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1. TV PÚBLICA E POLÍTICAS CULTURAIS NO BRASIL: TRAJETÓRIA, INTERSEÇÕES E EMBATES

1.2. INAUGURAÇÕES: PRECARIEDADE, ELITISMO E CRIATIVIDADE

1.2.1 Políticas para a comunicação do Estado Novo

Data também deste período o primeiro instrumento normativo brasileiro que menciona o termo “radiotelevisão”, estabelecendo as condições para concessão de serviços radiofônicos e

42 A outra iniciativa, constantemente reivindicada como inauguradora por estudiosos das políticas culturais

(RUBIM, 2010, BARBATO Jr., 2004 etc.), é a passagem de Mário de Andrade pelo Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, entre os anos de 1935 a 1938. Embora se refira a uma experiência de gestão municipal, sua atuação inovadora frente ao Departamento extrapola os limites da cidade, devido ao seu caráter inovador em: propor uma intervenção estatal sistemática abrangendo distintas áreas da cultura; ampliar o conceito de cultura a ser trabalhado pela gestão pública, para além das belas artes e do patrimônio material e tangível; patrocinar duas missões etnográficas às regiões amazônica e nordestina para pesquisar seus acervos culturais, ainda que deslocadas de sua jurisdição administrativa, dentre outras relevantes intervenções.

43 No ano de 1937 o órgão passa a intitular-se Ministério da Educação e Saúde (MES).

44 Ambas as instituições foram criadas em 1937, através da Lei nº 378, que reformulou o Ministério da Educação

e Saúde (MES) – anteriormente Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública (MNESP) –, ao qual estavam vinculadas. Cabe ressaltar que o SPHAN, depois transformado em Instituto ou Secretaria, tornou-se uma das instituições mais emblemáticas da política cultural no país, em especial até o final dos anos 1960 e início da década seguinte.

45 Para além da vinculação das ações e iniciativas do âmbito da cultura ao MNESP e, posteriormente ao MES, é

sintomático o discurso do Presidente Getúlio Vargas, citado por Anita Simis (1996, p. 31): “Associando ao cinema o rádio e o culto racional dos desportos, completará o Governo um sistema articulado de educação mental, moral e higiênica, dotando o país dos instrumentos imprescindíveis à preparação de uma raça empreendedora, resistente e varonil”.

fixando as exigências técnicas a serem seguidas pelos concessionários, através do decreto n.º 20.047 de 1931. O Estado é, então, designado como poder concedente do serviço, “considerado de interesse nacional e de finalidade educacional”, e a empresa privada como sua operadora principal46. É dada a largada ao processo de conversão do rádio – então configurado como aparelho de uso restrito e experimental, cujas emissoras organizadas em sociedades e clubes transmitiam uma programação de cunho erudito e lítero-musical – em um meio de comunicação de massas de caráter empresarial, com programação de caráter popular. (SIMIS, 2006)

No ano seguinte, o Decreto n.º 21.111, que regulamenta o decreto n.º 20.047, define serviços, constitui padrões técnicos, impõe uma política tarifária para o setor e sistematiza o processo de outorga para os serviços de radiodifusão, estabelecendo o prazo de dez anos para as concessões (MARTINS, 2007). Ademais, contribuindo para a ascensão da utilização comercial do serviço radiofônico, fixa a publicidade no rádio em, no máximo, 10% do tempo total de irradiação de cada programa, com duração inferior a 30 segundos por anúncio47.

Segundo Othon Jambeiro (2002), estas duas legislações, precursoras da regulamentação dos serviços de radiodifusão, antecipam a existência da televisão, criando conceitos que se fixam no setor, a exemplo de: bem público, serviço público, interesse nacional, propósitos educacionais.

Destas noções, o conceito de serviço público mostra-se especialmente relevante. Suzy dos Santos e Érico da Silveira, no artigo Serviço Público e Interesse Público nas Comunicações (2007), atentam para a importância desta noção, tradicional em países da Europa Ocidental que priorizam a adoção do modelo de televisão pública, como o Reino Unido, por exemplo. O seu uso considera a obrigatoriedade do Estado em garantir o direito dos cidadãos à comunicação, em contraponto à noção de interesse público, ligada à tradição estadunidense, que se refere às condições de cessão do espectro para a exploração de serviço privado.

A qualificação de uma dada atividade como Serviço Público remete ao plano da escolha política, que pode estar fixada na Constituição do país, na lei, na jurisprudência e nos costumes vigentes em um dado momento. Deflui-se, portanto, que não há um serviço público por natureza. (GROTTI, 2003 apud SANTOS; SILVEIRA, 2007, p. 77)

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Tais serviços também poderiam ser executados por sociedades civis ou pela União. (BRASIL, 1931).

47 No ano de 1934, o Decreto nº 24.655 amplia o tempo destinado à propaganda comercial para até 20 % do

tempo total de irradiação de cada programa, bem como o tempo de cada anúncio, que não poderia ser superior a 60 segundos (BRASIL, 1934).

Ou seja, à escolha do termo serviço público, subentende-se uma pretensão política para a radiodifusão como um bem que pertence a todos. Nesse sentido, o teórico colombiano Germán Rey Beltrán traz à baila o fato de que “todas as televisões têm um sentido público, como é explicitado na lei colombiana, quando nos seus primeiros artigos define a televisão como sendo um serviço público” (2002, p. 93). Ao contrário da colombiana, a legislação brasileira não especifica a concessão do serviço de radiodifusão como um serviço público e tampouco de interesse público, embora a caracterize como de interesse nacional. Tal omissão se mantém até os dias de hoje48.

[o] que existe no Brasil é uma espécie de ‘meio do caminho’ entre o conceito clássico de Serviço Público — tal como originário na regulamentação britânica — e o conceito mais elástico de interesse, necessidade e conveniência pública originário da regulamentação dos Estados Unidos (SANTOS; SILVEIRA, 2007, p. 79).

Mesmo sem explicitar a opção por um dos dois modelos de gestão do espectro eletromagnético, o Decreto n.º 20.047, seguindo a lei estadunidense de radiodifusão, institui no país o trusteeship model, no qual o Estado permite sua exploração comercial, por tempo determinado e sob condições específicas (BRASIL, 1931).

Já em relação ao âmbito cinematográfico, é promulgado o decreto n.º 21.240 de 1932, que abrange questões relativas a diversos setores, dos quais a censura, e sua nacionalização, recebem especial atenção. São abordados aspectos como o cinema educativo e comercial, estabelecimento de taxas e tarifas, estruturação de um órgão estatal etc. Mais que uma legislação que contemple os interesses envolvidos, seu objetivo é “disciplinar a atividade, sem mediações” (SIMIS, 2006, p. 05).

Apesar das intervenções no contexto da regulamentação da comunicação de massa e da tentativa de interferência DIP no rádio e no cinema, Renato Ortiz (1988) observa que a implantação de uma política voltada para os meios de comunicação de massa se dá de forma tímida. O Estado se recusa a impulsionar o surgimento de uma indústria cinematográfica nacional, resumido sua atuação às atividades do Instituto Nacional do Cinema Educativo, que tem como propósito “...promover e orientar a utilização da cineamatographia, especialmente como processo auxiliar do ensino, e ainda como meio de educação popular em geral”

48 A Constituição do Brasil, por exemplo, não faz referência a qualquer destes dois conceitos. Além disso,

passados vinte anos de sua promulgação, todo o Capítulo V, que trata da Comunicação Social, não foi regulamentado.

(BRASIL, 1937, online). A produção do Instituto se divide entre filmes escolares e populares, fartamente distribuídos, para além das escolas, em centros operários, agremiações esportivas e sociedades culturais. (SIMIS, 1996)

Em relação à radiodifusão, apesar do reconhecimento de sua finalidade educativa e seu caráter de “serviço de interesse nacional”, é um período de florescimento de emissoras comerciais, impulsionadas pelo Decreto n.º 21.111, ainda que sob forte controle do Estado. As motivações, ainda segundo o autor, são de ordens econômica e política: a inviabilidade da criação, pelo Estado, de uma rede oficial de rádio operada em âmbito nacional – devido ao alto custo do empreendimento diante das parcas possibilidades tecnológicas do período –, bem como a necessidade de composição política com o capital privado, diretamente interessado no setor radiofônico (ORTIZ, 1988).

Neste período, duas experiências pontuais de gestão estatal de veículos radifônicos suscitam, de maneira inaugural, a intervenção direta do Estado na radiodifusão: a doação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro ao governo federal em 1936 e a incorporação da Rádio Nacional ao patrimônio do Estado quatro anos depois.

A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, fundada em 1923 por Edgar Roquette Pinto e Henrique Morize, é a primeira rádio a realizar transmissões regulares no Brasil. Com fins informativos, culturais e educativos, e pensada em moldes públicos, a emissora deveria ser sustentada pelo pagamento de uma contribuição pelos rádio-ouvintes. O fracasso financeiro da iniciativa, porém, culmina em sua doação ao governo federal. (JAMBEIRO, 2002)

A transferência da Rádio Sociedade, que posteriormente torna-se conhecida como Rádio MEC, para o Estado é condicionada à manutenção do caráter educativo da emissora, à não veiculação de publicidade e ao seu atrelamento ao Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública, motivos pelo qual, desde então, “ela vem sendo operada pelo executivo federal nesses moldes, com foco nas artes, especialmente música, eruditas”. (VALENTE, 2009d, p. 270).

As condições impostas por Roquette Pinto, segundo Laurindo Leal Filho (1988), trazem consequências que influenciam as políticas estatais para o setor até os dias de hoje, no que diz respeito à indefinição e disputa quanto ao controle das emissoras estatais entre os ministérios das Comunicações e da Educação; e à “ilusão” de que o rádio e a TV devem atuar como veículos de socialização da cultura e da educação.

A primeira consequência é resultado da cláusula do termo de doação que impede a comercialização dos horários das emissoras educativas. Com isso, o Ministério das Comunicações fica impedido de absorver essas emissoras, uma vez que veicula publicidade nas estações de rádio e televisão sob seu controle, apesar de todo o empenho dos governos militares em centralizar de forma absoluta o serviço de radiodifusão estatal. [...] A outra consequência, do caráter educativo que devem ter todas as emissoras de radiodifusão, estatais, ou não, acabou justificando a implantação da rede de emissoras de rádio e televisão educativas por parte do governo e a criação de fundações públicas e privadas que passaram a funcionar com subvenções do Estado. (p. 37)

Embora se trate de uma ação pontual e isolada, a ausência de uma clara diretriz estatal para a radiodifusão, torna o documento de doação da Rádio Sociedade o precursor de todo um delineamento político aperfeiçoado durante o período militar, que, paradoxalmente, contraria a plena consecução das políticas voltadas para o setor49.

A Rádio Nacional, por sua vez, é um exemplo emblemático da política do Governo Vargas no campo da comunicação. Inaugurada em 1936, como parte integrante do grupo de empresas A Noite50, a emissora é incorporada ao patrimônio do Governo Federal quatro anos depois. Com autonomia financeira e manutenção via receita publicitária, totalmente reaplicada em seu benefício, a empresa permanece por cerca de quinze anos como a mais importante rádio da América Latina. Entre as décadas de 1940 e 1950, seus anúncios são os mais caros e concorridos do Brasil (AZEVEDO, 2002).

Foi também esta rádio que iniciou transmissões experimentais de televisão na América Latina em 1946. Por razões até hoje inexplicadas, contudo, apesar de ela ter apresentado ao governo um plano para a utilização do novo meio, coube a Assis Chateaubriand e seu império – Emissoras e Diários Associados – a primazia da primeira concessão brasileira de TV (JAMBEIRO, 2002, p. 50-51, grifo nosso).

No entanto, o modo ambíguo como o Governo Vargas conduz suas ações no campo da comunicação de massas, como explicitado acima, nos leva a considerar que a razões para a recusa estatal em inaugurar a primeira emissora de televisão da América Latina, conforme o plano da Rádio Nacional, não são tão “inexplicáveis”, como assevera Jambeiro.