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3 O REGISTRO COMO RESGATE E MEMÓRIA

3.8 O USO DO VÍDEO NA PESQUISA EM MÚSICA

A imagem em vídeo assume uma importância grande dentro dos registros da Folia. Para os espectadores da Folia, as imagens têm um papel de grande representatividade, pois eles se reconhecem nelas.

Refletindo um pouco sobre o papel da imagem fílmica no contato das representações humanas Yasuhio Omori em seu trabalho Estudo da Antropologia através da imagem, que faz parte da obra Descrever o visível: cinema documentário e antropologia fílmica (2009), que contou com organização de Marcius Freire, Philippe Lourdou, podemos identificar

apontamentos importantes sobre o uso desse recurso de registro. A imagem fílmica consegue captar gestos e sentimentos que dificilmente o texto ou a imagem “estática” da fotografia conseguiria, pois conta com o movimento sobreposto do tempo. “O tempo em que se dão os movimentos atribui sentido a fenômenos e revela nuances do relacionamento entre os homens; sugere sentimentos, afetos e muitas outras expressões psicológicas intraduzíveis em palavras” (OMORI, 2009, p.295). Um outro aspecto importante é que o vídeo nos dá a possibilidade de visualizar a informação de forma repetida e minuciosa, quando nos dedicamos a descrever e analisar os materiais, pois é possível voltar ou pausar a imagem quantas vezes for preciso.

É muito comum o espectador da Folia identificar-se com os registros que vê, pois geralmente essa faz parte de seu ambiente cultural,familiar e social, mesmo que não faça parte como performer do grupo:

É essa “imagem em movimento conscientizada” que gera no íntimo do espectador o efeito de identificação com a imagem vista e introduz sentimentos. Esse fenômeno “espiritual” de interferência da imagem real com a imagem psicológica é chamado de “fotogenia” (alma do retrato) (Okada, 1975, p.32). Diz-se também que essa identificação momentânea entre o espectador e as imagens é produzida por participação afetiva (Morin, 1971, p.101). (OMORI, 2009, p.300)

Exemplos interessantes são os comentários existentes em vídeos de performances de Folias de Reis que aparecem no canal Youtube na internet, em que as pessoas escrevem o tanto que elas se sentem satisfeitas em ver tal Folia ali registrada, e sempre relatam que participam, ou já participaram ou simplesmente conhecem Folia de Reis pois em suas cidades existem alguns grupos, etc. Elas veem-se contempladas nessas performances, ou seja, se reconhecem nelas. Omori fala sobre o efeito dessa identificação no espectador:

Como o espectador confronta o que vê com sua própria bagagem cultural, a imagem produz em cada indivíduo uma interpretação própria. Começando pelas ações e atitudes concretas que lhe são estranhas, esse confronto leva, por fim, à comparação de aspectos culturais peculiares a cada povo, tais como sua visão e consciência do mundo. (OMORI, 2009, p.301)

Quando nos trabalhos de campo mostrávamos alguns vídeos da Folia dos Prudêncio para as pessoas do grupo, elas sempre acrescentavam coisas àquele momento que viam nas filmagens, pois mesmo não aparecendo nas imagens filmadas, elas estavam presentes naquele dia de Folia, ou no quintal, ou em outro cômodo da casa ouvindo a cantoria. Sabemos de antemão que a Folia dos Prudêncio não foi integralmente gravada, por isso, nossas conclusões do que é e como é feito são baseadas nos registros existentes. Entretanto, lembramos que mesmo que esses momentos não tenham sido registrados pelas filmagens, eles não deixaram de ser considerados no que diz respeito ao que se vivenciou no decorrer dos anos. É muito comum ouvir nas conversas sobre os dias de giro, como foi relatada na entrevista com Chico Prudêncio (vide p.65) que “precisava ter gravado aquilo”, quando relata a emoção que circunscreveu os Foliões em uma oração de terço para uma respectiva paga de promessa de falecidos na fazenda “Ôio d’água”.

É importante que o pesquisador que faz o uso do vídeo, considere também aquilo que não foi gravado, sempre criando modos de esclarecer os acontecimentos como um todo.

Uma vez que o cinema não é, por suas próprias condições físicas, contínuo até a morte como o tempo fisiológico da vida do homem, ele apenas registra um acontecimento circunscrito num período de tempo limitado. Cabe ao espectador utilizar a imaginação para “costurar” e dar sentido às cenas captadas de um determinado acontecimento e mostradas de forma contínua. (OMORI, 2009, p.293)

Olhando para as filmagens podemos observar que o musicar (SMALL, 1999) da Folia encontra-se completamente envolvido com o local onde acontece sua música e as relações que fazem parte desse processo, pois essa é uma das características que faz com que essa Folia dos Prudêncio seja única. Completando um pouco essa ideia, no trabalho A imagem fílmica na

pesquisa etnomusicológica: contribuições para o estudo da música religiosa (2007) de

Ewelter Rocha, Glauco Vieira e Weber dos Anjos, encontramos algumas reflexões sobre a atuação da imagem fílmica na compreensão e estudo da música direcionada a ação religiosa. Os autores afirmam que “a imagem fílmica permite realizar uma leitura do lugar da música”. Esse “lugar da música” não compreende somente o entendimento de lugar espaço de atuação,

mas também o “lugar” com tudo que dele faz parte, as pessoas, a paisagem, a dinâmica social, etc.

Mais do que descrever músicas, salas, movimentos, paramentos e orações, compreender o sentido que estas coisas assumem no universo religioso traduzido pelo canto, o valor e o significado delas dentro do espaço-tempo de cada dia. A imagem aqui se apresenta como equipamento de desfragmentação capaz de organizar, reconstruir, reelaborar o que está apartado espacial e temporalmente, direcionando o olhar-a-imagem para o sentido que foi percebido e também sentido, no olhar-a-realidade. (ROCHA, VIEIRA, ANJOS, 2007, p.6-7)

A imagem fílmica, portanto, faz com que recuperemos parte da realidade daquele momento. Para aqueles que filmam a Folia, o material torna-se de valor inestimável, pois guarda ações de pessoas queridas já falecidas, “trazendo-as à vida” a partir do momento em que o vídeo começa. Suscitam neles diversos sentimentos e inúmeras memórias, expondo a eles sua própria formação, sua identidade, aqueles que os ensinaram como se canta uma toada, ou o que é a Folia de Reis, proporcionando a manutenção e reafirmação de sua formação cultural, como se começassem a aprender de novo sobre a Folia, trazendo um sentimento de perpetuidade.