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CAPÍTULO I. Percursos teóricos da pesquisa: a Cinesiologia Humana

1.10 Prática Pedagógica dos Professores

Que alunos queremos formar? Esta, entre outras questões, aparece, frequentemente, em discursos relacionados às práticas dos professores. Na perspectiva de Cortesão (2011), é imprescindível que o professor conheça os alunos, suas características, seus comportamentos e aspectos socioculturais, repensando formas e conteúdos de trabalho pedagógicos que valorizem os saberes e as competências.

Para Nóvoa (1999), as práticas educativas atualmente se voltam para uma retórica que valoriza e dignifica a profissão do professor na construção da “sociedade do futuro”, pela qual os jovens serão competentes e habilidosos para o desenvolvimento econômico, assim como também à preparação para uma sociedade fundada na informação e na globalização. A essa

conjuntura, encontra-se também vinculada uma retórica de discursos políticos atrelados, as “escolas sem partido”, os números e documentos orientadores de agências internacionais (Unesco, OCDE, União Europeia) e dos mass media para ressaltar a importância da centralidade do professor na preparação dos jovens, pregando o civismo.

Diante desse cenário, ainda Nóvoa (1999) apresenta seus dilemas em relação à profissão docente, ao mesmo tempo em que insiste numa prática reflexiva inovadora com autonomia e que é, paradoxalmente, conservadora em relação ao saber pedagógico instrumental por conta de um sistema educacional constituído de políticas contraditórias. Assim, na escola, os bons professores e alunos se transformaram em objetos de relações comerciais e mercantis, e o conhecimento faz parte dessa relação neoliberal em que são produzidos dados e indicativos de produção, para fins de aferição, de performance, de accountability, de ranking etc.

Para Cortesão (2011), na escola tradicional portuguesa, para ser um bom professor, isto é, competente, é interessante que se domine a linguagem erudita, seus conteúdos e tenha uma boa didática, na medida em que os alunos são vistos como receptores de mensagem codificada pelo saber científico, valorizando os mais aptos e habilidosos numa perspectiva meritocrática e monocultural. Lembra-nos ainda a autora que, a esse respeito, se manifestou sobre a formação dos “bons” professores portugueses denominados “monocultural18”, cujo processo, no ato

educativo, acontece numa escola tradicional e se dá por meio da neutralidade em relação aos saberes considerados importantes, através de uma cultura erudita, de modo a proporcionar uma massificação do ensino e a homogeneização dos alunos. Lembremos o que dizem Tardif e Lessard (2009, p. 38) a respeito do que é ser professor:

[...] os professores são como atores que investem em seu local de trabalho, que pensam, que dão sentido e significado aos seus atos, e vivenciam sua função como uma experiência pessoal, construindo conhecimentos e uma cultura própria de sua profissão. [...] o trabalho docente não consiste apenas em cumprir ou executar, mas é também uma atividade de pessoas que não podem trabalhar sem dar um sentido ao que fazem, é uma interação com outras pessoas: os alunos, os pais, os colegas, os dirigentes da escola etc.

Dessa forma, é necessário reconhecer que ser um professor é ser alguém envolvido na transformação de pessoas, o que implica uma dinâmica relacional entre professor e alunos, bem como entre todos os que fazem parte da comunidade escolar, no sentido de conferir sentido à relação pedagógica. Também nos adverte Alarcão (2005) que a atividade educativa exercida

18 Stoer e Cortesão (1999) referem que, tradicionalmente, o professor competente era aquele que dominava

pelo professor está muito além do exercício de uma atividade técnica, com aplicação de receitas para transmissão do conhecimento científico. É na interação entre professor e aluno, na relação dialógica e nas formas diversas de socialização escolar que as pessoas se transformam.

Vemos, portanto, que o pensamento crítico do professor, consciente da importância do seu papel na sociedade, nada tem a ver com um papel de doutrinador19, muito presente e característico de regimes fascistas ditatoriais cuja principal função é a ‘formação’ de pessoas submissas e obtusas em relação às alteridades e às questões sociais. Daí não podermos deixar de considerar as ideias de Freire (1996, p.16) sobre a “rigorosidade ética” e sobre a “ética universal do ser humano”:

Na maneira como lidamos com os conteúdos que ensinamos, no modo como citamos autores de cuja obra discordamos ou com cuja obra concordamos. Não podemos basear nossa crítica a um autor na leitura feita por cima de uma ou outra obra de suas obras. [...] é mentir. É dizer inverdades em torno deles. O preparo científico do professor ou da professora deve coincidir com sua retidão ética.

Nesse sentido, o professor deverá ser um questionador do sistema, mantendo-se atento às relações objetivas e subjetivas que circunscrevem a prática pedagógica e os conhecimentos socializados nas aulas, considerando, inclusive, as necessidades de formação dos alunos. Para Alarcão (2005), o professor é um agente ativo, que faz a gestão de seu próprio desenvolvimento a partir do momento em que clarifica sua função como profissional diligente de uma escola. Dessa forma, ser agente ativo é, necessariamente, ter clareza do seu papel como profissional e das suas funções na sociedade, questionando as teorias, sua formação e sua prática pedagógica, seus saberes curriculares e dos estudantes, aprendendo com os erros. Considerando a escola como espaço de formação, o professor, como estabelece Cortesão (2011), deverá ser um professor-pesquisador, elegendo os conteúdos mais pertinentes, selecionando e recriando as estratégias de ensino.

Apresentando uma discussão importante a respeito da reflexão na ação e a valorização dos conteúdos enquanto conhecimentos escolares, Donald Schön (2000) estabelece uma significativa relação entre os conteúdos tácitos, aqueles que os alunos trazem de suas experiências fora da escola, e aqueles que, explicitamente, são transmitidos pelo professor. A reflexão-ação permite a construção e reconstrução dos conhecimentos, das estratégias de

19 No contexto da educação brasileira em 2018, ano de eleições para presidente e para o legislativo, a acusação

sobre os professores de serem “doutrinadores” esteve muito presente no cenário das discussões em geral, donde nossa preocupação em tornar claro este ponto.

ensino, dos modelos pedagógicos e didáticos, sempre em diálogo com os educandos. Para Schön (2000, p.35):

[...] a reflexão-na-ação é um processo que podemos desenvolver sem que precisemos dizer o que estamos fazendo. Improvisadores habilidosos ficam, muitas vezes, sem palavras ou dão descrições inadequadas quando se lhes pergunta o que fazem. É claro que, sermos capazes de refletir-na-ação é diferente de sermos capazes de refletir sobre nossa reflexão-na-ação, de modo a produzir uma boa descrição verbal dela. E é ainda diferente de sermos capazes de refletir sobre a descrição resultante.

Assim, nesse mesmo sentido, Cortesão (2011, p. 59), apoiada em Bernstein, reforça sua tese de que a atuação dos professores intermulticulturais não se coaduna com a função de “meros tradutores de conhecimento”, pois o processo educativo é muito mais complexo, cercado de sentidos e de vários conhecimentos que são apropriados pelos alunos. Assumindo, então, seu papel de professor multicultural (não daltônico20) numa escola que enfrenta e questiona os problemas educativos, a prática do docente deve, a partir de uma metodologia que utiliza diversas estratégias, mobilizar diferentes tipos de conhecimentos (presentes no cotidiano e específicos da área) aos alunos, considerando o contexto e o nível de ensino, de modo a promover uma educação contextualizada que vai além da reprodução, que possibilite, desse modo, a emancipação dos estudantes, ao invés da sua domesticação. (CORTESÃO, 2011)

O sucesso ou fracasso dos alunos relaciona-se com as relações produtivas que se refletem na vida escolar, e a escola reproduz na sua organização e hierarquia o modelo social, a organização e hierarquia que existem na sociedade. Tardif e Lessard (2009, p. 23) referem a esse propósito:

A escola moderna reproduz no plano de sua organização interna um grande número de características tiradas do mundo usineiro e militar do Estado. Ela trata uma grande massa de indivíduos de acordo com padrões uniformes por um longo período de tempo, para reproduzir resultados semelhantes. Ela submete esses indivíduos (professores e alunos) a regras impessoais, gerais, abstratas fixadas por leis e regulamentos.

Nesse contexto, a atuação do professor é importante para garantir, como Foucault (1987) nos lembra, o controle do corpo e das mentes, exercendo uma coerção por meio das normas e

20 Sobre o conceito de “daltonismo”, interessante consultar também Cortesão e Pavan (2018), o texto intitulado: O pensamento de Paulo Freire e o "arco-íris sociocultural da sala de aula”: entrevista com Luiza Cortesão.

Disponível em:< http://www.curriculosemfronteiras.org/vol18iss1articles/cortesao-pavan.pdf>. Acesso em: 05/03/2019.

regras de disciplina que tem por finalidade disciplinar os corpos e as mentes e transformá-los em corpos e mentes dóceis. Nóvoa (1999, p. 10) nos lembra que:

[...] na escola, o discurso é outro. Para muitos líderes de opinião o princípio democrático não teria, aqui, razão de ser, importando, sim, insistir no uso da autoridade, na exigência do esforço, na promoção do mérito e na seleção dos melhores. A lógica da autoridade e da competição seriam, assim, os elementos-chave para uma educação dita “de qualidade”. As ideias de democracia e de participação estariam condenadas a ficar à porta da escola. O modelo atual de escola, a organização dos espaços escolares, especialmente da sala de aula, privilegia o sistema de vigilância e punição. Por isso, Foucault, em Vigiar e Punir, identifica o modelo de escola com o das prisões. Para Tardif e Lessard (2009), o trabalho escolar é dividido entre professores e alunos, aplicando-se e executando-se um conjunto de tarefas e conteúdos de forma controlada e padronizada, seguida por avaliações internas que medem sua eficiência por meio do controle cerrado do tempo, tornando o currículo pesado e, mais do que isso, enfadonho.

Para Cortesão (2011), tal fato se dá por conta de uma educação preocupada exclusivamente com a eficácia e competividade e cujos interesses neoliberais de uma economia capitalista se voltam para uma escola meritocrática. É fácil de constatar tal fato nos anúncios de instituições cujo projetos educacionais com interesses claramente mercantilistas utilizam como marketing o anúncio publicitário com o número de aprovações nos vestibulares das carreiras tradicionalmente mais concorridas. Dessa forma, para contemplar esses projetos, as práticas dos professores procuram privilegiar os mais aptos usando recursos mnemônicos e exaustivas realizações de exercícios. Como nos lembra Freire (1996, p. 47), “saber ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para sua própria construção.” Nesse sentido, e considerando o aluno que queremos formar, corroboramos as ideias de Tardif e Lessard (2009, p. 43):

Ensinar, de certa maneira, é sempre fazer algo diferente daquilo que estava previsto pelos regulamentos, pelo programa, pelo planejamento, pela lição. Enfim, é agir dentro de um ambiente complexo e, por isso, impossível de controlar inteiramente, pois, simultaneamente, são várias coisas que se produzem em diferentes níveis de realidade: físico, biológico, psicológico, simbólico, individual e social etc.

Cortesão (2011) também comenta a importância da mudança do papel do professor daltônico para o multicultural que investiga e valoriza concepções e propostas de trabalho, que reconhece o seu papel decisivo em relação às diferenças, na escola enquanto lugar de práticas

conflituosas, mas é também espaço de um “arco-íris de culturas” que permite a conscientização dos direitos de cada um, do direito à diferença e de valorização da cidadania.