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Ao digitar as palavras “preconceito” e “discriminação” em sites de busca (Google), o resultado da pesquisa esboça o preconceito vinculado a grupos historicamente discriminados, por exemplo: “Diga não ao racismo, preconceito e discriminação”, “Preconceito e discriminação na educação física: o profissional obeso”, “Preconceito de classe social. Preconceito baseado no acesso à...” e “Criminalização do preconceito ou discriminação contra homossexuais”.

Quando a busca inclui as palavras “preconceito”, “discriminação” e “HIV/aids”, surgem 120 mil resultados sobre o tema, por exemplo: “Aids e discriminação: violação dos direitos humanos” (Jus navigandi), “HIV/aids = preconceito + estigma + discriminação = epidemia incontrolável”, “Preconceito contra portadores de HIV no Brasil é ligado à falta de informação, dizem especialistas” e “Aids: luta contra a doença e o preconceito” (Diário do Vale).

Um dos principais temores das pessoas que vivem com HIV/aids é sofrer algum tipo de preconceito, discriminação ou estigmatização, além do medo de serem vistas como portadoras de uma doença contagiosa (NASCIMENTO, 2002). No presente trabalho, abordaremos os conceitos “preconceito”, “estigma” e “discriminação”, num exercício de analisar suas expressões no contexto do HIV/aids.

No dia a dia, o termo “preconceito” é empregado para definir um fenômeno ruim, ofensivo. O conceito está incorporado nas relações sociais, e, em geral, as pessoas reconhecem as situações de preconceito e discriminação.26

Segundo o dicionário, “preconceito” significa “conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos, ideia preconcebida. Julgamento ou opinião formada sem levar em conta o fato que os

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Os diretos humanos contemporâneos tem como marco histórico a Declaração Universal dos Direitos Humanos datada de 10 de dezembro de 1948, que surge como resposta às barbáries do Holocausto e também da Segunda Guerra Mundial (NASCIMENTO, 2009, p. 51).

conteste, prejuízo” (FERREIRA, 1999). Essas definições possivelmente são as mais utilizadas cotidianamente para a compreensão da ideia de preconceito.

O pesquisador Gordon W. Allport lançou em 1954 a obra publicada sob o título

La naturaleza del prejuicio (ALLPORT, 1971), que trata das faces do preconceito e de

suas repercussões, como a discriminação e o extermínio.

Segundo Allport (1971), a definição mais breve que se pode dar ao preconceito é a seguinte: pensar mal de outra pessoa sem que existam motivos suficientes para tal. Não é fácil dizer quantos fatos são necessários para se justificar um julgamento. Uma pessoa com preconceitos dirá seguramente que tem apoio suficiente para manter suas opiniões. Em geral, no preconceito, a pessoa não admite que sua ideia ou atitude seja preconceituosa e errônea. É certo que toda atitude negativa tende a se expressar em ação em algum momento, já que são poucas as pessoas que guardam antipatias sem as evidenciar. Assim, quanto mais intensa for uma atitude, maior as possibilidades de desencadear uma ação agressiva e hostil.

Também de acordo com Allport (1971), nas atitudes de preconceito uma pessoa pode falar mal de outra, evitar-lhe o contato, mas não ter uma atitude hostil ou agressiva; a isso o autor nomeia “preconceito bem-educado”, bastante inofensivo. O autor enfatiza que, na discriminação, o preconceito é mais intenso e ativo: empreende a tarefa de excluir, segregar todos os membros de um grupo. O preconceito também pode eclodir com ataques físicos, devido à alta tensão emocional que pode ser desencadeada. Grande parte dos preconceitos advém da conformidade com os costumes dominantes, em que o efeito central é colocar a vítima em posição de desvantagem; assim, o resultado é sempre negativo. Por ser um processo histórico complexo, pode apresentar múltiplas causalidades.

Norberto Bobbio, em sua obra Elogio da serenidade (publicada entre nós em 2002) analisa o preconceito e a discriminação. Para o autor, “[...] o preconceito pertence à esfera do não racional, ao conjunto das crenças que não nascem do raciocínio e escapam de qualquer refutação fundada num raciocínio” (BOBBIO, 2002, p. 103). “O preconceito é uma opinião errônea, mas nem toda opinião errônea pode ser considerada um preconceito” (BOBBIO, 2002, p. 104). “A discriminação repousa antes de tudo na ideia de que os homens são desiguais” (BOBBIO, 2002, p. 110). “O preconceito enraíza-se mais facilmente naqueles que já estão favoravelmente predispostos a aceitá- lo” (BOBBIO, 2002, p. 105).

O autor denomina preconceitos “coletivos” aqueles que são compartilhados por um grupo social e estão dirigidos a outro grupo social. Os preconceitos coletivos são inumeráveis, mas o pensador italiano destaca dois: o preconceito nacional e o preconceito de classe. No preconceito nacional não há nação que não traga uma ideia persistente da sua própria identidade, apoiando-se em sua pretensa diversidade em relação a todas as outras nações. O preconceito de classe nasce da real contraposição, entre aqueles que têm e aqueles não têm, entre os proprietários dos meios de produção e aqueles que possuem somente a própria força de trabalho.

O preconceito de grupo é no geral um preconceito da maioria em relação a uma minoria. Caracteriza-se como fenômeno social, produto da mentalidade de grupos formados historicamente, e, como tal, pode ser eliminado (BOBBIO, 2002).

Para Gruskinet et al. (apud NASCIMENTO, 2009, p. 44), a discriminação comumente resulta do preconceito e de informações erradas. Trata-se da negação da diversidade humana, com sentimentos de superioridade em relação àqueles considerados diferentes.

Ao resgatarmos o significado da palavra discriminação do latim, podemos considerar que se discrimina para separar e distinguir uma pessoa da outra, um grupo do outro, mas com intuito de dizer que uma é diferente da outra, e demarcar o que e quem é melhor e superior, quem é “bárbaro” e quem é “civilizado”, para qualificar um e desqualificar o outro (NASCIMENTO, 2009, p. 47).

O sociólogo Erving Goffman, em Estigma: notas sobre a manipulação da

identidade deteriorada (GOFFMAN, 1988), compreende que a sociedade estabelece os

meios para categorizar as pessoas e os atributos considerados como comuns e naturais para o membro de cada uma dessas categorias.

O autor aponta três tipos de estigma nitidamente diferentes: as abominações do corpo, as deformidades físicas; as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, alcoolismo, homossexualismo e desemprego, entre outros; os estigmas tribais de raça, nação e religião. Quem possui uma característica diferente daquela prevista socialmente é considerado estigmatizado. Os que não se afastam das expectativas são chamados “normais”. Goffman (1988), com base em pesquisa com pessoas que sofriam de doença mental, que possuíam deformidades físicas ou tinham práticas percebidas como

socialmente desviantes, concluiu que o indivíduo estigmatizado é tratado como uma “pessoa estragada e diminuída”.

Nessa perspectiva, ousamos afirmar que a sociedade estabelece padrões de vida que considera ideais, que a rigor deveriam ser seguidos por todos, e que aqueles que não os seguem passam a ser julgados como inabilitados para a vida em sociedade. Como afirma Goffman, “[...] o normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro” (GOFFMAN, 1988, p. 149).

Quando a marca é conhecida, “informada”, poderá ser destacada de forma negativa, depreciativa, desqualificadora de possíveis atributos positivos que a pessoa tenha. Nas relações cotidianas a “informação social” sobre o estigmatizado é usada quando interessa, quando os conflitos aparecem, quando se está com raiva ou simplesmente diante de discordâncias de interesses e ideias. Nessas situações, o “normal informado” usa a informação sobre a “marca” do “anormal” para mostrar-se superior e consequentemente destacar a diferença que inferioriza o outro naquela relação ou situação e o coloca como “não igual”, não “completamente humano”. Por exemplo, tornando pública a informação sobre o outro; dizendo que é negro, nordestino, estrangeiro, mulher, pobre, da escola pública, bêbado, fumante, aidético, etc. (NASCIMENTO, 2009, p. 39).

O estigma e o preconceito são processos socialmente construídos de desvalorização do indivíduo, que se articulam e se expressam na discriminação. Uma das estratégias da pessoa que vive uma situação, previamente estigmatizada é a omissão da informação, em especial nos casos em que o estigma não é visível e, consequentemente pode passar imperceptível. Nessas situações, a pessoa vive em “alerta”, mantendo controle de suas falas e comportamentos, num contexto tenso, que pode gerar medo e até culpa.

Richard Parker e Peter Aggleton, em estudo realizado em 2001 com base nas obras de Goffman, Michael Foucault, Pierre Bourdieu e Gramsci, enfatizam que os processos de estigma e discriminação só podem ser entendidos em relação às noções mais amplas de poder e dominação, ultrapassando a visão centrada no indivíduo.

O estigma desempenha um papel central na produção e na reprodução das relações de poder e de controle em todos os sistemas sociais. Faz com que alguns grupos sejam desvalorizados e que outros se sintam de alguma forma superiores. Em última análise, portanto, estamos falando de desigualdade social (PARKER; AGGLETON, 2001, p. 10).

Ainda de acordo com os mesmos autores,

[...] a estigmatização simplesmente não ocorre de uma maneira abstrata. Pelo contrário, ela é parte das complexas lutas pelo poder que estão no coração da vida social. Dito de forma mais concreta, o estigma é empregado por atores sociais reais e identificáveis que buscam legitimar o seu próprio status dominante dentro das estruturas de desigualdade social existentes (PARKER; AGGLETON, 2001, p. 16).

Os autores analisam o momento histórico do surgimento da epidemia da aids, que vem aproximadamente desde o final dos anos 1970, com acirramento das desigualdades sociais, com avanço no processo de globalização da economia mundial, tendo como resultado o fortalecimento de países considerados potências mundiais e, consequentemente, a desqualificação e a ausência de investimento em outros continentes e seus países. Esse modelo de desigualdade, associado à reestruturação econômica, reforça as desigualdades e as exclusões já existentes.

As diversas formas de desigualdade e exclusão somaram-se à epidemia do HIV/aids, com o aumento no número de casos entre os mais pobres, entre as mulheres, entre os negros, no geral nos segmentos sociais historicamente excluídos na divisão social da riqueza, já discriminados.

Com o “amadurecimento” da epidemia de HIV/aids nos últimos anos, fica igualmente claro que a pobreza — muitas vezes associada ou em conjunção com a opressão racial — se tornou uma das maiores fontes de vulnerabilidade e de estigma. Embora a estigmatização da pobreza e o papel do estigma no aprofundamento e na reprodução da exclusão econômica dos sem-teto, dos sem-terra, dos desempregados e de outros grupos marginalizados seja particularmente mal entendida, o fato de que tais formas de estigmatização preexistentes intersecionaram, auxiliaram e apoiaram a estigmatização e a discriminação ao HIV e à aids (PARKER; AGGLETON, 2001, p. 22).

O estigma e o preconceito que se alicerçaram no HIV/aids fazem com que o diagnóstico, mesmo com todo o avanço no tratamento, ainda seja um fenômeno inesquecível, um marco na vida da pessoa, não somente pelo possível desconhecimento sobre a doença, mas também por tudo que esta simboliza socialmente.

Nos três anos iniciais da epidemia de HIV/aids, dado o desconhecimento do agente causador da nova doença, houve a vinculação do “contato” com a pessoa doente com a eminência de novos casos, numa série de dúvidas de remetiam à ideia de como “pegar a doença” e “como não pegar a doença”. Esse processo desencadeou aspetos inesperados da população: a reativação do imaginário social vinculado ao medo das

antigas epidemias, tratadas como pestes, quando o contato com as pessoas doentes estava relacionado ao pânico e à morte.

Como bem destacam Parker e Aggleton (2001, p. 24),

De fato, a ambiguidade do uso das noções de contágio e de infecção é especialmente importante aqui, precisamente porque tal imprecisão linguística possibilita, para muitos, a confusão entre aquilo que é de fato uma forma não particularmente “eficiente” (em termos epidemiológicos) de transmissão viral com as noções de contágio ou contaminação através do contato casual. Junte-se a isso o entendimento popular de que a aids é incurável e inevitavelmente fatal, e todos os estigmas associados a outras doenças sérias ou mortais têm sido reforçados com a ligação do medo da doença e da morte às noções estigmatizadas de sexualidade, gênero, raça e pobreza.

A relação da infecção do HIV com comportamentos desviantes da norma social e a consequente divisão entre “vitimas” e “culpados” contribuíram para o preconceito, a estigmatização e a discriminação das PVHA ou com a suspeita de terem esse diagnóstico. (NASCIMENTO, 2009).

Talvez a maior de todas as tragédias seja que a estigmatização relacionada ao HIV e à aids provoca o deslocamento de muita da energia que poderia ser usada para prevenir a infecção. As pessoas são vitimadas e culpadas, as divisões sociais são reforçadas e reproduzidas, e novas infecções continuam a ocorrer, enquanto as pessoas continuam a entender mal, sistematicamente, a natureza da epidemia e suas causas (PARKER; AGGLETON, 2001).

De acordo com o DDAHV, alguns estados brasileiros reforçaram em sua legislação a vedação da discriminação em razão do HIV/aids: Espírito Santo (em 2003), Goiás (em 1995), Minas Gerais (em 2003), Paraná (em 2004), Rio de Janeiro (em 2001) e São Paulo (em 2002).

No estado de São Paulo, a Lei nº 11.199, de 12 de julho de 2002, proíbe a discriminação aos portadores do vírus HIV ou às pessoas com aids, com foco nas situações mais frequentes no cotidiano. De acordo com essa Lei, são consideradas situações de discriminação: solicitar exames para a detecção do vírus HIV ou da aids para inscrição em concurso ou seleção para ingresso no serviço público ou privado; segregar os portadores do vírus HIV ou as pessoas com aids no ambiente de trabalho; divulgar, por quaisquer meios, informações ou boatos que degradem a imagem social do portador do vírus HIV ou de pessoas com aids, suas famílias, grupos étnicos ou sociais a que pertençam; impedir o ingresso ou a permanência, no serviço público ou privado, de

suspeito ou confirmado portador do vírus HIV ou pessoa com aids, em razão desta condição; impedir a permanência do portador do vírus HIV no local de trabalho, por este motivo; recusar ou retardar o atendimento, a realização de exames ou qualquer procedimento médico ao portador do vírus HIV ou à pessoa com aids, em razão desta condição; obrigar, de forma explícita ou implícita, os portadores do vírus HIV ou as pessoas com aids a informar sua condição a funcionários hierarquicamente superiores.

Na maioria das vezes, o ato discriminatório acontece de forma velada, o que dificulta a vítima de provar que sofreu discriminação. A discriminação acontece na família, no trabalho, nas relações afetivas, nos serviços de saúde. O ato discriminatório tem efeitos emocionais nas pessoas e interfere na prevenção à infecção (NASCIMENTO, 2009).