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Em 1982, após quase duas décadas de ditadura militar, o estado de São Paulo teve a primeira eleição para governador. Foi eleito Franco Montoro, o que possibilitou um conjunto de mudanças nas políticas públicas. Para a Secretaria de Estado da Saúde, no período de 1983 a 1987, foi escolhido o médico João Yunes, um dos grandes mentores do movimento da RSB, historicamente envolvido na defesa da saúde pública.

Um diferencial no estado de São Paulo esteve na presença dos sanitaristas, que tiveram oportunidades de ocupar cargos de gerência em diversos setores na saúde (Paulo Teixeira, entrevista em FRANÇA, 2008).

O governo democrático tornou possível a reorganização da saúde no estado de São Paulo, com a premissa de valorizar a saúde pública, visando construir a reforma descentralizadora da Secretaria de Saúde e a defesa primordial dos princípios da equidade, direito à saúde e participação popular (MARQUES, 2003).

Simultaneamente ao processo de redemocratização do Brasil, começaram a surgir os primeiros casos de aids, realidade que impulsionou ativistas do movimento gay a iniciar uma agenda de reivindicações junto ao poder público: eles procuraram o secretario de Saúde Yunes, tendo em vista a premissa de que estava se instalando no País uma doença extremamente grave.

De acordo com Scheffer; Salazar; Grou (2005), os ativistas, movidos pela urgência e pelo medo do novo agravo, passaram a exigir respostas governamentais, a acompanhar e a reivindicar o que já existia de informações e instrumentos para o enfrentamento da aids.

Somada às mobilizações sociais e à divulgação da aids na mídia, a Secretaria de Saúde paulista determinou que fosse formada uma comissão para estudar a questão e fazer uma proposta de trabalho. A designação desse grupo ocorreu em maio de 83, por médicos sanitaristas, infectologistas e especialistas da área de laboratório e social. A coordenação ficou sob a responsabilidade da Divisão de Hanseníase e Dermatologia Sanitária (DHDS) do Instituto da Saúde (MARQUES, 2003).

Essa comissão elaborou um documento para o secretário de Saúde, um conjunto de 12 propostas para o enfrentamento da aids. Entre essas propostas, foi elaborado um informe técnico com dados científicos sobre a nova doença, do qual foram produzidos cinco mil exemplares, que foram enviados para as instituições públicas e privadas de saúde do estado de São Paulo e outros estados e para o Ministério da Saúde (BARBOZA, 2006).

Esse conjunto de ações consolidou o primeiro programa de aids no País, coordenado pelo médico dermatologista e sanitarista Paulo Roberto Teixeira, que já era responsável pela implantação do Programa de Doenças Sexualmente Transmissíveis no Estado de São Paulo. Diretor do DHDS, ele tinha ampla trajetória de participação em movimentos sociais, foi preso por duas vezes durante o governo militar, participou da Ação Popular, partido clandestino de esquerda, e foi um dos fundadores do grupo Somos. Em 1979, graduara-se em Saúde Pública na Universidade de São Paulo (FRANÇA, 2008).

Com uma coordenação já mobilizada para a defesa da saúde pública, a composição do grupo buscou seguir o mesmo perfil. Alguns profissionais foram designados e outros foram convidados a participar; estes estavam de alguma forma envolvidos com a problemática da aids e se identificavam com os princípios da reforma sanitária.

Marques (2003, p. 78) retrata o processo de criação do programa pioneiro de aids e seu significado nas relações políticas do estado de São Paulo:

Entendemos, que somado ao espaço favorável que a demanda da aids encontrou na Secretaria de Saúde, estava o ganho político que o governo Montoro obteve com essa iniciativa. Ao assumir o compromisso e abertura para uma ação oficial diante da aids, ele respondeu a uma demanda social representada tanto pelo grupo de homossexuais que procurou a secretaria quanto por uma parcela da sociedade que anunciava sinais de preocupação com a divulgação de caos na imprensa. Reafirmou seu perfil democrático e inovador perante setores avançados da saúde pública, e todo esse movimento era amplamente divulgado pela imprensa da época.

Outro ponto de destaque está na inserção do programa de aids no DHDS, serviço que, historicamente, atendeu pessoas socialmente discriminadas. Esse mesmo ambulatório tornou-se o primeiro serviço de referência no estado para pacientes com aids, doença também sujeita ao medo de contágio, ao preconceito e à discriminação.

Os movimentos sociais continuaram a desenvolver suas ações, inclusive em conjunto com os profissionais de saúde, a exemplo o grupo denominado Outra Coisa, que passou a fazer conexão entre o programa estadual de aids e a comunidade homossexual, com a publicação de boletins e textos. Também emergiu desse grupo a ideia de fazer semanalmente reuniões com a população no anfiteatro da Secretaria da Saúde, a fim de criar um canal de informação e esclarecimento à sociedade sobre a aids (Paulo Teixeira, entrevista em FRANÇA, 2008).

A estratégia de Teixeira era aproveitar o espaço na mídia conferido pela enorme visibilidade da aids e esclarecer a população sobre o trabalho que a equipe estava realizando. Era uma prática relacionada à maneira como o movimento sanitarista via a questão da saúde, ou seja, aberta, colaborativa e tendo a participação da população. O telefone Disque-Aids, instalado no programa, recebia centenas de ligações de pessoas preocupadas com o vírus. Havia uma demanda enorme por palestras e debates (FRANÇA, 2008, p. 79).

A criação do programa estadual enfrentou opiniões contrárias, algumas bem contundentes. Exemplo dessa oposição foi o documento elaborado pela Faculdade de Saúde Pública da USP com advertências ao secretario Yunes, que também era professor daquela instituição de ensino, sob a alegação de que ele estava investindo recursos em área que não era de interesse da população (Paulo Teixeira, entrevista em FRANÇA, 2008). A opinião de que a aids era um problema pontual e secundário acabou sendo reforçada pela própria condição da saúde pública no Brasil.

Os profissionais de saúde que atendiam as pessoas com aids no DHDS deparavam com situações extremamente estressantes. Não existiam medicações para controle da doença, e, sobretudo, a morte era uma premissa concreta. Tinham no cotidiano que atender as necessidades impostas pela própria doença, pelos pacientes e por suas famílias, majoritariamente das classes alta e média, que se viam desamparadas frente à impossibilidade de controle da aids.

Mesmo no caso de pessoas que poderiam recorrer ao Inamps, o atendimento não era garantido, já que o órgão recusava-se a incluir nos contratos com os hospitais privados o tratamento da aids, devido ao alto custo e ao risco de ampliar as fraudes que já ocorriam no sistema (FRANÇA, 2008).

A questão da aids agravou-se após 1985, dadas as manifestações clínicas da doença. Pessoas infectadas no início dos anos 1980 estavam apresentando sintomas e necessitavam de assistência hospitalar, na maior parte com internações, o que impulsionava a demanda de leitos e a maior intervenção da saúde pública.

Para resolver, ou minimizar, a carência dos leitos, a Secretaria de Saúde paulista providenciou a abertura de um hospital. A unidade, criada como extensão do Hospital Emílio Ribas,14 foi denominada de Emílio Ribas 2. O quadro de recursos humanos foi

montado com profissionais do Hospital Emílio Ribas, e houve muitas dificuldades para a contratação de novos profissionais, dado o medo de atender os pacientes com aids. O hospital sofria com a escassez de recursos, com a falta de infraestrutura — de médicos, ambulância, equipamentos (FRANÇA, 2008).

Em 1987, houve um corte no programa de aids do estado de São Paulo com a posse de Orestes Quércia, o novo governador, o qual, por questões políticas, veio a substituir o secretário Yunes, nomeando José Pinotti para o cargo. Também foi substituído Paulo Roberto Teixeira, o coordenador do programa de aids, sendo atribuída essa função ao então coordenador geral do Hospital Emílio Ribas, Paulo Ayrosa Galvão.

O Emílio Ribas 2 foi fechado e os atendimentos passaram para o antigo Hospital Emílio Ribas, que já atendia a diversas doenças infectocontagiosas. As condições de atendimento eram desumanas; não havia espaço reservado para o cuidado com os

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Conforme o Centro de Estudos Emílio Ribas, o Instituto de Infectologia Emílio Ribas (localizado na

capital paulista) foi uma das primeiras instituições de Saúde Pública em São Paulo, inaugurado em 8 de

janeiro de 1880, ainda no Império, por meio das contribuições da população paulista, que doou parte dos recursos para sua construção, com o objetivo de isolar e tratar os pacientes portadores de doenças infecciosas (FELICE, 2005).

pacientes, o que agravava o sofrimento e o desgaste dos profissionais. Essa situação acirrou as críticas ao governo, tanto pela mídia, quanto pelas organizações sociais.

Não havia um local apropriado para o ambulatório no Emílio Ribas, e os médicos chegaram a adaptar um banheiro como sala de consulta e os jornais mostraram uma foto do médico atendendo um paciente sentado sobre uma cadeira improvisada em cima de uma privada. O maior escândalo ocorreu, no entanto, quando a televisão mostrou o caso de um paciente que chegou à noite no Emílio Ribas de ambulância para dar entrada no pronto-socorro e esperou horas até morrer — ainda dentro da ambulância (FRANÇA, 2008, p. 109).

A situação da pessoa com aids era desesperadora, e o descaso do poder público gerou um escândalo. A pressão levou o secretário de saúde, José Pinotti, a rever sua decisão, até mesmo com a chamada de profissionais que afastara do programa estadual de aids, inclusive Paulo Roberto Teixeira, que nesse período já estava sendo convidado para ações no enfrentamento da aids em âmbito mundial.

Em entrevista em França (2008), Paulo Roberto Teixeira relata o retorno ao programa e as condições favoráveis que culminaram com a criação do Centro de Referência em DST/Aids do estado de São Paulo:

Então ele pediu para mim, à Maria Eugenia, à Walquiria e à Rosana um plano de emergência para resolver a questão crítica em que estava o programa de aids e consertar o estrago. Nós aproveitamos a oportunidade e aí sim, com carta branca dele em todos os sentidos, inclusive financeiro, montamos o centro de referência e reorganizamos todo o programa do estado com bases muito mais avançadas. Esse foi o segundo capitulo no combate à aids no Estado de São Paulo (Paulo Teixeira, entrevista em FRANÇA, 2008, p. 124).

O estado de São Paulo foi um dos primeiros estados a construir o Suds, entre os anos de 1987 e 1988, quando a Secretaria da Saúde paulista tomou posse dos hospitais pertencentes ao Inamps. O princípio da descentralização já havia mostrado bons resultados no cenário da aids, sem esquecer que o programa do estado de São Paulo fora criado dois anos à frente do programa nacional de aids.

O programa estadual tornou-se modelo de sucesso na assistência e prevenção à aids, e se transformou em campo de estágio de profissionais da saúde de diversos estados brasileiros. Com a crescente epidemia mundial, também recebeu profissionais de diversos países (FRANÇA, 2008).

O reconhecimento nacional e internacional do programa de São Paulo possibilitou o fortalecimento da resposta à epidemia no próprio País, considerando o

conhecimento apropriado pelos profissionais e as conquistas na assistência às pessoas que vivem com HIV/aids. No conjunto das ações para controle da aids, tornavam-se imprescindíveis respostas em âmbito federal, na perspectiva de aglutinar informações e desenvolver estratégias de prevenção para todo o País.

A resposta veio em maio de 1985, com a publicação pelo Ministério da Saúde da Portaria nº 236, de 2 de maio, com aprovação de diretrizes para a criação do Programa Nacional de Controle da Sida ou Aids, com o objetivo de coordenar, no nível nacional, as correspondentes ações de vigilância epidemiológica.

A estrutura organizativa do programa paulista (com a influência das diretrizes estabelecidas no âmbito da reforma sanitária e da política de controle da hanseníase) e a forte participação de segmentos sociais mais afetados passaram a ser referência e a influenciar a atuação de outros estados e do governo federal. No Rio Grande do Sul, por exemplo, as ações contra a aids passaram a ser estruturadas a partir de dezembro de 1983, quando foram notificados dois casos. Naquele estado, assim como em São Paulo, as primeiras ações foram atribuídas ao Serviço de Dermatologia Sanitária. No estado do Rio de Janeiro, embora as atividades estaduais tenham se institucionalizado em 1989, as primeiras respostas ocorreram desde 1984, a partir da atuação de um grupo de médicos e mais tarde com o engajamento de representantes da sociedade civil (GRANGEIRO; SILVA; TEIXEIRA, 2009, p. 89).

Com a criação do Programa Nacional, as notificações dos casos de aids tornaram-se obrigatórias no País. No momento de criação do Programa Nacional, 11 estados brasileiros já tinham programas minimamente estruturados, seguindo o exemplo do programa paulista.