A PENA DE PRISÃO PERPÉTUA DO ESTATUTO DE ROMA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação “Stricto Sensu” em Direito Internacional da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Fontoura.
TERMO DE APROVAÇÃO
Dissertação de autoria de Francisco Antônio Alves de Oliveira, requisito parcial para obtenção do grau de Mestre do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito,
defendida e aprovada, em 31 de março de 2006, pela banca examinadora constituída por:
Prof. Dr. Jorge Luiz Fontoura Nogueira
Orientador (a)
Prof(ª). Dr(ª). Maria Elizabeth G. Teixeira Rocha Membro Externo
Prof. Dr. Antenor P. Madruga Filho Membro Interno
AGRADECIMENTOS
O que fomos, o que somos e o que seremos é eternamente influenciado por
pessoas especiais que cruzam nossos caminhos. São pessoas cujas contribuições excederam os
limites desta dissertação e, seguramente, suas contribuições acompanhar-me-ão por toda a vida.
Ao Professor Doutor Jorge Fontoura, pela formação profissional, pelo
acolhimento nesta pesquisa, pela supervisão, orientação incansável, estímulo intelectual e
vivência científica. Foram muito importantes suas críticas, comentários e apoio. Obrigado pela
orientação tranqüila e extremamente competente. Um grande amigo e exemplo do que é ser
Pesquisador e Educador.
À Professora Glória, pela revisão ortográfica da dissertação.
Ao caro amigo Marco Antônio.
Aos servidores da Biblioteca do Tribunal de Justiça do Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e Territórios, sempre atenciosos e competentes.
Ao egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, por ter
proporcionado meios para a realização deste trabalho.
“A dificuldade não está nas idéias novas, mas em escapar das antigas”.
RESUMO
Trata-se de dissertação de mestrado que tem por finalidade examinar o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional e sua compatibilidade com a Constituição brasileira de 1988, destacadamente no que diz respeito à pena de prisão perpétua, prevista no mencionado Estatuto e vedada em nossa Carta Magna. Com este escopo, inicia-se com a abordagem do que seja Direito Internacional Penal, e o relacionamento entre o Direito Internacional e o Direito pátrio, face a internacionalização dos direitos humanos. Após, são apresentados os antecedentes históricos do TPI, com as iniciativas anteriores à Segunda Guerra Mundial, e, em seguida, os Tribunais Internacionais Militares de Nuremberg e de Tóquio, alcançando os Tribunais Penais Internacionais para a ex-Iugoslávia e para Ruanda. Dando continuidade, são examinados os trabalhos realizados para a criação do TPI, abordando, entre outros aspectos, seus princípios gerais de Direito Penal, composição e administração da Corte, Ministério Público, princípio da complementaridade, entrega de pessoas para julgamento pela Corte, crimes e penas previstos pelo Estatuto de Roma. Posteriormente, analisa-se o Estatuto de Roma à luz da Constituição brasileira, especificamente no que diz respeito à compatibilidade do texto do tratado, quando prevê a aplicação da pena de prisão perpétua, com a vedação constitucional da aplicação de penas desta natureza. Por fim, menciona-se a Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, em vigor a partir de 31 de dezembro do mesmo ano, considerando-se a inserção no texto constitucional de tópicos referentes ao Tribunal Penal Internacional, bem como a necessidade premente de elaboração e votação de projeto de lei destinado a possibilitar o julgamento primário, em nosso país, de pessoas acusadas de crimes da competência do Tribunal Penal Internacional, e possibilitar a cooperação pátria com aquela Corte.
ABSTRACT
This dissertation aims at the examination of the Rome Statute of the International Criminal Court and its compatibility with the Brazilian Constitution of 1988, specifically as regards lifetime prison, contemplated in the Rome Statute and banned form our Magna Carta.Within this scope, the analysis of the definition of the concept of International Criminal Law is initiated, the intersection of International and National Law is targeted, given the internationalisation of human rights. The historic background of the International Criminal Court is then presented, including the initiatives prior to the Secon World War and the Military Courts of Nuremberg and Tokyo, widening the territory of International Criminal Courts to the former Yoguslavia and Ruanda. There follows an analysis of the work presented to the creation of the International Criminal Court, studying, among other aspects, its general principles of Criminal Law, the composition and administration of the Court, Office of the Prosecutor, the principle of complementarity, the incumbence of defendants to the court, crimes and penalty contemplated by the Rome Statute. The Rome Statute is then analysed in the light of the Brazilian Constitution, especially as regards the compaibility of the text in question, when it contemplates the use of lifetime imprisonment, with the constitutional ban of such penalty. Finally, the Constitutional Amedment Bill 45 from 8th December, 2004, working since 31st December, 2004, taking into consideration the constitutional text referring to topics concerning the International Criminal Court as well as the pressing need to vote a bill destined to enable the primary trial of people accused of crimes under the sphere of that Court, making the cooperation with the International Criminal Court a possibility.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...1
1. A TUTELA INTERNACIONAL DOS DIREITOS INTERNACIONAIS E DIREITOS HUMANOS...5
1.1 Direito Internacional Penal...5
1.2 O relacionamento entre o Direito Internacional e o Direito Interno diante da internacionalização dos Direitos Humanos...8
2. A NECESSIDADE DE UM TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PERMANENTE...15
2.1 – Antecedentes históricos...15
2.1.1 – As primeiras iniciativas...15
2.1.2 – O Tribunal de Nuremberg...18
2.1.3 – O Tribunal de Tóquio...21
2.1.4 – As providências adotadas após a Segunda Guerra Mundial...24
2.1.5 – O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia...26
2.1.6 – O Tribunal Penal Internacional para Ruanda...31
3. A CRIAÇÃO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E SEUS ASPECTOS INSTITUCIONAIS...37
3.1 – Os trabalhos realizados para a criação do Estatuto de Roma...37
3.2 – Princípios Gerais do Direito Penal norteadores do Tribunal Penal Internacional...43
3.3 – Composição e Administração do Tribunal Penal Internacional...48
3.4 – O Princípio da Complementaridade ...59
3.5 – A entrega ...64
3.6 – Os crimes e penas previstos pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional...67
3.6.1 – O crime de genocídio...69
3.6.2 – Os crimes contra a humanidade...72
3.6.3 – Os crimes de guerra...75
3.6.4 – As penas...78
4. A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E O ESTATUTO DE ROMA...81
4.1 – A ratificação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional...81
4.2 – A pena de prisão perpétua do Estatuto de Roma e a Constituição Brasileira...82
4.3 – A emenda constitucional n. 45/2004...92
4.5 – O anteprojeto de lei que define o crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes contra a administração da justiça do Tribunal Penal Internacional e dispõe sobre a cooperação judiciária entre o Tribunal Penal Internacional e dá outras providências...96
INTRODUÇÃO
O grande número de conflitos armados que assolou o mundo durante o século
XX, causando milhões de vítimas e deixando impunes os autores das mais sérias condutas que
violam os direitos humanos, chama a atenção dos que acreditam no uso de mecanismos legais
para diminuir futuras condutas criminosas e aplacar, em parte, o sofrimento das vítimas e seus
familiares.
As tentativas de criação de um Tribunal Penal Internacional permanente
surgiram desde o fim da Primeira Guerra Mundial, mas a perspectiva de soberania dos Estados
impediu que fossem adiante, sempre contrária às idéias de submeterem seus cidadãos ao
julgamento de tribunais estranhos aos seus limites territoriais.
Houve uma mudança de postura logo após a Segunda Guerra Mundial, pois as
atrocidades ocorridas espantaram a comunidade internacional, tornando possível a criação de
tribunais internacionais militares que julgaram alguns dos autores dos crimes praticados. Aludido
comportamento demonstrou ser possível a criação de um código e de uma corte internacional
penal, a partir de vontade política dos líderes mundiais e engajamento da sociedade civil.
Lamentavelmente, as diferenças ideológicas que surgiram entre os Estados
Unidos da América do Norte e a então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas durante os
anos da guerra fria impediram que prosperassem iniciativas voltadas à criação da corte
Somente a partir de 1987, com as mudanças promovidas na União Soviética,
momento em que o país então liderado por Mikhail Gorbatchev deixa de ser considerado pelos
Estados Unidos como uma ameaça militar, tem-se novamente a oportunidade para voltar a
discutir iniciativas e ações cooperadas no âmbito internacional para elaboração de um código
internacional penal.
Desde então, a Organização das Nações Unidas volta à cena internacional como
verdadeiro ator que busca o julgamento e sanção daqueles que praticam crimes contra a
segurança da humanidade. Para tanto, basta observarmos a instalação dos Tribunais ad hoc para a
ex-Iugoslávia e Ruanda.
Apesar destas iniciativas, muitas são as críticas que pesam sobre os Tribunais
Internacional Militares de Nuremberg e de Tóquio, entre outras, no sentido de que foram cortes
em que os vencedores julgaram os vencidos em um conflito armado.
Os Tribunais ad hoc para a ex-Iugoslávia e Ruanda também não estão livres da
argumentação. Como o próprio nome indica, foram criados para isso. Por conseqüência,
sustenta-se que são tribunais de exceção, pois criados especificamente para o julgamento dos fatos
previstos em seus estatutos.
A Organização das Nações Unidas não se mostra alheia a tais críticas. Ao
contrário, realiza um esforço inequívoco, acompanhada de diversos Estados-membros, para a
elaboração de um código internacional criminal e criação da corte internacional criminal
1998, oportunidade em que foi discutido e elaborado o texto final do Estatuto que também leva o
nome da capital italiana e que possibilitou a efetiva criação do Tribunal Penal Internacional.
O resultado deste esforço traz para a sociedade a definição de comportamentos
vedados, cuja prática poderá fazer com que seu autor seja submetido a julgamento por uma corte
já determinada.
O presente trabalho tem como finalidade mostrar, em quatro capítulos, os
objetivos e preocupações do direito internacional penal, a evolução histórica dos fatos que
levaram à elaboração do Estatuto de Roma, bem como aspectos institucionais do Tribunal Penal
Internacional e a exposição de alguns aparentes conflitos existentes entre o Estatuto e a
Constituição Brasileira.
No primeiro capítulo, realizou-se uma abordagem acerca da necessidade de
tutela internacional dos direitos fundamentais e direitos humanos, em razão dos diversos conflitos
armados que se mostram permanentes no curso dos séculos. Encerra-se o capítulo, fazendo-se
uma exposição do relacionamento existente entre as regras de direito internacional e do direito
interno em razão do desenvolvimento da internacionalização dos direitos humanos.
No segundo capítulo passou-se a tratar da necessidade de criação de um tribunal
penal internacional de caráter permanente. Para tanto, foi traçada uma evolução das diversas
cortes criadas para julgar as graves violações ao direito internacional humanitário ocorridas
O terceiro capítulo tem início com o relato dos esforços realizados para a
criação do Estatuto de Roma. Em seguida, realiza-se uma exposição dos princípios gerais de
direito penal que norteiam o Tribunal Penal Internacional, a maneira com que se dá a composição
e administração da Corte, em que consiste o princípio da complementaridade, o instituto da
entrega, encerrando-se com o registro dos crimes e penas previstos pelo Estatuto do Tribunal.
O quarto capítulo registra os diversos aspectos que envolveram a previsão da
pena de prisão perpétua no Estatuto de Roma, incluindo as discussões realizadas nas sessões da
Comissão Preparatória para a Conferência de Roma e os debates existentes acerca da conseqüente
compatibilidade, ou não, do mencionado Estatuto com a Constituição Brasileira em razão da
existência de tal sanção e da impossibilidade da ratificação do tratado com reservas.
O trabalho é concluído com a exposição objetiva do autor sobre a
compatibilidade do Estatuto de Roma com a Constituição Brasileira e a exposição da necessidade
de aprovação de projeto de lei para viabilizar a prestação jurisdicional primária pelo Brasil, nas
hipóteses de crimes também sujeitos a sanção pelo Tribunal Penal Internacional, bem como
CAPÍTULO I – A TUTELA INTERNACIONAL DOS DIREITOS
INTERNACIONAIS E DIREITOS HUMANOS
1.1. DIREITO INTERNACIONAL PENAL
A necessidade de disciplinar questões criminais no âmbito do direito
internacional passou a ser objeto de discussões, com maior ou menor destaque, após a primeira
guerra mundial.
O direito internacional público, tradicionalmente, só tratava das relações entre
os Estados ou entre outros sujeitos de direito internacional público. O comportamento criminoso
não era objeto de estudo do direito internacional, mas se encontrava no âmbito do direito penal de
cada Estado.
Com o passar dos tempos sentiu-se a necessidade de regulamentar e
criminalizar alguns comportamentos, individuais ou de determinados grupos, que têm a
capacidade de por em risco a convivência entre os homens e a paz entre os Estados.1
Não há dúvida que a comunidade internacional tem a obrigação de proteger os
direitos fundamentais e os direitos humanos reconhecidos na Carta das Nações Unidas. Tais bens
jurídicos ultrapassam os limites do direito penal nacional e as violações dos mesmos podem ser
consideradas como crimes internacionais.2
1
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O tribunal penal internacional:a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 15.
2
Após a Segunda Guerra Mundial, o direito internacional penal ganhou maior
importância e atenção da comunidade jurídica. A partir de então se passou a responsabilizar o
indivíduo internacionalmente pela prática de atos considerados criminosos.
Os Tribunais de Nuremberg e Tóquio foram de importância fundamental para o
reconhecimento do direito internacional penal, uma vez que puniram autores de crimes praticados
contra a humanidade.
Posteriormente, surgiram os Tribunais Penais “ad hoc” para Ruanda e para a
ex-Iugoslávia, ambos sedimentando a idéia de que a comunidade internacional não será
complacente com a prática de crimes que atentem contra os direitos humanos.
Conforme bem registra Valério de Oliveira Mazzuoli:
“Já se pretendeu ver instituído um Tribunal Penal Internacional, de caráter permanente e com jurisdição universal, desde à época que os primeiros grandes atentados à dignidade humana começaram a aparecer no cenário internacional. Hoje este sonho já se tornou realidade. À custa de muito sangue durante vários períodos históricos marcantes, conseguiu-se finalmente criar a então sonhada Justiça Penal Internacional.”3
Não existia um Tratado de Direito Internacional que regulamentasse de forma
sistemática o direito internacional penal, até a data em que entrou em vigor o Estatuto de Roma
do Tribunal Penal Internacional.4
Os doutrinadores estabeleceram a diferença entre direito internacional penal e
direito penal internacional. Segundo Zaffaroni e Pierangeli, o primeiro deles tem por função a
3
MAZZUOLI, Valério da Oliveira. O Tribunal Penal Internacional e o direito brasileiro. São Paulo: Premier Máxima, 2005, p. 15.
4
tipificação internacional dos crimes por meio dos tratados e o estabelecimento da jurisdição penal
internacional. Já o direito penal internacional determina o âmbito de validade da lei penal de cada
Estado e a competência de seus tribunais.5
Mirabete afirma que o direito internacional penal é o ramo do direito
internacional público que tem por objetivo a luta contra as infrações internacionais.6
Por sua vez, Celso D. Albuquerque Mello o define como sendo o ramo do
Direito Penal que determina a competência do Estado na ordem internacional para a repressão
dos delitos, bem como regulamenta a cooperação entre os estados em matéria penal.7
Luiz Flávio Gomes informa que o direito penal internacional faz parte do
direito público interno e o direito internacional penal integra o direito internacional e é voltado
para a disciplina do ius puniendi nas relações entre os Estados soberanos.8
O ponto comum entre tantas definições está no reconhecimento de que há
determinados crimes que atingem não só um Estado, mas toda a comunidade internacional, uma
vez que são comportamentos que atentam contra os direitos humanos.
De acordo com Antônio Cassese, Direito Internacional Penal é o conjunto de
normas destinadas a banir os crimes internacionais e a impor aos Estados a obrigação de
5
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 151.
6
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2003, v.1, p. 29. 7
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito Penal e Direito Internacional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1978, p. 14.
8
processar e punir pelo menos alguns desses crimes. Também regula os procedimentos
internacionais para o processo e julgamento das pessoas acusadas de tais crimes.9
Tais comportamentos passaram a ser objeto de preocupação de uma área do
direito internacional público e hoje, após longos e intensos esforços, estão tipificados como
crimes no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
1.2 O relacionamento entre o Direito Internacional e o Direito Interno diante da
internacionalização dos Direitos Humanos
Bastante antigas são as discussões existentes sobre as relações entre o direito
interno e o direito internacional no que diz respeito à regra que prevalecerá no caso de conflito
entre as normas internas e as internacionais. Um estudo de como ocorrem tais relações se mostra
necessário para uma melhor compreensão da possibilidade de adoção e da compatibilidade do
Estatuto do Tribunal Penal Internacional com a Constituição Brasileira.
Duas são as correntes que abordam o tema referente às relações entre o direito
internacional e o direito interno, quais sejam, a corrente dualista e a monista.
A corrente de pensamento conhecida como dualista tem como seu defensor
mais destacado o jurista alemão Heinrich Triepel. Segundo ele, a ordem jurídica interna e a
internacional são completamente diversas, com origens e destinatários diferentes. Sustenta que
são sistemas “que se ignoram reciprocamente e não se superpõem, salvo nos casos de haver uma
9
recepção das normas internacionais nos ordenamentos jurídicos nacionais, o que se realiza por
meio de uma lei ou de um ato expresso do Poder Executivo dos Estados”.10 Como conseqüência,
não poderia haver conflito entre normas internas e internacionais, mas somente conflito de
normas internas a ser resolvido de acordo com o ordenamento jurídico nacional.
Contrário ao pensamento dualista surge a formulação monista de Hans Kelsen.
Para a corrente monista há unidade no ordenamento jurídico. Não se pode, portanto, falar em
divergência entre dois ordenamentos. Sustenta que o Estado celebra tratados no exercício de sua
soberania, fazendo com que ingressem em seu ordenamento jurídico as normas pelas quais se
obrigou. De acordo com os monistas, não se faz sequer necessária a edição de normas internas
para que os tratados se tornem aplicáveis.
Nesse sentido, cita Guido Soares:
“Partindo do pressuposto de que as normas internas e as internacionais constituem um único fenômeno normativo, que têm em mira regular o comportamento livre dos homens e sua natural sociabilidade, em qualquer circunstância, inclusive em seu relacionamento fora da própria comunidade, somente existiria um único fenômeno normativo, que têm em mira regular o comportamento livre dos homens e sua natural sociabilidade, em qualquer circunstância, inclusive em seu relacionamento jurídico, sendo os ordenamentos jurídicos nacionais sistemas normativos parciais, que se integram no ordenamento jurídico internacional. Sendo assim, as convenções e tratados internacionais, bem como o costume internacional, têm vigência imediata nos ordenamentos jurídicos internos, sem necessidade de qualquer ato formal de recepção (e mesmo exigindo-se um ato de internalização, como uma lei nacional ou atos complexos de cooperação entre o Executivo e o Legislativo nacionais, as ordens jurídicas seriam a mesma realidade normativa, com particularidades em sua feitura)”.11
10 SOARES, Guido Fernando Silva, Curso de Direito Internacional Público, 2. ed., São Paulo: Atlas, 2004, v.1, p. 204.
Tratando do assunto, Jacob Dolinger informa que com o passar do tempo teriam
surgido três correntes monistas. A primeira delas defenderia a primazia do direito interno sobre o
direito internacional; a segunda sustentaria a primazia do direito internacional sobre o direito
interno e a terceira os equipararia, prevalecendo a regra que for criada por último.12
De acordo com Hildebrando Accioly, o direito internacional tem supremacia
sobre o direito interno, uma vez que deriva de um princípio superior à vontade dos Estados.
Afirma que, se é verdade que a lei interna tem o condão de revogar leis anteriores a ela, não se
pode dizer o mesmo quando a lei anterior representa direito convencional transformado em
direito interno, pois o Estado tem o dever de respeitar as obrigações contratuais e não as pode
revogar unilateralmente. Segundo ele, pode-se afirmar que, na legislação interna, os tratados ou
convenções a ela incorporados constituem uma categoria jurídica especial que a lei interna,
comum, não pode revogar.13
Analisando eventuais conflitos entre normas de direito interno e aquelas que
são fruto de atos ou tratados internacionais, Alexandre de Moraes sustenta que a solução se dará
pela “aplicação do critério cronológico, devendo a norma posterior revogar a anterior ou pelo
princípio da especialidade”.14 Conclui o autor pela “supremacia das normas constitucionais em
relação aos tratados e atos internacionais, mesmo que devidamente ratificados”.15
12 DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: parte geral. 7.ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.92. 13 Apud STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A convenção americana sobre direitos humanos e sua
integração ao processo penal brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 71-72.
14 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5.ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 306-307.
As Constituições brasileiras nunca se manifestaram a respeito do
posicionamento hierárquico entre as normas internas e os tratados e convenções internacionais.
Aludida omissão é fato gerador de perplexidade e da divergência existente entre os doutrinadores
internacionalistas brasileiros, “que não se entendem entre si, em especial no que se refere a
monismo ou dualismo, nem com alguns constitucionalistas, aferrados a um nacionalismo de certa
forma ultrapassado, ou em descompasso com os fenômenos da globalização a que o País, quer
queiram, quer não, se encontra submetido.” 16
Flávia Piovesan sustenta que, de acordo com o artigo 5º, § 1º, da Constituição
brasileira de 1988, os tratados internacionais que versam sobre matéria de direitos humanos
devem receber o caráter de norma constitucional, ficando ainda assegurada sua incorporação
automática ao ordenamento jurídico, independentemente de atos legislativos ou com força de
lei.17
No mesmo sentido também se mostra o pensamento de Fernando Luiz Ximenes
Rocha quando registra a:
“posição feliz do nosso constituinte de 1988, ao consagrar que os direitos garantidos nos tratados de direitos humanos em que a República Federativa do Brasil é parte recebe tratamento especial, inserindo-se no elenco dos direitos constitucionais fundamentais, tendo aplicação imediata no âmbito interno, a teor do disposto nos parágrafos 1º e 2º do artigo 5º da Constituição Federal.”18
16 SOARES, Guido Fernando Silva, Curso de Direito Internacional Público, 2. ed., São Paulo: Atlas, 2004, v.1, p. 225.
17 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 5.ed.,São Paulo: Max Limonad, 2002, p.313.
Carlos Eduardo Adriano Japiassú sustenta que o tratado que ratificou o Estatuto
de Roma, instituindo o Tribunal Penal Internacional, possui natureza de tratado internacional de
direitos humanos e, ao ser assinado, passou a ser exigível automaticamente.19
Destaca Cançado Trindade que se não houver a consolidação das obrigações,
erga omnes, de proteção no âmbito do direito internacional dos direitos humanos, como normas
de jus cogens, pouco será o avanço na luta contra o poder arbitrário. Ressalta ainda o autor:
“É este o caminho a seguir, para que não mais tenhamos de conviver com as contradições trágicas que marcaram o século passado. A consagração das obrigações erga omnes de proteção representa a superação de um padrão de conduta erigido sobre a pretensa autonomia da vontade do Estado, do qual o próprio direito dos tratados buscou gradualmente se liberar ao consagrar o conceito de jus cogens. Há que dar seguimento à evolução alentadora da consagração das normas de jus cogens, impulsionada sobretudo pela opinio juris
como manifestação da consciência jurídica universal, em benefício de todos os seres humanos.”20
Por sua vez, Celso D. de Albuquerque Mello registra que no seu entendimento,
no que diz respeito a direitos humanos, a norma internacional deve prevalecer sobre a norma
constitucional, mesmo nos casos em que a norma constitucional posterior tente revogar uma
norma internacional constitucionalizada. Sustenta a tese de que deve se aplicar a norma mais
benéfica ao ser humano, seja ela interna ou internacional.21
Abordando o tema, Sylvia Steiner sustenta que o Brasil adota o sistema monista
de introdução de regras de direito internacional na ordem jurídica interna, argumentando que o
decreto legislativo de aprovação do texto, assim como o decreto de promulgação não traduzem a
19 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O tribunal penal internacional:a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 6.
20 Apud MAIA, Marrielle. Tribunal Penal Internacional: aspectos institucionais, jurisdição e princípio da complementaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, prefácio.
21
necessidade de edição de lei ordinária reiterando os termos do tratado. Acrescenta que as normas
de proteção dos direitos do homem encontram-se incorporadas ao rol de direitos e garantias
fundamentais previsto no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, e, por conseqüência, as normas
de proteção aos direitos do homem possuem, formalmente, categoria diferenciada no
ordenamento jurídico brasileiro. Finaliza a autora sustentando que nos eventuais conflitos
existentes entre normas decorrentes da incorporação dos tratados e dispositivos constantes do
texto constitucional, devem a doutrina e, destacadamente, a jurisprudência interpretar as normas
em conflito fazendo com que prevaleça, no caso concreto, aquela que for mais favorável ao
indivíduo, preservando ao máximo o sistema de proteção aos seres humanos.22
Valério de Oliveira Mazzuoli, mencionando Jorge Miranda, afirma que a
tendência de humanização do Direito Internacional possui três momentos históricos conexos,
quais sejam:
“O primeiro nasce com a definição internacional ou a consagração internacional dos direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, passa a ser considerada como um código de ética universal de direitos humanos, que fomenta a criação de grandes pactos e convenções internacionais, de documentos e de textos especializados das Nações Unidas e de suas agências especializadas. O segundo, que tem o seu início com a Convenção Européia dos Direitos do Homem (1950) passando para a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), é a consagração de um direito de queixa, ou de um direito de recurso, ou de comunicação dos cidadãos contra o seu Estado perante as instâncias internacionais; trata-se da necessária sujeição dos órgãos do Estado às decisões provenientes de órgãos jurisdicionais internacionais ainda crescentes, criados por tratados também ratificados pelos mesmos Estados de que são cidadãos as pessoas queixosas. Por fim, o terceiro momento é a criação da Justiça Penal Internacional com origem nos Tribunais de Nuremberg e Tóquio, e mais recentemente nos Tribunais para crimes cometidos no território da Ex-Iugoslávia e de Ruanda. Com a criação do Tribunal Penal Internacional, o
22
Direito Internacional dos Direitos Humanos se desenvolve, se concretiza e se enriquece, alargando-se cada vez mais o seu âmbito de proteção.”23
CAPÍTULO II – A NECESSIDADE DE UM TRIBUNAL PENAL
INTERNACIONAL PERMANENTE.
2.1 Antecedentes históricos
2.1.1. As primeiras iniciativas
Como antecedente mais remoto para a criação de uma corte penal internacional
menciona-se o tribunal criado para o julgamento de Peter von Hagenbach, em 1474, na
23
Alemanha. O tribunal foi composto por juízes da Áustria e cidades aliadas, bem como por 16
cavaleiros que representavam a ordem da cavalaria.24 Peter von Hagenbach foi acusado de ter
permitido que suas tropas matassem e estuprassem civis, bem como pela depredação de
propriedades. O acusado argumentou que cumpria ordens de seu superior, qual seja, o Duque de
Borgonha, mas acabou condenado à morte por ter violado as leis então denominadas de divinas e
humanas.25
Também constitui registro histórico a apresentação de proposta de criação de
um tribunal penal internacional feita em 1872 por Gustave Moynier, um dos fundadores e por
muito tempo presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha.26 A proposta vinha
acompanhada de um projeto que continha dez artigos e se orientava principalmente em prevenir e
reprimir crimes de guerra que violassem a Convenção de Genebra de 1864.27
Contudo, a primeira providência efetiva para julgamento dos autores de crimes
praticados em conflitos armados surge em 1919, ao término da Primeira Guerra Mundial. “O
tratado, concluído em Versalhes, no dia 28 de junho daquele mesmo ano, em seu artigo 227,
previa a criação de um tribunal criminal internacional para processar o Kaiser Guilherme II e os
oficiais militares acusados de violar as leis e costumes de guerra.”28 Foi então criada, durante a
sessão plenária da Conferência de Paz de Paris, no dia 25 de Janeiro de 1919, a Commission on
24
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público, v.2. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 972-973.
25
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O tribunal penal internacional:a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 37.
26
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) foi criado em 1863 por Henry Dunante e tem como uma de suas finalidades prestar assistência às vítimas de conflitos armados, tanto por meio do desenvolvimento de normas jurídicas de proteção, como pela ação humanitária em favor dos atingidos pela violência armada.
27
NERI GUAJARDO, Elia Patrícia. Algunas reflexiones en relación al principio de legalidad y la responsabilidad penal individual en el Estatuto de Roma. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo,v. 12, n. 48, p. 11, maio/jun. 2004.
28
the Responsibilities of the Authors of War and on Enforcement of Penalties. Aludida comissão
era composta de dois representantes dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Itália e Japão, e
teve como objetivo investigar crimes ocorridos durante a guerra e estava autorizada a criar um
estatuto e regras de procedimento para uma corte criminal de guerra que iria julgar as violações
das leis e dos costumes de guerra.
Após ter examinado documentos relacionados com a origem da guerra e a
violação de neutralidade e de fronteiras, a comissão recomendou que os militares responsáveis
fossem julgados pela prática de crimes contra a humanidade. Contudo, os Estados Unidos
alegaram que até então não havia a previsão de tais crimes na ordem internacional, fato
impeditivo do julgamento.29
Embora o Tratado de Versalhes trouxesse a previsão de julgar o Kaiser
Guilherme II tal fato não ocorreu, pois o tribunal encarregado desta tarefa nunca foi constituído.
O imperador refugiou-se na Holanda e teve sua extradição negada. Os demais acusados foram
julgados pela Corte Suprema de Leipzig, sendo alguns absolvidos, outros condenados ao
cumprimento de poucos meses de prisão e o único condenado ao cumprimento de pena de quatro
anos fugiu da prisão.30
A impunidade dos autores de tão graves infrações não trouxe desânimo à
comunidade jurídica internacional. Ao contrário, estimulou-os a prosseguir em seus trabalhos
destinados à criação de uma organização jurisdicional supranacional.
29
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O tribunal penal internacional:a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 39
30
A Associação Internacional de Direito Penal (AIDP)31, propôs em 1927, à
Sociedade das Nações a criação de uma Corte Permanente de Justiça Internacional.32
O projeto de criação de uma corte internacional, apresentado em um momento
tão forte do ponto de vista histórico, levou os juristas a terem muitas convergências no que dizia
respeito aos objetivos buscados. Porém, havia divergência no que diz respeito a sua autonomia.
Enquanto alguns consideravam que a jurisdição da Corte deveria ser autônoma, fruto de
convenção internacional, outros sustentavam que bastava a existência de uma câmara dentro da
Corte Permanente de Justiça Internacional, órgão que já existia na Sociedade das Nações.33
Em 1937, a Liga das Nações elaborou uma convenção destinada à prevenção do
terrorismo que em seu artigo 1º previa o estabelecimento de um tribunal penal internacional.
Embora a convenção tenha sido aberta a ratificações em 16 de novembro de 1937, na cidade de
Genebra, só foi ratificada por um país, a Índia, e, por conseqüência, nunca entrou em vigor.34
Naquele contexto histórico, não se poderia esperar que iniciativas destinadas à
criação de um sistema jurídico-punitivo de natureza internacional pudessem obter sucesso, uma
vez que o mundo já se encontrava às vésperas da Segunda Guerra Mundial.
31
A Associação Internacional de Direito Penal foi fundada em Paris no dia 24 de março de 1924, tendo como áreas de estudo a política criminal e a codificação do direito penal, o direito comparado, o direito internacional penal e os direitos humanos na administração da justiça penal.
32
BAZELAIRE, Jean-Paul; CRETIN, Thierry. A justiça penal internacional: sua evolução, seu futuro: de Nuremberg a Haia. São Paulo: Manole, 2004, p. 16.
33
Ibidem., p. 18. 34
2.1.2. O Tribunal de Nuremberg
As atrocidades e violações aos direitos humanos ocorridos durante a Segunda
Guerra Mundial serviram para reforçar a idéia da necessidade de criação de uma corte
internacional de justiça permanente que estivesse afastada de ingerências políticas.
Para tanto, as potências aliadas, ainda antes do final da guerra, criaram uma
comissão denominada United Nations War Crimes Commission, que tinha por escopo investigar
os possíveis crimes que pudessem ter sido cometidos àquela época.35
O testemunho dos sobreviventes dos campos, os depoimentos dos militares
aliados que efetuaram sua libertação e os documentos apreendidos mostraram que os crimes
perpetrados ultrapassavam, no horror, o que se conhecia até então sobre barbárie.36
Na Declaração de Moscou de 1943, datada de 1º. de novembro de 1943, os três
principais aliados (Reino Unido, Estados Unidos e União Soviética) afirmam que os criminosos
de guerra alemães deveriam ser julgados e punidos nos locais em que os crimes foram cometidos.
Somente os principais criminosos, cujas condutas não foram praticadas em regiões geográficas
específicas, seriam punidos por uma decisão conjunta dos governos dos aliados.37
Informa Joanisval Brito Gonçalves que “desde maio de 1945, o governo
norte-americano, representado pelo juiz Robert Jackson, toma a iniciativa de propor aos governos
35
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O tribunal penal internacional:a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004,p. 48
36
BAZELAIRE, Jean-Paul; CRETIN, Thierry. A justiça penal internacional: sua evolução, seu futuro: de Nuremberg a Haia. São Paulo: Manole, 2004, p. 19.
francês, britânico e soviético a constituição de um tribunal militar internacional para julgar os
grandes criminosos de guerra do III Reich.”38
Encerrada a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos, o Reino Unido, a
União Soviética e a França celebraram, em 08 de agosto de 1945, um documento denominado
Acordo de Londres, instituindo o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg e fixando as
regras a serem seguidas para o processo e julgamento das pessoas, ligadas ao nazismo, que
tivessem praticado crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Registra Celso D. de Albuquerque Mello, que “a palavra ‘Militar’ na
denominação do Tribunal está errada, vez que o único militar era o juiz soviético, bem como o
processo não era tão rápido como o de uma corte marcial.”39
Por sua vez, Carlos Eduardo Adriano Japiassú sustenta que a denominação
“Militar” é fruto “da necessidade dos Estados Unidos contornarem o obstáculo do princípio da
anterioridade da lei previsto no Direito Penal comum interno e inexistente em seu Direito Penal
Militar.”40
O tribunal foi composto por quatro membros, sendo que cada uma das
potências aliadas enviou um representante e um suplente. Os juízes não poderiam ser contestados,
38
GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg 1945-1946: a gênese de uma nova ordem no direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 73.
39
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público.v.1. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 974
40
estando a presidência assegurada, sucessivamente pelas quatro potências. Não havia previsão,
propriamente, de direito a recurso contra as decisões do tribunal.41
Nas seções ocorridas nos dias 30 de setembro e 1º de outubro de 1946, os
acusados foram sentenciados, sendo que dos homens levados a julgamento, doze foram
condenados à forca e três apenados com a prisão perpétua, dois acusados foram condenados ao
cumprimento de vinte anos de reclusão, um acusado foi sentenciado a quinze anos de prisão, um
ao cumprimento de dez anos de prisão e três acusados foram absolvidos.42
No dia 16 de outubro de 1946, os condenados à morte foram enforcados no
ginásio da prisão de Nuremberg. A partir de 18 de julho de 1947, os condenados à prisão são
transferidos para a prisão dos Aliados em Berlim-Spandau, reservada aos criminosos.43
2.1.3. O Tribunal de Tóquio
O Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, também conhecido
como Tribunal de Tóquio44, foi instituído em 19 de janeiro de 1946 e começou a atuar no dia 03
de maio do mesmo ano, encerrando suas atividades em 12 de novembro de 1948. Teve por
finalidade julgar os chamados criminosos de guerra japoneses, sendo composto por onze juízes
41
BAZELAIRE, Jean-Paul; CRETIN, Thierry. A justiça penal internacional: sua evolução, seu futuro: de Nuremberg a Haia. São Paulo: Manole, 2004, p. 23
42
GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg 1945-1946: a gênese de uma nova ordem no direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 192-193.
43
BAZELAIRE, Jean-Paul; CRETIN, Thierry. A justiça penal internacional: sua evolução, seu futuro: de Nuremberg a Haia. São Paulo: Manole, 2004, p. 27
44
originários da Austrália, Canadá, China, Estados Unidos, Filipinas, França, Reino Unido, Países
Baixos, Nova Zelândia, União Soviética e Índia.45
Nos mesmos moldes da Carta de Nuremberg, a Carta de Tóquio tipificava três
condutas criminosas, quais sejam, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a
humanidade. Contudo, a Carta de Tóquio trouxe uma diferença no que diz respeito à guerra de
agressão, passando a prever como crime o planejamento, a preparação, o início e a
implementação de uma guerra, declarada ou não. A modificação permitiu levar a julgamento os
criminosos de guerra japoneses pelo ataque de Pearl Harbor, ocorrido sem declaração de guerra
formal do Japão aos Estados Unidos.46
De acordo com Carlos Eduardo Japiassú, “o julgamento se deu, por razões
simbólicas, no prédio que abrigara o Ministério da Guerra japonês, e durou de maio de 1946 até
novembro de 1946.”47
O Tribunal de Tóquio julgou vinte e cinco acusados, sendo que cada um deles
tinha um advogado japonês e um norte-americano.48
No início eram 28 os criminosos de guerra acusados, mas dois morreram por
causas naturais durante o processo e um terceiro foi hospitalizado com problemas mentais.49
45
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O tribunal penal internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 61.
46
GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg 1945-1946: a gênese de uma nova ordem no direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 203.
47
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O tribunal penal internacional:a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 62.
48
Diversamente do que ocorreu em Nuremberg, nenhum dos acusados foi
absolvido, mas as decisões não foram unânimes. O juiz indiano, entendendo que a acusação
constituía afronta ao princípio da legalidade, absolveu todos os acusados.50
O Tribunal condenou sete acusados à pena de morte, dezesseis acusados à pena
de prisão perpétua e duas outras pessoas a penas de prisão.51
As penas de morte foram executadas no dia 23 de dezembro de 1946, em
Tóquio, oportunidade em que os condenados foram enforcados.
Registre-se que nem Hitler, nem Mussolini e nem o imperador Hiroíto foram
processados. Hitler preferiu o suicídio, Mussolini foi julgado pelo povo italiano e o imperador
Hiroíto, ao assinar o termo de rendição, foi beneficiado com a impunidade absoluta.
São muitas as críticas que pairam sobre os Tribunais de Nuremberg e de
Tóquio, estando entre elas a violação ao princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, no que
diz respeito aos crimes de guerra. Não há dúvida de que foram tribunais em que os vencedores
julgaram os vencidos, afastando, portanto, o princípio da imparcialidade do juiz. Ademais, foram
verdadeiros tribunais de exceção, onde os juízes foram escolhidos sem qualquer critério prévio e
que foram extintos após a realização dos julgamentos.
49
BAZELAIRE, Jean-Paul; CRETIN, Thierry. A justiça penal internacional: sua evolução, seu futuro: de Nuremberg a Haia. São Paulo: Manole, 2004, p. 31.
50
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Op .cit., p. 66. 51
Vale consignar que os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio não examinaram
um só crime que tivesse sido eventualmente praticado por agentes das potências aliadas.
Os tribunais militares de Nuremberg e de Tóquio são de extrema importância
para o Direito Internacional Penal, uma vez que foram os primeiros tribunais criminais
internacionais, bem como por terem reconhecido crimes que geraram responsabilidade penal
individual, afastando o princípio da responsabilidade coletiva do Estado. “No caso de
cumprimento de ordens superiores, o Tribunal de Nurembergue decidiu que o indivíduo só era
responsável se ele tivesse uma escolha moral para não cumprir a ordem superior.”52
2.1.4 As providências adotadas após a Segunda Guerra Mundial
Com o fim da Guerra, a necessidade de criação de um Tribunal Internacional
Permanente volta ao palco das preocupações e passa a ser discutida na Assembléia Geral da
Organização das Nações Unidas em 1948, oportunidade em que a Assembléia solicita à
Comissão de Direito Internacional que investigue a possibilidade de criação de um órgão judicial
52
internacional permanente para julgar aqueles que cometessem crimes de genocídio. A Comissão
de Direito Internacional concluiu manifestando-se pela criação da corte.53
Em 1950, a Comissão de Direito Internacional elabora um relatório inicial
sobre a criação da corte, no qual reafirma que os crimes tipificados na Carta de Nuremberg
deveriam ser considerados crimes internacionais. Os princípios adotados por Nuremberg no que
diz respeito à responsabilidade criminal também estiveram presentes no relatório.54
Os soviéticos solicitaram que fosse formulada uma definição do que seria
considerado agressão, mas não se chegou a um consenso, apesar dos esforços envidados.
No final do ano de 1954, ante a impossibilidade de formulação de uma
definição do que seria considerado agressão, a Assembléia Geral decidiu que não seriam adotadas
outras ações para a elaboração de um código criminal internacional e para o estabelecimento de
uma corte internacional criminal.55
A partir de então, as divergências ideológicas existentes entre a União Soviética
e os Estados Unidos deram início ao período conhecido como guerra fria e literalmente
congelaram qualquer possibilidade de elaboração de uma corte internacional criminal.
Em 1989 ocorreu uma mudança marcante. Durante uma reunião especial da
Assembléia Geral das Nações Unidas para o problema do narcotráfico, Trinidad e Tobago,
orientado por seu Primeiro Ministro A.N.R. Robinson, liderou uma coalisão de Estados
53
MAIA, Marrielle. Tribunal Penal Internacional: aspectos institucionais, jurisdição e princípio da complementaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 50-51
54
FERENCZ, Benjamin B. Ann international criminal code and court: where they stand and where they’re going. Columbia Journal of transnational law v. 30, n. 2. New York: Transnational juris publications, 1992, p. 376 55
caribenhos e solicitou que a questão de uma Corte Penal Internacional permanente voltasse a ser
discutida pela comunidade internacional.56
Tal proposta fez com que as Nações Unidas dessem continuidade aos trabalhos
anteriormente desenvolvidos para a criação de um Tribunal Penal Internacional.
Todavia, os fatos não esperam e conforme noticia Marrielle Maia:
“Nesse meio tempo, mais de dois milhões de pessoas, no Camboja, perderam suas vidas em decorrência das atrocidades cometidas durante os anos de 1975 e 1978; na Iugoslávia, a limpeza étnica causou a morte de aproximadamente 50 milhões de pessoas; em Ruanda, 800 mil (número estimado) tutsis e hutus (moderados) foram massacrados em um genocídio comandado por hutus extremistas.”57
Com o fim da Guerra Fria, os regimes socialistas do Leste Europeu passaram a
conviver com uma série de turbulências. A desintegração da União da República Socialista
Soviética fez com que reaparecessem vários conflitos regionais, étnicos e religiosos, tendo a
violência e o desrespeito aos direitos humanos e ao direito humanitário como característica
permanente.
Conforme destaca Joanisval Brito Gonçalves:
“Volta-se a testemunhar pessoas sendo exterminadas por razões religiosas e, sobretudo, étnicas. Genocídio, limpeza étnica, agressões direcionadas contra populações civis não-combatentes ocorrem em meio a um mundo integrado pelas telecomunicações e pelo comércio internacional. E, pela primeira vez desde II Guerra Mundial, a Europa presencia em seu território um conflito
56
Ibidem, p. 384. 57
armado significativo, no qual muitas das atrocidades elencadas em Nuremberg voltam à baila.”58
2.1.5. O Tribunal Internacional Criminal para a ex-Iugoslávia
59Em razão das graves violações do direito internacional humanitário -
consideradas como efetivas ameaças à paz e segurança internacionais -, cometidas no território da
antiga Iugoslávia, desde 199160, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, por meio da
Resolução 827, de 25 de maio de 1993, criou o Tribunal Internacional Criminal para a Antiga
Iugoslávia.
Trata-se do primeiro tribunal internacional criado, após Nuremberg e Tóquio.
58
GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg 1945-1946: a gênese de uma nova ordem no direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 232-233
59
As informações sobre o ICTY foram obtidas, em 14 de agosto de 2005, junto ao site oficial do Tribunal: <http//www.un.org/icty>. Acesso em: 09 setembro 2005.
60
Jean-Paul Bazelaire e Thierry Cretin, expõem da seguinte maneira a seqüência cronológica de fatos que levaram à criação do Tribunal: “Entre 1991 e 1999, período dos últimos acontecimentos em Kosovo, o território da ex-República Federal da Iugoslávia, como no dia seguinte da morte de Tito, conhece um verdadeiro desmantelamento ao longo de uma série de conflitos regionais sucessivos que resulta em cerca de 800 mil mortes e três milhões de pessoas deslocadas. No dia 18 de novembro de 1991, a cidade de Vukovar (Eslavônia Oriental) cai nas mãos do exército federal sérvio (apoiado por milícias sérvias) após um cerco de três meses. A cidade é destruída e suas ruas são cobertas de cadáveres. Os mortos são estimados entre 3 mil e 5 mil, enquanto os desaparecimentos chegam a 4 mil. Mas o episódio mais significativo continua sendo a execução, nos arredores da cidade, a partir de 19 de novembro, de cerca de 200 pessoas retiradas do hospital municipal. Em Sarajevo, as coisas duram mais tempo, já que os habitantes sofrem um cerco de três anos e meio, iniciado em 2 de maio de 1992. Durante todo esse tempo, faltam produtos elementares e a comida só chega graças a uma ponte aérea humanitária. Além disso, eles estão expostos às granadas sérvias que caem sobre as filas de espera diante das lojas ou nos mercados, e aos tiros dos
O Tribunal, situado em Haia, nos Países Baixos, tem competência para julgar as
graves violações à Convenção de Genebra de 1949, violações às leis e aos costumes de guerra,
genocídio e crimes contra a humanidade praticados no território da antiga Iugoslávia desde 1º de
janeiro de 1991 e tem como objetivos julgar as pessoas alegadamente responsáveis pelas sérias
violações ao direito internacional humanitário, trazer justiça às vítimas, impedir novos crimes e
contribuir para a restauração da paz, promovendo a reconciliação na antiga Iugoslávia.
Somente tem competência para julgar pessoas físicas, estando afastada
expressamente o julgamento de pessoas jurídicas.
As cortes nacionais e o Tribunal Internacional Criminal para a Antiga
Iugoslávia (ICTY) possuem competência concorrente para o julgamento das graves violações ao
direito internacional humanitário cometidas na antiga Iugoslávia, mas o Tribunal Internacional
poderá reivindicar primazia sobre as cortes nacionais e poderá assumir as investigações e
processos nacionais em qualquer estágio que se encontrem, desde que haja interesse da justiça
internacional.
O Tribunal é composto de dezesseis juízes permanentes e no máximo de nove
juízes ad litem. Os juízes permanentes são eleitos pela Assembléia Geral das Nações Unidas para
um mandato de quatro anos, podendo ser reeleitos. Já os juízes ad litem são escolhidos de um
grupo de vinte e sete juízes. Também são eleitos pela Assembléia Geral das Nações Unidas para
um mandato de quatro anos, mas não podem ser reeleitos. O juiz ad litem somente poderá servir
no Tribunal após ser recomendado pelo Presidente do Tribunal e indicado pelo Secretário Geral
das Nações Unidas para participar de um ou de vários julgamentos por um período de até três
Os juízes estão divididos em três órgãos denominados de Câmaras de
Julgamento e uma Câmara de Apelação, sendo que cada Câmara de Julgamento possui três juízes
permanentes e o máximo de seis juízes ad litem. Uma Câmara de Julgamento pode ser dividida
em até três seções de três juízes cada, compostas de um juiz permanente e dois ad litem, ou de
dois juízes permanentes e um ad litem.
A Câmara de Apelação é composta de sete juízes permanentes, sendo cinco
juízes permanentes do Tribunal Internacional para Antiga Iugoslávia e dois juízes escolhidos do
grupo de onze juízes permanentes do Tribunal Internacional Criminal para Ruanda. Cada
apelação é decidida por cinco juízes.
Os juízes representam os principais sistemas jurídicos do mundo e trazem para
o Tribunal uma variedade de posicionamentos jurídicos. Durante os julgamentos os magistrados
ouvem testemunhos e argumentos jurídicos, decidindo pela condenação ou absolvição dos
acusados. A pena mais grave a ser imposta é a prisão perpétua. As sentenças, em casos de
condenação, são cumpridas em um dos países signatários do acordo com as Nações Unidas para o
recebimento de pessoas condenadas pelo ICTY.
Os acusados são mantidos presos durante o processo na unidade de detenção do
Tribunal Internacional da Antiga Iugoslávia, situada em Haia.
Atualmente o Tribunal encontra-se composto dos seguintes magistrados, com
as respectivas nacionalidades:
b) Fausto Pocar (Itália)
c) Patrick Lipton Robinson (Jamaica)
d) Carmel A. Agius (Malta)
e) Liu Daqun (China)
f) Mohamed Shahabuddeen (Guiana)
g) Florence Ndepele Mwachande Mumba (Zâmbia)
h) Mehmet Güney (Turquia)
i) Amin El Mahdi (Egito)
j) Alphonsus Martinus Maria Orie (Holanda)
k) Wolfgang Schomburg (Alemanha)
l) O-gon Kwon (Korea do Sul)
m) Inés Mónica Weinberg de Roca (Argentina)
n) Jean-Claude Antonetti (França)
p) Iain Bonomy (Reino Unido)
São juízes ad litem:
a) Joaquín Martín Canivell (Espanha)
b) Vonimbolana Rasoazanany (Madagascar)
c) Bert Swart (Holanda)
d) Krister Thelin (Suécia)
e) Christine Van Den Wyngaert (Bélgica)
f) Hans Henrik Brydensholt (Dinamarca)
g) Albin Eser (Alemanha)
h) Claude Hanoteau (França)
O gabinete do promotor é independente do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, de qualquer Estado membro, de qualquer organismo internacional ou de qualquer órgão
do Tribunal, tendo a suíça Carla Del Ponte como Promotora Chefe, desde 15 de setembro de
1999. A partir de 30 de agosto de 2004, o norte americano David Tolbert passou a exercer a
O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia recebeu grande destaque na
comunidade internacional, pois entre os acusados da prática de crimes estão Slobodan Milosevic,
então Presidente da República Federal da Iugoslávia, bem como quatro outros ocupantes de
cargos de alto escalão, quais sejam, Nikola Sainovic, Primeiro-Ministro adjunto da República
Federal da Iugoslávia, Dragoljub Ojdanic, Chefe do Estado-Maior das forças armadas da
República Federal da Iugoslávia, bem como Milan Milutinovic, Presidente da República Sérvia e
Vlajko Stojilkovic, Ministro do Interior da República Sérvia.
2.1.6. O Tribunal Internacional Criminal para Ruanda
61Ruanda é um país situado na África oriental cuja população é composta
basicamente por duas etnias, quais sejam, os hutus e os tutsis. As relações entre os membros
dessas duas etnias nunca foram tranqüilas e a disputa pelo poder econômico e político sempre se
mostrou fortíssima. Entre abril e julho de 1994, Ruanda enfrentou um conflito armado, fruto de
graves problemas políticos, que causou um número de mortos que oscila entre quinhentos mil e
um milhão.62
O conflito em Ruanda teve início no dia 06 de abril de 1994, data em que o
avião que transportava os presidentes de Ruanda, Juvenal Habyarimana, e o do Burundi, Cyprien
Ntaryamira, foi abatido em circunstâncias não esclarecidas. No dia seguinte, o primeiro-ministro
61
As informações sobre o ICTR foram obtidas junto ao site oficial do Tribunal: <http://www.ictr.org>. Acesso em: 09 setembro 2005.
62
ruandense e dez militares belgas, que faziam sua segurança, a serviço da Organização das Nações
Unidas, foram mortos.63
Reconhecendo o conteúdo das informações da Comissão dos Direitos Humanos
no que diz respeito às graves violações ao direito humanitário em Ruanda, e atendendo a pedido
do governo daquele país, no dia 08 de novembro de 1994, mediante a Resolução 955, o Conselho
de Segurança das Nações Unidas criou o Tribunal Internacional Criminal para Ruanda (ICTR). O
propósito do Tribunal é contribuir para o processo de reconciliação nacional em Ruanda e para a
manutenção da paz na região.
O Tribunal Internacional Criminal para Ruanda (ICTR) tem competência para o
julgamento das pessoas responsáveis pela prática de genocídio, crimes contra a humanidade e
violações do art. 3º, comum às convenções de Genebra e ao protocolo adicional, cometidas no
território de Ruanda entre 1º de janeiro de 1994 e 31 de dezembro do mesmo ano. Também
poderá julgar cidadãos de Ruanda responsáveis por genocídio e outras violações do direito
internacional cometidas, durante o mesmo período, nos territórios dos países próximos a Ruanda.
63
O Tribunal , de acordo com a Resolução 977, de 22 de fevereiro de 1995, do
Conselho de Segurança das Nações Unidas, está situado em Arusha, capital da República da
Tanzânia.
Nos mesmos moldes do Tribunal para a antiga Iugoslávia, o Tribunal
Internacional Criminal para Ruanda é composto de três câmaras de julgamento e uma câmara de
apelação, cada uma delas integrada por três juízes eleitos pela Assembléia Geral das Nações
Unidas de uma lista enviada pelo Conselho de Segurança. As nomeações levam em conta uma
representação adequada dos principais sistemas jurídicos do mundo e os juízes são eleitos para
um mandato de quatro anos, podendo ser reeleitos.
As câmaras de julgamento e a câmara de apelação são compostas de dezesseis
juízes independentes de diferentes nacionalidades.
Atualmente o Tribunal encontra-se composto dos seguintes magistrados,
indicados por ordem de antigüidade e com as respectivas nacionalidades:
a) Erik Mose (Noruega);
b) Arlette Ramaroson (Madagascar);
c) Theodor Meron (Estados Unidos);
d) William Sekule (Tanzânia);
f) Florence Mumba (Zâmbia);
g) Mehmet Güney (Turquia);
h) Fausto Pocar (Itália);
i) Andrésia Vaz (Senegal);
j) Jai Ram Reddy (Fiji);
k) Segei Alekseevich Egorov (Rússia);
l) Wolfgan Schomburg (Alemanha);
m) Inés Mónica Weingerg de Roca (Argentina);
n) Khalida Rachid Khan (Paquistão);
o) Charles Michael Dennis Byron (St. Kitts & Nevis);
p) Joseph Asoka Hihal De Silva (Sri Lanka).
São juízes ad litem:
a) Solomy Balungi Bossa (Uganda);
c) Lee Gacugia Muthoga (Quênia);
d) Florence Rita Arrey (Camarões);
e) Emile Francis Short (Gana);
f) Karin Hörborg (Suécia);
g) Taghrid Hikmet (Jordânia);
h) Seon Ki Park (Koréia do Sul);
i) Gberdao Gustave Kam (Burkina Faso).
O início das atividades se deu em novembro de 1995, e após a Segunda Guerra
Mundial, pela primeira vez, duas pessoas64 foram condenadas pela prática de genocídio.65
O Promotor para o Tribunal Internacional Criminal para Ruanda é o senhor
Hassan Bubacar Jalow, que foi indicado pelo Conselho de Segurança no dia 15 de setembro de
2003 e o seu gabinete está localizado em Arusha, Tanzânia.
O Tribunal chegou a ser acusado de negligência pelo governo de Ruanda
quando decidiu libertar Jean-Bosco Barayagwisa, sob a alegação de que a prisão provisória era
irregular. A partir de então, Ruanda suspendeu a prática de atos de cooperação e destacou a
64
Jean Kambanda e Jean-Paul Akayesu foram condenados a prisão perpétua, respectivamente, nos dias 04 de setembro e 02 de outubro de 1998. Ambos recorreram das condenações.
65
disparidade entre o tratamento imposto aos acusados de genocídio julgados pelos tribunais
nacionais e o realizado pelo Tribunal Internacional Criminal para Ruanda.
CAPÍTULO III - A CRIAÇÃO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
E SEUS ASPECTOS INSTITUCIONAIS
3.1 Os trabalhos realizados para a criação do Estatuto de Roma
Não há dúvida que tanto os Tribunais Internacionais de Nuremberg e Tóquio
quanto os da Antiga Iugoslávia e de Ruanda, constituem marcos históricos extremamente
importantes no que diz respeito à apuração e sanção das condutas daqueles que violaram os
direitos humanos e as regras do Direito Humanitário, mas por serem tribunais ad hoc – apesar dos
dois últimos terem sido instituídos por resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas-,
possuem natureza e competência questionáveis e confirmam a necessidade de existência de um
sistema permanente de justiça criminal internacional.
Valério Mazzuoli, mencionando as críticas realizadas contra os Tribunais ad
“...que os mesmos violavam a regra basilar do direito penal, segundo a qual o juiz, assim como a lei, deve ser preconstituído ao cometimento do crime e não ex post facto.” 66
Ciente da necessidade e com a finalidade de dar um passo concreto para a
criação de um Tribunal Penal Internacional permanente a Assembléia Geral das Nações Unidas,
por meio das Resoluções 47/33, de 25 de novembro de 199267, e 48/31, de 09 de dezembro de
199368, apresentou requerimento à Comissão de Direito Internacional solicitando a elaboração de
um projeto de estatuto da corte internacional criminal permanente.
No ano de 1994, a Comissão de Direito Internacional elaborou, em sua 46ª
Sessão, um projeto de estatuto para a corte internacional criminal permanente e o enviou à
Assembléia Geral, recomendando que fosse convocada uma conferência de plenipotenciários
para examiná-lo e realizar uma convenção para o estabelecimento da corte.
Todavia, a Assembléia Geral das Nações Unidas, instigada por países que
estavam relutantes em verem a Corte Internacional Criminal permanente se instalar tão
rapidamente, por meio da Resolução 49/53, de 09 de dezembro de 1994, decidiu que era
necessário submeter o texto elaborado pela Comissão de Direito Internacional a uma revisão de
representantes de um comitê ad hoc, aberto a representantes de todos os Estados-membros.69
O comitê reuniu-se em duas oportunidades, de 03 a 13 de abril e de 14 a 25 de
agosto de 1995, mas apesar dos esforços envidados parecia que o projeto do estatuto estava
66
MAZZUOLI, Valério da Oliveira. O Tribunal Penal Internacional e o direito brasileiro. São Paulo: Premier Máxima, 2005, p. 27.
67
A/RES/47/33 68
A/RES/48/31 69
fadado ao fracasso, tantas foram as divergências enfrentadas. Todavia, as reuniões permitiram
que os Estados ficassem familiarizados com os assuntos tratados na criação do Tribunal Penal
Internacional. No dia 06 de setembro de 1995, o comitê elaborou um relatório, acompanhado de
um projeto do estatuto, e o enviou para a 50ª Seção da Assembléia Geral.
Registre-se a importante contribuição realizada pelo Instituto Superiore
Internazionali de Scienze Criminale, ligado à Associação Internacional de Direito Penal, que
apresentou diversas sugestões ao estatuto que se encontrava em fase de criação. “Na reunião
ocorrida de 3 a 8 de dezembro de 1995, foi elaborado o que passou a ser conhecido como Projeto
Siracusa, que foi enviado para o Comitê Ad Hoc para o Estabelecimento do Tribunal Penal
Internacional.”70
Em 11 de dezembro de 1995, a Assembléia Geral das Nações Unidas decidiu
criar um Comitê Preparatório, aberto a todos os Estados-membros das Nações Unidas, membros
de agências especializadas ou da Agência Internacional de Energia Atômica, que tinha por
finalidade discutir as questões mais importantes e os assuntos administrativos relativos ao projeto
do estatuto elaborado pela Comissão de Direito Internacional. O Comitê Preparatório deveria
levar em conta os diferentes pontos de vista que surgissem durante as reuniões, com o escopo de
elaborar um texto consolidado aceitável para a Conferência de Plenipotenciários.71
Foram realizadas duas reuniões pelo Comitê Preparatório no ano de 1996. A
primeira entre 25 de março e 12 de abril, e a segunda entre os dias 12 a 30 de agosto.
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JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O tribunal penal internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 111
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