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CAPÍTULO III A CRIAÇÃO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E SEUS ASPECTOS INSTITUCIONAIS

3.4 O Princípio da Complementaridade

Todos os países que ratificaram o Estatuto de Roma possuem um Poder Judiciário instalado e em pleno funcionamento. Em assim sendo, uma das dúvidas suscitadas durante a elaboração do Estatuto consistiu em estabelecer se a jurisdição do Tribunal Penal Internacional seria prevalente ou complementar às jurisdições dos Estados-partes.

Diferentemente do que se deu com os Tribunais Internacionais Militares de Nuremberg e de Tóquio, bem como dos Tribunais Ad Hoc para a Antiga Iugoslávia e de Ruanda, que têm por característica comum a jurisdição internacional prevalente às jurisdições nacionais, no caso do Tribunal Penal Internacional optou-se pela regra da complementaridade.100

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CLAPHAM, Andrew. Issues of complexity, complicity and complementarity: from the Nuremberg trials to the dawn of the new international criminal court. In: From nuremberg to the hague: the future of international criminal justice. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 64.

Não se pode esquecer que a jurisdição do Tribunal Penal Internacional é fruto de um acordo multilateral dos próprios Estados-partes.

Desde as primeiras reuniões do Comitê Ad Hoc, a questão do relacionamento entre o Tribunal Penal Internacional e as jurisdições nacionais mostrou-se crucial. Já nos primeiros encontros, verificou-se que o papel a ser desempenhado pelo Tribunal dependeria muito deste relacionamento.101

Ao ratificar o Estatuto de Roma os Estados aceitaram transferir poderes punitivos ao Tribunal Penal Internacional no que diz respeito aos crimes mencionados no artigo 5º do Estatuto.102

A adoção do princípio da complementaridade torna claro que a responsabilidade inicial para a repressão de crimes de interesse internacional cabe aos tribunais nacionais, com a eventual cooperação internacional. A leitura do quarto parágrafo do Preâmbulo do Estatuto de Roma, torna claro que esta foi a postura adotada.103

Vê-se, portanto, que a jurisdição do Tribunal Penal Internacional não substitui inicialmente a jurisdição nacional. Ela só será admitida nos casos em que o Estado falhe no

101

POLITI, Mauro. The establishment of an international criminal court at a crossroads: issues and prospects after the first session of the preparatory committee. In: BASSIOUNI, M. Cherif (org). The international criminal

court: observations and issues before the 1997-98 preparatory committee; and administrative and financial

implications. Chicago: International law association, 1997, p. 141

102

BENVENUTI, Paolo. Complementarity of the international criminal court to national criminal jurisdiction. In: LATTANZI, Flavia; SCHABAS William A. (Org.). Essays on the rome statute of the international criminal

court. Ripa Fagnano Alto: Sirente, 1999, v.1, p. 39. 103

“the most serious crimes of concern to the international community most not go unpunished and that their effective prosecution must be ensured by taking measures at the national level and by measures at the national level and by enhancing international cooperation”.

exercício da sua soberania, permitindo que os crimes mencionados no artigo 5º do Estatuto fiquem impunes.104

O movimento de internacionalização dos direitos humanos tem como uma de suas principais preocupações fazer com que tais direitos passem a figurar como tema de legítimo interesse da comunidade internacional. Em assim sendo, pode-se compreender mais facilmente o princípio da complementaridade. Caberá ao Estado, inicialmente, responsabilizar eventuais violações aos direitos humanos. Todavia, a comunidade internacional e o Tribunal Penal Internacional terão responsabilidade subsidiária e complementar, podendo o Tribunal ser acionado quando as instituições nacionais se mostrarem falhas ou omissas na proteção dos direitos humanos.105

Para que o Tribunal Penal Internacional possa realizar o julgamento de determinado crime, necessário se faz que não estejam presentes as causas de inadmissibilidade previstas no artigo 17 do Estatuto de Roma. São elas as abaixo enumeradas:

a) quando o caso estiver sendo investigado ou já houver processo no Estado que tenha jurisdição sobre ele, a menos que o Estado não tenha condições de levar a cabo, de maneira eficaz, o julgamento;

104

BENVENUTI, Paolo. Complementarity of the international criminal court to national criminal jurisdiction. In: LATTANZI, Flavia; SCHABAS William A. (Org.). Essays on the rome statute of the international criminal

court. Ripa Fagnano Alto: Sirente, 1999, v.1, p. 22. 105

PIOVESAN, Flávia. Princípio da complementaridade e soberania. Revista CEJ, v. 4, n. 11, maio/ago. 2000, p. 72.

b) quando o caso já estiver sendo investigado pelo Estado de jurisdição originária e se tenha decidido por não dar início ao processo, a menos que a decisão não tenha respeitado os ditames legais;

c) caso o réu já tenha sido processado pela prática da conduta e o julgamento pelo Tribunal Penal Internacional esteja vedado, de acordo com o previsto no art. 20, parágrafo 3, do Estatuto;

d) caso a gravidade da conduta não seja suficiente para justificar a atuação do Tribunal Penal Internacional.

Da análise de tais requisitos, observa-se que o ponto determinante para a admissibilidade de um caso pelo Tribunal é que o Estado de jurisdição originária não tenha sido hábil para investigar e efetuar a persecução penal. Caso o Tribunal conclua que a jurisdição nacional é confiável, deverá ser dada preferência a ela.106

Caberá ao Ministério Público demonstrar que a jurisdição originária não está sendo exercida ou não mereça confiança. Para tanto, deverá ficar caracterizada a prática de crime da competência do Tribunal e pelo menos uma das situações previstas pelo art. 17 (2), do Estatuto de Roma, quais sejam:

a) o processo ter sido instaurado, ou estar pendente, ou a decisão ter sido proferida com a finalidade de subtrair a pessoa de sua responsabilidade criminal;

106

BERGSMO, Morten. O regime jurisdicional da corte internacional criminal. In: CHOUKR, Fauzi Hasan, AMBOS, Kai (Org.).Tribunal penal internacional. São Paulo: RT, 2000, p. 239.

b) demora injustificada no processamento que se mostre incompatível com a intenção de responsabilizar a pessoa perante a justiça;

c) a condução do processo de maneira parcial, bem como de maneira incompatível com a intenção de submeter a pessoa a julgamento.

O parágrafo 3 do art. 17 ainda estabelece que caberá ao Tribunal verificar se o Estado, devido ao total colapso de seu sistema judiciário, estará capacitado a fazer comparecer o acusado perante a justiça, bem como a reunir os meios de prova e depoimentos necessários à realização do julgamento.

Verifica-se, portanto, a existência de uma presunção no sentido de que os Estados estarão legitimados a agir e punir os autores de crimes previstos no Estatuto. Todavia, aludida presunção é relativa e poderá restar vencida quando caracterizada quaisquer das situações acima elencadas.

A adoção do princípio da complementaridade foi um mecanismo jurídico inteligente adotado pelo Estatuto de Roma, impedindo que princípios arraigados como soberania, territorialidade e extraterritorialidade sejam utilizados para a inviabilização da aplicação da jurisdição internacional.107

No que diz respeito à coisa julgada, o art. 20 do Estatuto deixa claro que se o julgamento tiver sido realizado pelo Tribunal Penal Internacional, gerará efeitos impeditivos de nova apreciação do comportamento por um tribunal nacional. Contudo, caso o julgamento tenha

107

CONCESI, Alexandre. A jurisdição universal. Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da

ocorrido em um Estado e fique caracterizada a intenção de não o realizar de maneira efetiva e imparcial, de acordo com as normas internacionais do devido processo legal, o Tribunal Penal Internacional estará legitimado a realizar nova apreciação do fato.

3.5 A entrega

O Estatuto de Roma, na sua Parte IX, trata da cooperação internacional que os países signatários prestarão ao Tribunal. Um dos temas mais debatidos durante a realização dos trabalhos para a elaboração do Estatuto de Roma foi o que diz respeito à captura e entrega de pessoas ao Tribunal.

Não foi sem razão que este ponto ficou em aberto até fim das negociações, pois mesmo entre os Estados que manifestamente desejavam um Tribunal Penal Internacional havia discussões que levavam em conta as normas de proibição de extradição de nacionais. Todavia, a impossibilidade de entrega de pessoas ao Tribunal, sem dúvida alguma, inviabilizaria a eficiência da Corte.108

108 KREβ, Claus. Penas, Execução e cooperação no estatuto para o tribunal penal internacional. CHOUKR, Fauzi

Necessário se faz, inicialmente, perquirir se extradição109 e entrega110 são expressões diferentes da mesma conduta, se a entrega é uma espécie de extradição, ou se são institutos autônomos.

Com a finalidade de afastar qualquer dúvida, o Estatuto tornou claro que são institutos diversos e para tanto, no art. 102, trouxe a definição de cada um, estabelecendo a distinção. Da leitura do artigo observa-se que a “extradição” foi considerada como a entrega de uma pessoa de um Estado a outro, de acordo com o disposto em convenção, tratado ou no direito interno. Por sua vez, a “entrega” foi tida como sendo a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal, de acordo com as regras estabelecidas no Estatuto.

Informa Claus Kreβ que aludida distinção foi um dos argumentos utilizados para demover os países que se opunham ao instituto da entrega. Vejamos:

“primeiro, foi apontado que, com base no princípio da complementaridade, os Estados poderiam efetivar a persecução aos seus nacionais sem a necessidade de entregá-los à Corte. Segundo, deveria ficar claro que a entrega de nacionais não se confundia com o processo de extradição entre Estados, não apenas quanto à terminologia mas, também, em substância.[...]Como muitas delegações enfatizaram a diferença entre entrega (para a Corte) e extradição (para outro Estado), facilitou-se o consenso e as duas definições foram incluídas no art. 102”111

Para que uma pessoa acusada seja submetida ao Tribunal, o Estatuto112 permite que a Corte transmita um pedido de captura e entrega. Aludido pedido, acompanhado de cópia do respectivo mandado e de informações suficientes que permitam a identificação do indivíduo

109

Extradition

110

Surrender

111 KREβ, Claus. Penas, Execução e cooperação no estatuto para o tribunal penal internacional. CHOUKR, Fauzi

Hasan, AMBOS, Kai (Org.).Tribunal penal internacional. São Paulo: RT, 2000, p. 137-138

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procurado e dados sobre seu possível paradeiro, será transmitido a qualquer Estado em cujo território o indivíduo se encontre.

Por sua vez, no que diz respeito ao procedimento a ser adotado pelo Estado- parte que receber o mandado, ficou estabelecido que serão adotadas imediatamente as medidas necessárias para a captura, em conformidade com o seu direito interno. Portanto, o procedimento de prisão ou captura, como, por exemplo, hora e meios utilizados, serão determinados pelas leis do Estado-parte encarregado de cumprir o mandado.

Ficou assegurado ao preso o direito de ser levado imediatamente à presença de uma autoridade judicial do agora chamado Estado de custódia, podendo requerer liberdade provisória, antes da entrega.113

Havendo processos concomitantes no Estado e no Tribunal Penal Internacional, poderá o Estado requerido consultar o Tribunal para saber se houve uma decisão sobre a admissibilidade da causa, caso o indivíduo cuja entrega for solicitada impugnar o pedido com base na violação do princípio ne bis in idem. Na hipótese da causa já ter sido admitida, o Estado requerido executará o pedido. Contudo, caso a decisão sobre a admissibilidade da causa esteja sendo analisada, o Estado requerido poderá adiar a execução do pedido de entrega até que o Tribunal profira decisão.

Estando a pessoa procurada sendo processada criminalmente ou cumprindo pena no Estado requerido, por crime diverso daquele pelo qual está sendo solicitada sua entrega

113

ao Tribunal, o Estado requerido, decidindo atender o pedido de entrega, manterá consultas com o Tribunal, encontrando uma solução adequada, em nome do princípio da ampla cooperação.