode-se chegar cantando ou apenas, cantar já dentro da casa) Quando encontra-se um fiel pelo caminho

Quadro 6 - Momentos de uso de toadas dentro do rito da Folia

Cada momento da visita carece de um tipo de cantoria em versos34. A escolha da disposição desses versos acaba por determinar qual Toada e sistema de cantoria será usado. Na Folia dos Prudêncio existem cinco sistemas de cantoria nos quais os versos são dispostos de maneiras diferentes dentro da execução vocal. Para esclarecer os tipos de Toadas que são usados em momentos diferentes da visita da Folia, é necessário entender a forma como cada sistema é construído em relação ao texto e algumas especificações melódicas e harmônicas. Os sistemas de cantoria serão melhores estudados logo a frente, dialogando com alguns autores, mas vejamos como o texto se aplica dentro desses sistemas. Os sistemas identificados na Companhia dos Prudêncio classificados em: Mineiro, Paulista, Dobrado, Caminhada e Falecidos. As toadas encaixam-se dentro desses sistemas, podendo ser chamadas de “toada mineira”, “toada paulista”, “toada dobrada”, “toada de caminhada” e “toada de falecidos”, lembrando que a Toada é dividida em duas partes chamada de Embaixada e Resposta. Cada uma dentro de seus respectivos sistemas, apresentam um tipo de construção musical diferente na parte da Embaixada e na parte da Resposta. Esse tipo de construção musical é que nos diz como o texto será disposto dentro da Toada. Algumas respostas como a mineira, só aparecem na toada mineira. Outras respostas já são recorrentes tanto nas toadas paulistas quanto nas toadas dobradas. No quadro a seguir aparecem todas as toadas identificadas em nosso acervo com seus tipos específicos de respostas. Usaremos algumas siglas para identificar os tipos de resposta possíveis em cada toada:

34

Tipos de Respostas dentro das Toadas

M= mineira A= ai ah ai B= oi larê ai

C= ai ah (como acontece na toada de falecidos) D= ah oiá

Dmod.= ah oiá modificada E= repete o último verso + ai F= ah ai

G= ah ai ah ai H= ah oiá

I= compasso + ai ah ai RR= resposta repetição

S= simultânea ( característica das toadas dobradas, aparecem como: S1; S2; etc.)

Quadro 7 - Tipos de Respostas dentro das Toadas

Temos nas 50 toadas identificadas na Folia de Reis dos Prudêncio o uso das seguintes respostas:

Toada Paulista

(total de 21 toadas)

Toada Resposta Toada Resposta

T2 A T29 B T6 A T30 D T8 B T37 E T9 B T38 D T12 A T39 A T15 A T40 A T19 C T41 A T21 A T42 B T22 B T43 D T24 A T47 Dmod. T27 A

Quadro 8 - Quantidades de toadas paulistas e seus tipos de “respostas”

Toadas Dobradas

(total de 11 toadas)

Toada Resposta Toada Resposta

T13 A T34 S4 T18 S1 T44 G T20 A T46 F T23 S2 T48 S4 T32 D T49 H T33 S3

Toada de Caminhada

(total de 3 toadas)

Toada de Falecidos

(total de 1 toada)

Toada Resposta Toada Resposta

T3 RR T36 I

T4 RR

T14 RR

Quadro 10 - Quantidades de toadas de caminhada e de falecidos e seus tipos de “resposta”

Toada Mineira

(Total de 14 toadas)

Toada Resposta Toada Resposta

T1 M T25 M T5 M T26 M T7 M T28 M T10 M T31 M T11 M T35 M T16 M T45 M T17 M T50 M

Quadro 11 - Quantidades de toadas mineiras e seus tipos de “resposta”

As toadas podem ser combinadas com os versos da seguinte maneira: os Embaixadores sempre montam seus versos em quadras, pois realizam a rima no 2º e 4º verso da quadra, isso funciona no uso de qualquer um dos sistemas de cantoria. De maneira a exemplificar o uso da quadra dentro dos sistemas, vamos utilizar uma quadra em comum para todos os sistemas, nem sempre esse texto que aparecerá na quadra de exemplo, é usado em todos os sistemas, por conta do conteúdo do texto, pois os sistemas também são direcionados para momentos específicos, assim como os textos.

Toada/Sistema (nome)

Quadra base:

“Ó minha Santa Tereza Ai minha Santa Gabriela Ai esta é a nossa Guia

Não posso cantar sem ela ai ah ai”

Mineira (T11)

Embaixador:

“Ai Ó minha Santa Tereza oi lare Ora ó minha Santa Tereza oi lare Ora oi minha Santa Gabriela oi lare Ora ó minha Santa Gabriela oi lare e

Resposta:

Ai ó minha Santa Tereza ah ai ó minha Santa Tereza ai a minha Santa Gabriela ah ai ah minha Santa Gabriela ah

Embaixador:

Ai esta é a nossa Guia oi lará Ora ésta é a nossa Guia oi lará Ora não posso cantar sem ela oi lará Ora não posso cantar sem ela oi larê ê

Resposta:

Ai ésta é a a nossa Guia oi lará Ai ésta é a nossa Guia ai ah Ai não posso cantar sem ela ah Ai não posso cantar sem ela ah

Paulista (T2)

Embaixador

Ó minha Santa Tereza Ó minha Santa Tereza Minha Santa Gabriela ah

Resposta:

Minha Santa Gabriela ai ah ah

Embaixador:

Esta é a nossa Guia Esta é a nossa Guia

Não posso cantar sem ela ah

Resposta:

Não posso cantar sem ela ai ah ah

Dobrada (T13)

Embaixador:

Ó minha Santa Tereza Minha Santa Gabriela Ó minha Santa Tereza Minha Santa Gabriela Essa é a nossa Guia Não posso cantar sem ela

Resposta:

Essa é a nossa Guia

Não posso cantar sem ela ai ah ah

Caminhada (T4)

Embaixador:

Ó minha Santa Tereza Ó minha Santa Tereza Minha Santa Gabriela Minha Santa Gabriela

Resposta:

Ó minha Santa Tereza Ó minha Santa Tereza Minha Santa Gabriela Minha Santa Gabriela ah

Embaixador:

Essa é a nossa Guia Essa é a nossa Guia Não posso cantar sem ela Não posso cantar sem ela

Resposta:

Essa é a nossa Guia Não posso cantar sem ela Não posso cantar sem ela ah

Falecidos (T36)

Embaixador:

Oi minha Santa Tereza Oi minha Santa Tereza ai ah Minha Santa Gabriela ah

Resposta:

Ó minha Santa Tereza Ó minha Santa Tereza ai ah Minha Santa Gabriela ai ah ah

Embaixador:

Essa é a nossa Guia Essa é a nossa Guia ai ah Não posso cantar sem ela ah

Resposta:

Essa é a nossa Guia Essa é a nossa Guia ai ah

Não posso cantar sem ela ai ah ah

Quadro 12 - Comparação de uma mesma quadra de versos dentro de todos os sistemas de cantoria da Folia de Reis dois Prudêncio

Anotamos logo abaixo da especificidade do sistema, qual toada foi utilizada como referência para montar os versos, pois dependendo da toada (T1, T2, etc.) as repetições de verso na primeira e na segunda parte mudam, como também os prolongamentos de “ai”, “ah”, “oi”, “larê”, etc., lembrando que, a quadra integral só acontece na primeira parte das toadas dobradas. Assim sendo, em todos os casos acima exceto na toada dobrada, e pode-se considerar todas as outras, é necessário cantar duas vezes a toada para completar a quadra de versos. Provavelmente esse formato de quadra é originário da quadra portuguesa, que contém quatro versos quase que sempre heptassílabos (sete sílabas poéticas), redondilha maior. Tem as características da “trova”, mas seu sentido é estendido conforme cantam as quadras, não finalizado apenas em quatro versos como acontece na trova. Tremura (2004) lança um dado interessante em que os Embaixadores da Folia de Olímpia, compõem as toadas escrevendo-as, chamando a bipartição da toada, que aqui nomeamos de “embaixada e resposta” de estrofe e refrão. “As canções são geralmente escritas em forma estrófica com um refrão repetido pelo grupo. A performance dessas melodias é a essência musical e social da folia de reis, porque

todos os membros participam cantando e tocando”.(TREMURA, 2004, p.60, tradução nossa)35

A exclamação “ai” está presente em todos os textos das Toadas. O uso desse tipo de interjeição também é encontrado nas descrições de Anthony Seeger em seu estudo sobre o papel da música na comunidade indígena Suyá em Por que cantam os Kisêdjê (2015). Descreve o uso de glissandos, como também outras sílabas alongadas cantadas em forma de contos sobre os mitos e rituais de cura.

Há, portanto, uma espécie de contínuo entre as formas verbais que empregam fonética contemporânea e ritmo livre (a fala cotidiano) e aquelas com possível fonética arcaica e nas quais o ritmo dita a própria forma do texto (o canto). Como meio-termo, há uma série de formas em que são costumeiramente empregados sílabas longas e glissandos para impor um padrão temporal ao texto (como nas amostras de mitos e cânticos de cura). (SEEGER, 2015, p.105)

Essa característica também é apontada por Bruno Nettl em Música folklórica y

tradicional de los continentes occidentales (1985), em que o uso de sílabas alongadas é

encontrada nos cantos indígenas americanos. Ele nomeia como “sílabas sem sentido”, um recurso de composição que aparece na maior parte das canções como “he-he” ou “ho-ho”, com finalizações descendentes, somando a função de completar as melodias (NETTL, 1985, p.197-198). Assim, como a Folia “este tipo de estructura le da gran flexibilidad al

compositor o poeta, pues le permite sustituir en la misma melodía letras antiguas por otras nuevas, o hacer pequeños cambios en las palabras para poder mantenerse al día.(...) y la misma canción podría utilizarse para diversas hazañas.” (NETTL, 1985, p.197-198)

Sin embargo, entre otros indios norteamericanos no está generalizado el uso de las sílabas sin sentido y hay melodías completas acompañadas de palabras; los temas varían desde pensamientos serios acerca de los dioses, a líricas quejas acerca del tiempo o frívolas canciones de amor. Pero las canciones de sílabas sin sentido desempeñan un papel importante, tal vez análogo al de la música instrumental. Así, hay colecciones completas de canciones que utilizan sílabas sin sentido. (...) Algunos textos indios son largos y elaborados; las canciones navajo pueden enumerar un gran número

35.“The songs are usually written in strophic form with a refrain repeated by the group. The performance of

these melodies is the musical and social essence of folia de reis, because all members participate by singing and playing.”(TREMURA, 2004, p.60)

de personas, lugares o cosas sagradas. No obstante, es más común que una oración corta o frase se repita varias veces.(NETTL, 1985, p.198)

Em um trabalhado musical e artístico, realizado em 2010 relacionado com o projeto de cultura e extensão “Perspectivas Intercambiáveis” pelo Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP, pude conferir esse uso de sílaba alongada no canto dos Paitér Surui de Rondônia, que em seus cantos esse recurso era sempre utilizado aos finais de frase de modo descendente em glissando. Seeger (2015, p.105) aponta que entre os Kisedjê existem algumas formas verbais que “empregam fonética contemporânea e ritmo livre (a fala cotidiano) e aquelas com possível fonética arcaica e nas quais o ritmo dita a própria forma do texto (o canto)”. As sílabas longas e glissandos entram como um meio-termo, empregados para impor um padrão temporal ao texto, como nos contos de mitos e cânticos de cura. (SEEGER, 2015, p.105)

Podemos suspeitar que tal recurso muito usado na Folia de Reis, pode ser proveniente de práticas musicais indígenas, não só pelo fato de complementar o tempo melódico, mas