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2. POLÍTICA CULTURAL E TV PÚBLICA: AGENDAMENTO E MOBILIZAÇÃO

2.3. MOBILIZAÇÕES QUE PRECEDEM A EBC/TV BRASIL

2.3.3 A proposta da Ancina

148 O cordel da TV Digital é um manifesto escrito pela jornalista e poeta Luciana Rabelo, do coletivo Ventilador

Cultural, movimento em prol da democratização da comunicação. Cf: http://www.youtube.com/watch?v=JZk1Xc9CRuI e http://ventiladorcultural.blogspot.com.br/.

149 Domingues da Silva (2011, p. 163-164), esclarece que “no contexto da TV Digital a reserva para cada

emissora de 6 MHz utilizados em transmissões analógicas representaria uma subutilização do espaço espectral”.

150 Consiste na transmissão de múltiplas programações simultâneas de televisão da frequência designada para

que a emissora transmita seu sinal digitalizado (DOMINGUES DA SILVA, 2011).

151 Na avaliação do presidente da Rede Bandeirantes, João Carlos Saad, não há patrocinadores suficientes no

mercado para financiar os meios que ingressariam no mercado através da multiprogramação (ZIMMERMANN, 2006).

Em agosto de 2004, o MinC submete à consulta pública um pré-projeto de lei, com o intuito de transformar a Ancine em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), que vinha sendo elaborado pelo Ministério e pelo Conselho Superior de Cinema há 14 meses, em diálogo com diversos setores. Após o recebimento das críticas e contribuições, o texto deveria retornar ao Conselho para ajustes e posterior entrega à Casa Civil, órgão responsável por seu encaminhamento ao Congresso Nacional. (BRASIL, 2004b)

Dentre as atribuições previstas para a Ancinav constam a fiscalização e regulação de qualquer plataforma de transmissão de conteúdos audiovisuais e cinematográficos, além da articulação das políticas públicas para o setor. O texto, acompanhado de uma Exposição de Motivos, ressalta ainda a ampliação do conceito de audiovisual, abrangência dos segmentos deste mercado e o combate à monopolização. (BRASIL, 2004b, 2004c)

O documento é alvo de duras críticas e de uma intensiva desqualificação, em especial no que diz respeito ao seu caráter “autoritário” e “dirigista”. A proposta descontenta grandes produtores e criadores (cineastas como Arnaldo Jabor e Cacá Diegues), empresas de radiodifusão152, diversos articulistas da mídia impressa (de veículos como Folha de São Paulo, jornal O Globo, O Estado de São Paulo etc.) e mesmo da Motion Picture Association of America (MPAA)153 (LIEDTKE, 2008). No Governo Federal, o MinC não obtém o respaldo necessário para a consecução da proposta, que suscita confrontos com outros órgãos.

A Ancinav também encontra defensores. O Congresso Brasileiro de Cinema (CBC), por exemplo, faz um manifesto pró-Ancinav, que obtém 344 assinaturas154. O anteprojeto representa, segundo o texto, um “efetivo instrumento para o desenvolvimento do setor audiovisual com ênfase no apoio à produção independente” (VILLALBA, 2004, online). Outras entidades – como a Associação Paulista de Cineastas (Apaci), a Associação Brasileira de Produtores Independentes de Televisão (ABPI-TV), Associação dos Produtores e Realizadores de Filmes de Longa Metragem de Brasília (Aprocine), Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas (ABD), a Associação de Produtores do Norte/Nordeste (APCNN), bem como um grupo de quarenta cineclubes de oito estados – também se pronunciam a favor do processo de regulamentação do audiovisual e da instituição de uma agência reguladora (DOCUMENTAÇÃO..., 2004).

152 Em especial representadas pela Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que reúne

as principais emissoras comerciais de televisão do Brasil.

153 A poderosa associação estadunidense é formada pelos seis maiores estúdios dos EUA: Disney, Sony,

Paramount, Twentieth Century Fox, Universal e Warner.

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O projeto da Ancinav indica um maior controle social sobre a programação das empresas de TV aberta e de TV a cabo, mesmo que não estabeleça qualquer mecanismo efetivo de controle social sobre os conteúdos audiovisuais. No entanto, a leitura atenta do documento comprova que o projeto traz, de fato, itens que poderiam ser interpretados como possíveis meios de censura155. Reconhecendo o caráter dúbio do texto, o MinC procede a eliminação ou reformulação dos itens que fazem menção a qualquer tipo de ressalva ou censura ao conteúdo audiovisual na primeira revisão do projeto, após a consulta pública.

A atitude não é suficiente para abrandar as críticas, já que a proposta mantém outros pontos de divergência – não tão nobres ou irrefutáveis como a liberdade de expressão –, com as grandes produtoras, incluindo a Globo Filmes, e distribuidoras internacionais e nacionais. São eles: a instituição de impostos pela aquisição de espaço publicitário em suportes audiovisuais para o anúncio de obra cinematográfica ou videofonográfica e a taxação progressiva do setor cinematográfico (BRASIL, 2004b). A base de incidência da contribuição é consideravelmente elevada a fim de viabilizar o Fundo Nacional para o Desenvolvimento do Cinema e do Audiovisual Brasileiros, com o objetivo de transferir recursos de grandes produções para a produção independente. Além disso, as taxas incidem de maneira sobreposta em diversos momentos da cadeia, o que elevaria o custo final do produto audiovisual.

O então Secretário Executivo do MinC, Juca Ferreira, no artigo Ancinav: omissão ou missão?, publicado em 2004, enfatiza que a cobertura jornalística do anteprojeto não menciona, porém, as razões e o destino dos recursos e tampouco sobre as vantagens dos incentivos fiscais apresentados. “Propomos incentivos para aumentar a produção de teledramaturgia e outros conteúdos em parceria com os produtores independentes, assim como incentivos para os anunciantes de filme brasileiro na tevê”. (FERREIRA, 2013a, p. 54) Deste modo, os valores a serem pagos retornam ao mercado ao fomentar a programação produzida de forma independente e qualificada, a ser veiculada nas próprias emissoras.

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Exemplo disso é o Art. 33, que delega à Ancinav a competência para dispor sobre “a responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção da programação”, ou o inciso I do Art. 8º, segundo o qual “a liberdade será a regra, constituindo exceções, as proibições, restrições e interferências do Poder Público” (BRASIL, 2004b)

Neste embate, as Organizações Globo emergem como importante agente na propagação de ideias contrárias à Agência156. Orlando Senna, ao avaliar o período, revela que o grupo empresarial havia participado do processo de negociação, anterior à publicização do debate:

Sabíamos exatamente os monstros e os paredões hegemônicos que a gente tinha de enfrentar e que continuamos enfrentando. [...] sabíamos perfeitamente do seu potencial de fogo. O que houve sim foi uma jogada bastante, digamos assim, perversa por parte da Globo, que vinha conversando com a gente de uma maneira bastante saudável, inclusive as reuniões eram no nível da direção máxima das Organizações Globo e em nível ministerial, ou seja, o ministro fazia parte dessas reuniões e estava andando de uma maneira que nos parecia saudável. Claro que, no momento em que fizéssemos a proposta, a Globo ia ter reações com relação a alguns aspectos da proposta. [...] Mas o que a Globo fez foi o contrário, foi dizer que quando a gente colocou a proposta para estudo, a ante-proposta, o pré- projeto, para que as pessoas pudessem lê-lo e estudá-lo, a Globo anunciou que estávamos mandando para o Congresso. (SENNA, 2009. p. 170).

É interessante perceber como protagonistas do Ministério nomeiam abertamente os agentes e interesses envolvidos no processo e seus correspondentes posicionamentos. No auge dos debates, em agosto de 2004, o então ministro Gilberto Gil, quando inquirido sobre a reação da emissora ao projeto, em entrevista à Folha de São Paulo, pondera:

Ela, de certa forma, bloqueia o diálogo e o processo de discussão. É como se a Globo tivesse dito: ‘Essa proposta não discutimos’. Ao contrário, tem que discutir. Nós fomos lá, tudo isso tem sido posto na mesa o tempo todo. Assim como a Globo disse que há aparências de intervencionismo - que não há -, poderíamos dizer que há uma intenção de sustar o diálogo, uma rejeição absoluta por parte da Globo (ri). Nosso pressuposto é de que a Globo vai, junto com todos nós, trabalhar dentro das regras da convivência democrática, do diálogo, do aperfeiçoamento das instituições.

Se equalizar tudo isso, provavelmente aqui ou ali interesses serão minimamente contrariados. A indisposição para a mínima contrariedade é antidemocrática. (GIL, 2004, online).

Os números relativos à participação ativa da mídia, definida por Nelson Hoineff (2004) como “principal campo de batalha” na guerra da Ancinav, dão conta da capacidade de articulação da imprensa, junto às grandes emissoras de televisão. São reveladores os dados levantados por Simone Caldas da Silveira (2005, apud LIEDTKE, 2008, p.13).

Entre o dia 06 e 31 daquele mês [agosto de 2004] foram publicadas 1037 matérias, notas, editoriais ou artigos sobre o assunto nos jornais, revistas e noticiários on-line. A maioria, francamente negativa, explorava itens considerados pelos articulistas como nocivos à liberdade de expressão. De

156 Conforme se depreende dos posicionamentos adotados por artigos e manifestos de conhecidos articulistas do

grupo, a exemplo de Míriam leitão e Arnaldo Jabor, do vice-presidente das Organizações Globo, João Roberto Marinho e da própria Abert, todos publicados em jornais de grande circulação na época.

01 de setembro a 31 de dezembro foram publicados outros 1.704 textos citando a Ancinav. Trocando em miúdos, em agosto foram publicadas uma média de 34,5 matérias por dia. Em dezembro, foram 10,5. Para efeito de comparação, junho de 2005 terminou com apenas 0,96 citações diárias em artigos de críticas generalizadas ao governo Lula. [...] Seus autores invariavelmente deixaram de aprofundar na discussão dos temas centrais do anteprojeto; o volume de críticas crescia nos dias que antecediam as reuniões do Comitê Civil do Conselho Superior de Cinema; e as matérias se limitaram a expor alguns pontos considerados mais polêmicos pela cadeia produtiva do setor audiovisual (produtores, exibidores, operadoras etc.).

Apesar da forte oposição, o presidente Lula, em novembro de 2004, ainda acredita na criação da Ancinav. Durante cerimônia de entrega da Ordem do Mérito Cultural, ele pede o apoio dos artistas e dirigentes de entidades premiados e afirma que o projeto enfrentava dificuldades por mexer com mudança de “hábitos e costumes”. A previsão, no momento, é de que o projeto seja encaminhado ao Congresso até dezembro. (LULA DA SILVA, 2004).

No entanto, visto que o tema segue provocando desgastes para o Governo, é realizada uma reunião entre o Presidente Lula, o Ministro Gilberto Gil e ministérios de setores estratégicos, em janeiro de 2005. Segundo matéria publicada no jornal O Globo, este encontro é uma forma de o Planalto passar a ter o controle do projeto.

Um dos mais enfáticos críticos foi o ministro interino da Justiça, Luiz Paulo Barreto, que chegou a pôr em dúvida a constitucionalidade de alguns itens. Também criticaram a proposta os ministros Eunício Oliveira (Comunicação) e Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento).

O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, disse a Gil que sua assessoria fez uma avaliação negativa do projeto. Em comum, os ministros críticos ao projeto alertaram sobre o dirigismo cultural contido na proposta e até mesmo sobre eventuais interpretações de censura. (BRAGA; CAMAROTTI; JUNGBLUT, 2005)

Creditando a informação a “ministros”, o texto cita, ainda, a seguinte declaração do Presidente Lula: “Não imaginava que tivesse tanta divergência. Como não há consenso, não podemos pôr o assunto em pauta no Congresso. É preciso encontrar uma posição unitária do governo” (Idem, Ibidem).

Após a reunião, o governo anuncia o encaminhamento ao Congresso Nacional de uma nova proposta de legislação contemplando apenas os setores de fomento e de fiscalização na área da produção audiovisual. O argumento utilizado é de que a criação da agência deve ser posterior à instituição do marco regulatório amplo do setor. Parte-se do princípio geral, conforme aponta Liedtke (2008) de que as agências, autônomas em relação ao governo, devem se pautar por regras já estabelecidas. Um exemplo desta forma de ordenamento

jurídico é a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), criada pela Lei Geral de Telecomunicações.

2.3.3.1 Recuo ou avanço?

Em declaração para o jornal O Globo o ministro Gil nega que a decisão do governo seja um recuo na proposta de criação da Ancinav. “O presidente deixou claro que quer que se continue fazendo a agência de fomento e fiscalização e que se faça a lei de comunicações para respaldar. E que tudo seja feito pelo grupo”. (BRAGA; CAMAROTTI; JUNGBLUT, 2005)

O que se observa após a reunião, porém, vai de encontro à declaração do Ministro. Apesar da publicação, em dezembro de 2006, da Lei nº 11.437, que altera a destinação de receitas da Codecine, prorroga e institui mecanismos de fomento voltados para a atividade audiovisual e cria o Fundo Setorial do Audiovisual (BRASIL, 2006e). O papel da Ancine não é alterado durante o Governo Lula e sequer é aventada sua abrangência no sentido de se instituir uma “agência de audiovisual”. Em outras palavras, o projeto, que sequer chega a ter uma versão final, é esvaziado.

Alguns anos após o episódio, Gil avalia a “jogada” como um erro tático, diante da mobilização dos outros atores/protagonistas da crise.

O que havia, o que é que acontecia ali naquele momento? Primeiro, a capacidade de resistência ainda muito maior por parte das forças do

anacronismo, das forças do modelo anterior, do modelo que está indo para sua extinção; segundo, uma inabilidade nossa, no sentido que

devíamos ter sido mais cautelosos, talvez tivéssemos guardados para maturar politicamente, costurar [...] Nossa capacidade de conquistar apoios, de convencer do valor estratégico daquele salto, que nos fortalecesse, que nos desse capacidade de composição com parceiros suficientemente fortes ou que ao nosso lado nos faria suficientemente fortes para nos opor aos

interesses conservadores, se nós tivéssemos tido essa habilidade, talvez

estivéssemos falando em Ancinav agora, como fizemos com a Lei Rouanet, esperamos amadurecer e tal. Mas, de todo modo, foi um gesto importante que eu associo a uma similaridade com uma desobediência civil. É como se o Ministério da Cultura tivesse feito ali um ato de desobediência civil [...] dentro do próprio Governo (GIL, 2008, p. 208, grifos nossos).

Nesta avaliação, é interessante perceber também a caracterização pelo Ministro Gil dos outros agentes implicados na situação como “conservadores” e “anacrônicos”. Por outro lado, salientamos ainda, conforme já dito, as “forças do anacronismo” também se situam dentro do próprio Governo.

Por outro lado, o projeto da Ancinav traz à agenda pública a necessidade de formatação e cumprimento de políticas culturais efetivas para as comunicações, de forma mais ampla, por meio do setor audiovisual. Com base nesse argumento, que Orlando Senna refuta a avaliação de que haveria uma precipitação em trazer o tema a público.

A escandalosa polêmica da Ancinav revelou a dimensão e a gravidade da questão audiovisual para a sociedade brasileira, que as ignorava porque isso sempre tinha sido assunto de gabinete, de portas fechadas, de decisões dos grupos mais poderosos da atividade impostas a governos ignorantes. A questão foi posta a nu diante da Nação e do governo, que se assustou muito. (SENNA, 2008a, p. 379)

Em concordância com esse ponto de vista, Manoel Rangel acrescenta que o tema da regulação audiovisual permanece “como um cadáver insepulto, cobrando a atenção do governo, dos agentes econômicos, da sociedade civil, do parlamento” (2013, p. 08). Ele aponta, ainda, que esta primeira mobilização resulta no surgimento de um conjunto de projetos157, tanto na Câmara dos Deputados, como no Senado Federal, propondo um novo e avançado marco regulatório da televisão por assinatura, com o acompanhamento da Ancine, durante toda a tramitação e debate do projeto de lei, aprovado em 2011 (BRASIL, 2011).

Orlando Senna (2008a), por sua vez, também ressalta como resultado prático do embate a nomeação do Grupo de Trabalho Interministerial para elaborar um anteprojeto de uma Lei Geral de Comunicação Eletrônica. Este intento, sobre o qual nos debruçaremos a seguir, também não se concretiza durante a gestão de Lula.