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6 SISTEMA PENITENCIÁRIO E PRIVATIZAÇÃO NO BRASIL

6.3 Privatização do sistema penitenciário

A desestatização é, por certo, o mais corriqueiro método de privatização no histórico brasileiro. É a transferência do controle acionário de gigantescas estatais o berço da guinada privatística nacional. Dentre diversos exemplos de privatização citemos a Usiminas, a Companhia Vale do Rio Doce, a Telebrás e a Eletropaulo.

A privatização em sentido amplo está relacionada à transferência de uma atividade econômica do Estado a um ente da iniciativa privada, por meio de técnicas específicas. Saber qual é a mais adequada exige um esforço investigativo mínimo. Com esse objetivo, analisaremos cada uma delas, arroladas

230 Maria Sylvia Zanella Di Pietro menciona que o gigantismo estatal foi tão elevado que houve quem falasse em “burocratização do mundo” (In: Parcerias na administração pública. São Paulo: Atlas, 2006, p. 30).

231 Art. 37, caput: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)”

por Maria Sylvia Zanella di Pietro232, para verificar em qual vislumbramos a privatização das prisões.

A modalidade de venda de ações (desestatização ou desnacionalização) será descartada, uma vez que as prisões nunca foram organizadas como empresa, tampouco divididas em ações. De imediato, descartamos esta técnica privatística.

A desregulação é a modalidade privatizante em que o Estado se abstém de exercer a sua prerrogativa constitucional regulatória. Em seu artigo 174, caput, a Constituição de 1988 atribui ao Estado as funções de agente normativo e regulador da atividade econômica. Cabe ao Estado exercer, conforme a legislação, as funções de fiscalizar, incentivar e planejar, sendo esta última determinante para o setor público e indicativo ao setor privado.

Contudo, com a desregulação, o Estado diminui sua intervenção sobre o domínio econômico (controle de abastecimento, tabelamento de preços, criação de agências reguladoras) e prevalece o laissez-faire, garantindo assim que o setor privado obtenha mais liberdade de determinação econômica.

Essa técnica não é apropriada à privatização das unidades prisionais, pela simples constatação de que a desregulação pressupõe a existência de um setor que domine a iniciativa privada, o que não ocorre com as penitenciárias.

A terceira modalidade privatizante é a desmonopolização de atividades econômicas, bastante apropriada em relação à atual ordem econômica constitucional brasileira. A Constituição confere ao valor iniciativa privada o status de fundamento da República Federativa (art. 1º, IV), e à livre concorrência, o de princípio da ordem econômica (art. 170, IV).

A Constituição prevê os casos em que o monopólio estatal é permitido233. Esse modelo, que é estritamente artificial, sob uma timbragem

232 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. São Paulo: Atlas, 2006. 233 Como exemplo, o art. 177 da Constituição: “Constituem monopólio da União: I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de

eminentemente legal, deixou de vigorar como prática ordinária, por ser incompatível com o princípio da livre concorrência. O Estado brasileiro também vem se desfazendo dos monopólios estabelecidos no texto constitucional original.234

O conceito de monopólio está intimamente entrelaçado ao valor econômico da ausência do elemento concorrencial na estrutura de mercado, de sorte que o monopólio só existe quando o seu objeto é a atividade econômica. Sob a análise desses argumentos, não há que se falar em monopólio; muito menos em desmonopolização de unidades prisionais.

Quanto à concessão de serviços públicos, verificaremos se as atividades relacionadas ao sistema penitenciário podem ser classificadas como serviços públicos. A definição ontológica para a locução serviços públicos é entendida como todas as atividades que a vontade estatal assim o determinar, desde que por intermédio de lei, sob as diretrizes constitucionais.

Constitucionalmente, para que o Estado atue na exploração direta de atividade econômica é necessário haver imperativos da segurança nacional, ou seja, um ato de relevante interesse coletivo, conforme definido em lei.

Afora o que não pode ser definido como serviço público, este poderá ser qualquer atividade diferente da econômica que confira uma utilidade ou comodidade material orientada à satisfação da coletividade, cujo usuário final seja identificável.235

Essa materialidade ainda é insuficiente para definir o conceito. Isto porque, há uma compreensão geral de que certas atividades não podem ficar à

derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem; V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas 'b' e 'c' do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal.” 234 De modo exemplificativo, podemos citar a Emenda Constitucional nº 9 de 1995, que flexibilizou o monopólio relacionado ao petróleo e ao gás natural, passando a permitir a sua exploração por empresas privadas, sob o regime de contratação.

235 Desta feita, exclui-se desse conceito, todas as prestações estatais uti universi, isto é, que não se possa identificar com precisão o seu destinatário. Para estas, preferimos a expressão “prestações administrativas” em geral, tal como salientado por Celso Antônio Bandeira de Mello, que são, inclusive, remuneradas por meio de impostos, conforme reiterados entendimentos de nossos tribunais de superposição.

mercê do determinismo econômico. O Estado deve cingi-los de uma peculiar proteção, qual seja, o regime jurídico de direito público.

Em que pese a definição do conceito, o que nos interessa, por ora, é o seu aspecto material, ou seja, o conjunto de atividades prestadas à coletividade.

As atividades penitenciárias, ou parte destas, poderão configurar serviço público, porque proporcionam utilidade ou comodidade passível de utilização direta, mesmo que seja exclusivamente por uma coletividade formada por presos. Neles estão incluídos os serviços de hotelaria, alimentação, assistência hospitalar e educação.

Há, contudo, algumas atividades que não podem ser classificadas como utilidade ou comodidade material oferecida à coletividade intramuros. Estão nessa classe as atividades concernentes ao exercício do jus imperii, mais especificamente aquelas a que Carlos Ari Sundfeld236 chama atividade ordenadora, ou conforme denomina o legislador nacional, o poder de polícia.

As atividades ordenadoras condicionam os direitos individuais, as garantias e os princípios constitucionais em vez de comodidade material. Estarão nessa classe, aqueles setores da prisão ligados à segurança, à disciplina e à vigilância dos internos237.

À primeira vista, considerando o perfeito enquadramento das atividades prisionais administrativas não ordenadoras na classe de serviços públicos, poder-se-ia concluir que a técnica privatística adequada às penitenciárias, não seria outra senão a via das concessões comuns, 238 previstas na Lei nº 8.987/95239.

Contudo, algumas peculiaridades factuais comprometem o uso dessa modalidade de trespasse de atividades prestacionais do Estado. Dentre elas,

236 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003. 237 Destacamos a vigilância dos internos, pois algumas unidades prisionais terceirizam essa atividade. Entendemos que isso seria incompatível com o nosso ordenamento jurídico.

238 A denominação „concessão comum‟ é utilizada pela Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, que institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada, no âmbito da administração pública.

239 Trata-se de lei que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, previstos no art. 175 da Constituição.

citamos o fato da remuneração pela cobrança do uso do serviço exigível ao usuário ser incompatível com a situação prisional.

A Lei 8.987/95 prevê no artigo 11 a possibilidade de “receitas alternativas” a serem previstas no edital de licitação como “complementares, acessórias ou de projetos associados, com ou sem exclusividade, com vistas a favorecer a modicidade das tarifas”. Logo, fica evidente o aspecto complementar dessas receitas em que o ente privado seja remunerado exclusivamente por meio de tarifação.

A Lei nº 11.079/2004 introduziu no direito pátrio, sob forte influência do direito estrangeiro240, a Parceria Público-Privada (PPP). As modalidades privatizantes já mencionadas colocam o ente privado nesta posição sintática de parceria, de convocar o ente privado a participar das atividades estatais delegáveis.

A lei aponta duas formas especiais de concessão relativas à PPP: 1) de serviço público, precedida ou não de obra pública, remunerado mediante tarifa e contraprestação estatal (concessão patrocinada); 2) de serviço prestado direta ou indiretamente ao Estado, com ou sem obra pública, mediante exclusiva remuneração estatal (concessão administrativa).

Descartamos desde logo a primeira modalidade de PPP, pelos mesmos motivos que envolvem a concessão comum ou ordinária.

A concessão administrativa, por seu turno, contém os elementos perfeitamente compatíveis com os imperativos necessários à privatização dos serviços penitenciários delegáveis, mas com algumas dificuldades de índole negocial.

Assim, em que pese a remuneração feita com exclusiva participação do parceiro público – o que se mostra viável às circunstâncias que o evento privatizante em tela requer – a Lei nº 11.079/04, em seu art. 2º, parágrafo 4º, inciso I, estabelece o valor mínimo do objeto da contratação para estabelecer a parceria público-privada (R$ 20 milhões), relegando a PPP aos projetos de

240 DI PIETRO, M. S. Z. Parcerias na administração pública. São Paulo: Atlas, 2006, p. 158. A autora defende que o instituto teve origem no direito inglês, o que nos remete ao sistema do common law.

proporções incomuns, ao menos quando referente à prestação de serviço público. Assim, mesmo que a lei de regência estabeleça garantias prestadas pelo parceiro público ao privado, o piso desses empreendimentos praticamente desqualifica aqueles serviços materiais passíveis de concessão, exceto quando o contrato prevê a própria construção da penitenciária.

Portanto, temos que a concessão administrativa é a técnica mais adequada à privatização das penitenciárias, desde que inclua na licitação e na contratação do parceiro privado, a realização de obra pública (construção do estabelecimento prisional). Sem isso, dificilmente seria atingido o mínimo definido em lei para firmar tais contratos públicos.

Por fim, examinaremos a última técnica de privatização conforme a metodologia que adotamos nesta pesquisa: o contracting out, ou contratações de terceiros (toda forma de arranjo assumido pela Administração Pública para obter colaboração do setor privado).241 Maria Zanella Di Pietro considera nessa modalidade os contratos de terceirização de prestação de serviço.

Conforme a autora, terceirizar é contratar com empresa interposta, para o desempenho de atividade-meio (acessória, instrumental ou complementar), mediante empreitada de obra e serviços, bem como de fornecimento de bens, incidindo na lei de licitações (Lei nº 8.666/93) na modalidade de execução indireta (art. 6º, inc. VIII, e art. 10)242. Ela se vale da dicotomia entre atividade- meio e atividade-fim, recaindo neste último qualificativo as atividades relativas ao exercício das atribuições legais conferidas a determinado órgão ou entidade da administração pública.243

A contratação é realizada com empresa interposta, com quadro próprio de funcionários, sem vínculo empregatício com a entidade terceirizante. Daí a lei de licitações se referir à empreitada ou à tarefa como regimes de execução indireta. Não há que se falar em terceirização para fornecer mão de obra,

241 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. São Paulo: Atlas, 2006, p. 24. 242 Id., Ibid., p.319.

243 Dora Maria de Oliveira Ramos, em sentido oposto, considera que a terceirização na Administração Pública prescinde da noção de atividade-meio e atividade-fim, pois seria possível a delegação de parcela da atividade principal da terceirizante. (RAMOS, Dora Maria de Oliveira. Terceirização na administração

pois essa prática configuraria flagrante ofensa à regra constitucional de concurso para contratar servidores públicos em geral.

Adicionamos aos delineamentos desta última técnica privatizante que – diversamente do regime de concessão de serviços públicos – o Estado, quando firma contrato de terceirização, realiza o trespasse único da execução de serviços públicos, mas permanece com as atividades jurisdicionais ou que envolvam o poder de polícia.

Do exposto, concluímos que a privatização em sentido amplo, isto é, o conjunto de variados arranjos feitos pelo Estado com o intuito de diminuir suas atribuições serviçais e econômicas, por meio de transferência dessas atividades a um ente privado, será efetivada no âmbito do sistema penitenciário brasileiro pela Parceria Público-Privada (concessão administrativa).

Uma das condições para realizar as PPPs é que o contrato tenha valor mínimo de 20 milhões de reais, conforme previsto pelo art. 2° § 4° da Lei 11.079/2004, considerados, assim, os projetos de grande vulto.

A privatização do sistema penitenciário é discutida e adotada por vários países. Ela é fonte de inspiração ao modelo brasileiro, e por isso, consideramos necessário sua abordagem.