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2. POLÍTICA CULTURAL E TV PÚBLICA: AGENDAMENTO E MOBILIZAÇÃO

2.3. MOBILIZAÇÕES QUE PRECEDEM A EBC/TV BRASIL

2.3.1 O Projeto DocT

No artigo Biografia precoce do DocTV (2011), Orlando Senna narra que, ao assumir a Secretaria de Audiovisual, uma das operações prioritárias e emergenciais era garantir ao órgão, que havia se comportado até então “como um departamento cinematográfico” (p. 15), a abrangência anunciada em seu nome. Naquele momento, a única iniciativa que cumpre com essa premissa é o canal de televisão por assinatura TV Cultura e Arte, que custa quase um terço do orçamento da Secretaria. Com um pouco menos de dois anos de operação, a programação do canal é exibida pela TV Escola e nas operadoras Sky (canal 26), Tecsat (canal 4) e Directv (canal 237). (MINC TIRA..., 2003)

Tendo em vista o baixo impacto obtido pela iniciativa na gestão anterior, Senna (2011, p. 15) explica a escolha política da equipe que assume a SAv:

A TV Cultura e Arte foi extinta imediatamente para dar passagem a projetos relacionados à TV aberta, como a TV Brasil, a montagem de uma rede de canais públicos e os vários programas de produção/teledifusão, com destaque inegável para o DocTV, o primeiro a ser posto em prática.

Assim, o DocTV começa a ser desenhado no início de 2003. Desenvolvido em parceria com a TV Cultura e a Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), o programa se revela uma iniciativa pioneira de fomento à parceria entre a TV pública e a produção independente. Sua constituição toma como base a experiência do Núcleo de Documentários da TV Cultura. Coordenado por Mário Borgneth, o Núcleo realiza documentários em coprodução com produtores independentes de todo o país, e os exibe na rede de canais públicos141 em uma faixa intitulada DOC.BRASIL. Os recursos provêm da TV Cultura/Fundação Padre Anchieta e de leis de incentivo. (BORGNETH, 2013)

Identificada uma experiência inicial a ser desenvolvida, e garantido o orçamento para sua concretização, Mário Borgneth é convidado a colaborar para a construção do DocTV, do qual se torna coordenador do setor de rede e distribuição. Ao documentarista Paulo Alcoforado cabe a produção e a articulação com a Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-metragistas (ABD).

O Programa abarca diversos momentos da cadeia audiovisual (criação, produção, difusão e formação); promove circuitos de teledifusão por meio da articulação entre a produção independente representada pela ABD, emissoras de caráter público e o Estado142 (nos âmbitos transnacional, federal e estadual); incentiva o mercado audiovisual sob uma perspectiva regionalizada; bem como contribui para a promoção da diversidade cultural, por meio da ampliação do conhecimento das diferentes expressões culturais. Em suas quatro temporadas, o DocTV Brasil tem 3.000 projetos inscritos em 100 concursos estaduais, selecionando e coproduzindo 170 documentários (BRASIL, 2010a).

A abertura de mercados para o documentário brasileiro, um dos mais destacados objetivos do DocTV, é promovida por meio da exibição dos filmes pelas emissoras regionais, do incentivo à aplicação de recursos no projeto em âmbito regional e da valorização dos seus espaços de mídia (MOREIRA, BEZERRA, ROCHA, 2010). Por outro lado, o Programa também contribui para a institucionalização do segmento audiovisual no país. Um exemplo é o estímulo à instituição de regionais da ABDs nos estados onde esta entidade não existia, o que permite sua nacionalização efetiva. Do mesmo modo, existiam emissoras associadas à Abepec em apenas 19, das 27 unidades da federação, o que motiva a realização da primeira

141 Conforme já visto, a Rede Pública de Televisão (RPTV), embora resulte na constituição de uma arquitetura

de rede constituída nacionalmente, mantém a retransmissão voluntária de alguns programas da TV Cultura e da TVE por outras geradoras estaduais.

142 A SAv é responsável por 80% da verba; e cada canal ou órgão de cultura envolvido, por 20%, a título de

edição do DocTV apenas em 20 Estados143. A partir da segunda edição, porém, logra-se abranger todo o país por meio de parcerias com emissoras locais, em sua maioria de caráter público144, e mesmo das instituições responsáveis pela cultura. Neste último caso, a Secretaria de Estado da Cultura do Amapá e a Fundação Cultural de Porto Velho (Rondônia), criam estratégias alternativas de difusão (CAETANO, 2011).

Em 2006, o Programa torna-se um modelo de política pública, expandindo-se para outros países. O DocTV América Latina (nos demais países, DocTV Latinoamerica) é desenvolvido no âmbito da Conferência de Autoridades Cinematográficas Iberoamericanas (CACI), que congrega a maioria dos países latinoamericanos, além de Portugal e Espanha. Na primeira edição, a parceria viabiliza a realização de 13 documentários; na segunda, lançada em 2009, são 14; e a terceira edição, divulgada dois anos depois, promove a realização de 15 filmes, exibidos em 18 canais de caráter público do continente. Também é instituída uma Rede DocTV no âmbito latinoamericano, articulando autoridades audiovisuais nacionais e as emissoras do campo público de quinze países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, México, Panamá, Peru, Porto Rico, Uruguai e Venezuela (Idem, ibidem).

Já em 2009, é lançado o DocTV CPLP, que reúne os países membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste), além do território de Macau, que se encontra em processo de adesão à comunidade. A EBC/TV Brasil é parceira, em território nacional, na teledifusão das séries internacionais do programa. (MOREIRA, BEZERRA, ROCHA, 2010)

Apesar do êxito do DocTV, a gestão da SAv pós-Gil/Juca145 não tem se manifestado pela continuidade da versão nacional do programa.

2.3.1.1 DocTV: impulsionando uma rede pública de televisão

143 No Estado do Mato Grosso, o DocTV I e II são realizados com a TV Universidade, da Universidade Federal

de Mato Grosso. As duas edições seguintes são coproduzidas pela TV Mais, filiada à rede CNT – Central Nacional de Televisão. (CAETANO, 2011)

144 Este é o caso dos Estados do Acre (TV Aldeia); Goiás (TV Brasil Central); Paraíba (TV Universitária da

Paraíba); Piauí (TV Antares, que posteriormente se associa à Abepec); e Roraima (TV Universitária de Roraima). (CAETANO, 2011)

145 Ao assumir a Presidência do Brasil em 2011, Dilma Roussef nomeia como Ministra da Cultura, a cantora Ana

de Hollanda, que após uma atuação marcada pela interrupção de uma série de ações da gestão anterior e por constantes protestos da comunidade cultural, é substituída pela então Senadora Marta Suplicy.

Em relação às emissoras de caráter público, conforme visto, para que o DocTV alcance, de fato, todo o país, se faz necessário uma intensa costura política para a construção de uma parceria com os governos estaduais, em especial os que pertencem a grupos de oposição (SENNA, 2011). As negociações, iniciadas ainda em 2003, obtêm êxito total, no que diz respeito à inclusão de todas as unidades da federação, já na segunda edição.

A sedução do programa, tanto sob o aspecto cultural (diversidade, regionalização, integração) como no aspecto negocial (programação a baixíssimo custo), suscitou a adesão de emissoras que não estavam na Abepec, compondo uma rede integrada por 20 Estados, na primeira edição, e por todas as 27 unidades da federação na segunda edição. Como aconteceu com a ABD, também a Rede Pública de Televisão alcançou dimensão nacional a partir do DocTV. (SENNA, 2011, p. 18)

Como consequência, o circuito nacional de teledifusão articulado pelo DocTV contribui para um maior diálogo e intercâmbio entre as emissoras do país. Por outro lado, embora o programa não tenha contribuído para a ampliação do número de afiliadas à Abepec, a ênfase na entidade enquanto instância articuladora fortalece e potencializa o seu caráter representativo.

Para Mário Borgneth, um dos aspectos do DocTV que merece destaque é a recuperação do tema da televisão nas políticas culturais.

A TV pública se redescobriu com o DocTV, seja na apreciação do público, seja na reaproximação com o setor artístico e cultural, seja na reconstrução interna de um sentido de identidade, de resgate de missão, por vezes esquecido em meio ao oceano de dificuldades econômicas e estruturais em que a larga maioria dessas emissoras se vê mergulhada. (BORGNETH apud CRESPO, 2011, p. 31)

Orlando Senna destaca também, dentre os avanços logrados, um aspecto do domínio do simbólico na política que embasa o programa: a permissão e instrumentalização do cidadão para o acesso à programação televisiva.

O direito do cidadão não termina no direito de acesso à televisão, de acesso ao cinema, às telas do cinema, às telas da televisão, ou seja, esse direito do cidadão também vai até os meios de produção, as pessoas têm que ter acesso aos meios de produção. Não para ser um grande produtor audiovisual, não para ser um grande cineasta, mas porque esta linguagem e esta tecnologia, cada vez mais, fazem parte de nossa vida cotidiana (SENNA, 2009, p. 162).

O DocTV reforça, dessa maneira, a função pública dessas emissoras ao radicalizar a premissa de que a programação também deve ser “feita pelo público” (RUMPHORST, 2007)

Por outro lado, em que pese o reconhecimento de seu caráter precursor quanto à inclusão da televisão na implantação de políticas para a cultura, a fragilidade da rede – no que tange à falta de infraestrutura e aos baixos níveis de audiência da maioria das emissoras – representa um claro limite ao Programa.