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Ponderações sobre a Resolução 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina e a Discussão Jurídica

No documento Manual de Cuidados Paliativos (páginas 38-41)

Anexo 2 – Problemas Espirituais, Características-Chave e Exemplos de Fala

4. Aspectos Ético-Jurídicos da Paliação

4.1. Ponderações sobre a Resolução 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina e a Discussão Jurídica

desencadeada por esta

A prática de cuidados paliativos costuma suscitar uma série de dilemas éticos e também inseguranças do ponto de vista jurídico nos profissionais. Neste capítulo vamos abordar o que há de respaldo ético-jurídico estabelecido para essa prática no Brasil. Consulte o capítulo “Considerações sobre a proporcionalidade de medidas invasivas de suporte de vida e seus conflitos” para uma abordagem mais prática de como tomar a decisão de paliação. Em 2006, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a resolução 1.805, que diz: “É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2006), que equivale, portanto, à permissão de realização da ortotanásia. Em anexo a este capítulo encontra-se a resolução completa.

A partir disso, iniciou-se uma discussão a respeito da prática de cuidados paliativos e se, ao entender a morte como processo natural e não intervir para postergá-la, o profissional estaria fazendo algo equivalente à eutanásia1.

Em 2007, o Ministério Público ajuizou uma Ação Civil Pública2 em face do CFM, pleiteando o reconhecimento da

nulidade dessa resolução, sob justificativa de que: (i) o CFM não poderia reconhecer um crime como conduta ética (considerando que a resolução dizia respeito à eutanásia e não à ortotanásia); (ii) o direito à vida é indisponível e, portanto, só poderia ser restringido por lei (devidamente votada pelo Congresso Nacional), não por ato do CFM, e (iii) que, no contexto socioeconômico brasileiro, a ortotanásia poderia acabar sendo utilizada de forma indevida. O CFM contestou a ação apresentando, entre outros argumentos, o de que “a ortotanásia, situação em que a morte é evento certo, iminente e inevitável, está ligada a um movimento corrente na comunidade médica mundial denominado Medicina Paliativa, que representa uma possibilidade de dar conforto ao paciente terminal que, diante do inevitável, terá uma morte menos dolorosa e mais digna”.

Antes que a ação fosse efetivamente julgada, ocorreu a troca do representante do Ministério Público responsável pela condução do processo, e o próprio Ministério Público, em suas alegações finais, também requereu

1 Prática interpretada pelos tribunais brasileiros como crime homicídio privilegiado, ou seja, homicídio cometido por motivo de relevante valor social ou moral, punível com reclusão de um a dezessete anos.

2 Ação Civil Pública é o remédio constitucional atribuído ao Ministério Público para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. A Ação Civil Pública aqui mencionada foi identificada como Processo nº 0014718-75.2007.4.01.3400, e pode ser consultada no site do Tribunal Regional Federal.

a improcedência da ação. Nesse sentido, em 2010, a ação foi julgada improcedente e foram reestabelecidos os efeitos da Resolução 1.805/2006 do CFM que, até então, estavam suspensos em razão da decisão liminar3

proferida em 2007. De forma que, atualmente, há uma decisão judicial definitiva4 reconhecendo a validade da

resolução 1.805/2006 do CFM.

Seguem abaixo, resumidamente, as premissas, apontadas pelo Ministério Público, que balizaram a sentença que julgou improcedente a ação (BRASIL, 2010):

1) o CFM tem competência para editar a Resolução nº 1805/2006, que não versa sobre direito penal e, sim, sobre ética médica e consequências disciplinares;

2) a ortotanásia não constitui crime de homicídio, interpretado o Código Penal à luz da Constituição Federal; 3) a edição da Resolução nº 1805/2006 não determinou modificação significativa no dia-a-dia dos médicos

que lidam com pacientes terminais, não gerando, portanto, os efeitos danosos propugnados pela inicial; 4) a Resolução nº 1805/2006 deve, ao contrário, incentivar os médicos a descrever exatamente os

procedimentos que adotam e os que deixam de adotar, em relação a pacientes terminais, permitindo maior transparência e possibilitando maior controle da atividade médica;

5) os pedidos formulados pelo Ministério Público Federal não devem ser acolhidos, porque não se revelarão úteis as providências pretendidas, em face da argumentação desenvolvida” (p. 3).

Assim, partindo da premissa de que a Resolução 1.805/2006 do CFM é válida e, portanto, do ponto de vista jurídico, a ortotanásia não se confunde com a eutanásia, passamos ao paralelo entre os conceitos de ortotanásia e de omissão de socorro5.

No livro “Conflitos bioéticos do viver e do morrer” editado pelo CFM (disponível para download no site do referido conselho) há um interessante capítulo escrito pelo Juiz José Henrique Rodrigues Torres que discute o tema da omissão de socorro (TORRE, 2011). Nos cuidados paliativos, o autor (médico) não pratica ação, ele não mata o doente (que seria o caso da eutanásia). Ele apenas o deixa morrer. Caracterizaria isso omissão?

“Só responde pelo delito comissivo por omissão quem tem o dever, legal ou jurídico, de agir para impedir o resultado e, podendo fazê-lo, omite-se” (p. 174) (grifo nosso).

A “possibilidade de ação para impedir o resultado”, mencionada pelo Juiz José Henrique Rodrigues Torres, exige um quadro com esperada reversibilidade e possível transitoriedade. Ao avaliarmos a Resolução n°1.805/2006 do CFM vemos que ela claramente se refere ao doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, isto é, onde não há reversibilidade do quadro. Desse modo, permitir a morte digna de um enfermo em fase terminal de doença incurável, garantindo-lhe os cuidados paliativos, não caracteriza omissão.

3 Decisão temporária, proferida antes da análise completa do caso apresentado para julgamento, para garantia dos direitos que se busca tutelar na ação. A análise completa ocorre após ampla manifestação de ambas as partes, respaldada em provas periciais, documentais ou testemunhais, entre outras.

4 A sentença transitou em julgado em 2011, ou seja, como o Ministério Público e o CFM não entraram com recursos contra a decisão proferida pela 14ª Vara do Tribunal Regional Federal da 1ª Região essa decisão passou a ser definitiva, sem apreciação do segundo grau ou dos tribunais superiores. 5 Crime previsto no artigo 135 do Código Penal Brasileiro.

O Juiz José Henrique Rodrigues Torres resume a discussão da seguinte maneira: “No caso do doente terminal, em face a doença incurável, os aparelhos de suporte são ligados ou mantidos não para evitar a morte, que é inevitável, irreversível e inexorável, mas, sim, para manter a vida artificialmente. A vida, nessa situação, mantida por aparelhos (ventilação assistida, reanimadores, tratamento em UTI), não é um dado da realidade, mas mero artifício. O médico não pode evitar a morte. A situação é irreversível e não é transitória. Os procedimentos e tratamentos não têm sentido curativo. Portanto, não há dever de mantença desses procedimentos e não se pode dizer que o médico deu causa a morte do paciente quando os suspendeu ou limitou” (TORRE, 2011, p. 175). Do ponto de vista ético, se não há benefício esperado, não há justificativa para prover determinado tratamento e ao suspender medidas invasivas ou deixar de adicioná-las o médico prevê a morte, mas não a tem como objetivo (TORRE, 2011).

Por outro lado, o Juiz Torres complementa dizendo que “o médico que insistir em manter tratamento ou qualquer procedimento inócuo, artificioso, postiço e gravoso para o doente terminal acometido de doença incurável, impondo-o, assim, à dor e ao sofrimento contrariando a vontade do paciente ou de seu representante legal, estará praticando a censurável distanásia e também estará sujeito a responder no âmbito da responsabilidade civil e criminal, pelas lesões corporais (...), pelo constrangimento ilegal (...), pela tortura e pelo tratamento cruel que impuser ao paciente” (TORRE, 2011, p. 175).

Desse modo, é possível afirmar que a ortotanásia, desde que realizada dentro dos limites autorizados pela Resolução n° 1.805/2006 do CFM, não é considerada uma omissão de socorro. Uma vez compreendida a ortotanásia e sua validade jurídica, passemos à análise da forma de executá-la: os cuidados paliativos, e vejamos como esse ramo da medicina, propriamente dito, tem sido regulamentado:

Após a publicação da Resolução n° 1.805/2006 do CFM, e antes mesmo da declaração de validade da referida resolução, em julho de 2010 o Código de Ética Médica (disponível para download no site do respectivo conselho) foi revisto e passou a incluir os trechos a seguir (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2019):

“Capítulo I – Princípios Fundamentais

(...) XXII - Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados” (p.17 – grifo nosso).

“Capítulo V – Relação com pacientes e famíliares

(...) Art. 41. – É vedado ao médico abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal” (p. 28 – grifo nosso).

Em 2018, após nova revisão, foram mantidos os artigos supracitados e foi incluída no texto do Código de Ética Médica, nova menção aos cuidados paliativos (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2019):

“Capítulo V – Relação com pacientes e familiares

(...) Art. 36. – É vedado ao médico abandonar paciente sob seus cuidados.

(...) § 2°Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou à sua família, o médico não o abandonará por este ter doença crônica ou incurável e continuará a assisti-lo e a propiciar-lhe os cuidados necessários, inclusive os paliativos” (p. 28).

No documento Manual de Cuidados Paliativos (páginas 38-41)