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Problemas decorrentes da enumeração do art 842 do CPC/1939

5 A REGULAMENTAÇÃO NO CPC/1939

5.2 A RECORRIBILIDADE DOS DESPACHOS INTERLOCUTÓRIOS

5.2.3 O agravo de instrumento

5.2.3.2 Problemas decorrentes da enumeração do art 842 do CPC/1939

Ao longo do tópico anterior, percebeu-se que o CPC/1939 optou por uma enumeração casuística das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento e ficaram demonstradas divergências doutrinárias quanto à possibilidade de ampliação de algumas dessas hipóteses para alcançar situações similares.

Sobre o tema, Jorge Americano sugeria que o CPC/1939, quanto ao agravo de instrumento, tinha tornado expressos os casos de danos irreparáveis nos quais entendia cabível o recurso, fugindo à histórica opção de prevê-lo, de forma genérica, para os casos de dano

irreparável. Além disso, o recurso exerceria função reiterativa quando atuava como

apelação253.

Além disso, notou-se que o CPC/1939 preferiu fixar hipóteses de cabimento de acordo com o conteúdo da questão decidida, isto é, tomou como parâmetro o ponto controvertido sobre o qual o magistrado se manifestava. Em alguns casos, foi além e também fixou como requisito o sentido mesmo deste ato, ou seja, o sentido no qual o magistrado decidia, como nos incisos I, VI, XII, XVI e XVII.

Esta postura difere substancialmente da opção feita no decorrer da vigência do CPC/1973, que, como se verá, em dado momento histórico, pautou a sua hipótese mais genérica de cabimento de agravo de instrumento no resultado possível da decisão interlocutória – susceptibilidade de causar à parte lesão grave e de difícil reparação – (similarmente às Ordenações Filipinas, ao Reg. 737/1850 (art. 669, §15) e ao Código do Processo do Estado da Bahia, por exemplo), pouco importando o conteúdo da questão decidida ou o sentido da decisão.

Nesse contexto enumerativo e específico do CPC/1939, alguns autores, como De

252 Assim, também mencionando precedente da “antiga Côrte de Apelação do Distrito Federal”: MARTINS, Pedro Batista. Recursos e processos da competência originária dos tribunais. Alfredo Buzaid (atualizador). Rio de Janeiro: Revista Forense, 1957, p. 284.

253 “No estado atual, segundo o Código, agravo é um recurso especial, iterativo nos casos de decisão interlocutória contendo dano irreparável definido expressamente, reiterativo nos casos em que vale como apelação e, de mera ressalva, quando para não passar em julgado o despacho do gravame” (AMERICANO, Jorge. Código de Processo Civil do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Edição Saraiva, 1960, 4º vol., p. 51). Esta última função era reservada ao agravo no auto do processo, como se verá.

Plácido e Silva254 e José Claudino Oliveira e Cruz255, defenderam expressamente a impossibilidade de interpretação que estendesse as hipóteses do art. 842 a situações não previstas taxativamente.

Ainda que se admitisse uma flexibilização das hipóteses previstas no art. 842 para abarcar situações similares às ali elencadas, fatalmente ficariam de fora inúmeras decisões interlocutórias cujo teor não poderia ser enquadrado em nenhum dos incisos analisados.

José Frederico Marques abordou de forma clara os problemas decorrentes da opção legislativa, afirmando que o CPC/1939 tinha tornado irrecorríveis múltiplas decisões que poderiam afetar, relevante e gravemente, a decisão final e o direito das partes, além de não permitir recurso contra decisões temporárias que causariam gravames significativos, como as providências liminares tomadas em interditos proibitórios256.

Para o autor, que demonstrava aceitar a irrecorribilidade caso o juízo de primeiro grau fosse formado por um órgão colegiado, a irrecorribilidade das interlocutórias não condizia com o nível geral da magistratura, supostamente incompatível com o arbítrio que lhe era conferido257.

Como o CPC/1939 não teria considerado esses fatores, teria sido necessária a utilização de meios para “ventilar a sufocante atmosfera oriunda do princípio da irrecorribilidade das interlocutórias”. Tais vias seriam a correição parcial, os procedimentos disciplinares de reclamação e o mandado de segurança258.

A correição parcial, que, no antigo Distrito Federal, era chamada de reclamação, era um sucedâneo recursal, previsto em legislações estaduais e tratado como suposta “providência disciplinar”, cuja utilização era voltada à correção de erros, abusos ou inversões tumultuárias da ordem legal do processo, quando cometidos em decisões irrecorríveis259.

Por mais que a sua utilidade em promover a reanálise de despachos interlocutórios irrecorríveis e a flexibilização do rigor do CPC/1939 fosse reconhecida, o instituto era tido pela doutrina como inconstitucional, uma vez que previsto em legislações estaduais, notadamente nas Leis de Organização Judiciária. A correição parcial também era criticada por

254 SILVA, De Plácido e. Comentários ao Código de Processo Civil. Curitiba: Editora Guaíra, 1940, p. 561. 255

CRUZ, João Claudino de Oliveira e. Do recurso de agravo. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1950, p. 162. 256 MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1960, vol. IV, p. 378/379.

257

MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1960, vol. IV, p. 379/380.

258 MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1960, vol. IV, p. 380.

259

MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1960, vol. IV, p. 387/389; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas do direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1971, 3v., p. 214/215.

resultar numa situação curiosa e inconcebível: por meio de uma “providência disciplinar”, de cunho supostamente administrativo, alterava-se uma decisão judicial tomada em um processo. Por isso, reiterava-se a função recursal exercida pelo sucedâneo de recurso260.

Por outro lado, encontrava-se, também, quem defendesse, como Barachisio Lisbôa, a constitucionalidade da reclamação, que, na sua visão, teria caráter disciplinar, e, por isso, não seria recurso e não haveria invasão da competência da União para legislar sobre processo, sendo lícita a sua previsão em legislações estaduais. Para o citado autor, tratando da legislação baiana da época, a reclamação corresponderia à concretização do direito constitucional de representação contra abusos dos juízes no cumprimento da legislação processual, nas hipóteses em que não houvesse recurso específico261. Barachisio Lisbôa concluía ressaltando que a ausência de previsão de agravo de instrumento nos casos de dano irreparável era um dos fatores que tornavam imprescindível a reclamação262.

Parece, todavia, mais coerente a visão de José Frederico Marques e Moacyr Amaral Santos, não sendo lógico aceitar que uma sanção administrativa culminasse em reanálise de decisão judicial. No entanto, os próprios autores ratificavam o acolhimento da correição parcial pela jurisprudência brasileira da época263.

Por fim, o art. 5º, II, da Lei n. 1.533/1951, sobre o mandado de segurança, indicava que ele poderia ser impetrado contra despacho ou decisão judicial, desde que não houvesse recurso cabível contra o ato nem possibilidade de modificação por via de correição. Sobre o termo “correição”, José Frederico Marques entendia que essa “ligeira referência” não fazia com que este instituo deixasse de ser um sucedâneo recursal que atentava contra as “fontes normativas do processo civil”264

. Já J. M. Othon Sidou tratava a expressão “via de correição” como uma “referência mal dissimulada à praxe jurisprudencial da ‘reclamação’” e afirmava que a exigência de que o ato não pudesse ser modificado por correição tornava de difícil ocorrência a hipótese de cabimento de mandado de segurança contra atos judiciais, mas não o suficiente para afastar a sua admissibilidade265-266. De qualquer forma, era expressamente

260 Sobre a inconstitucionalidade da correição parcial e a sua aplicação, conferir: MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1960, vol. IV, p. 384/389; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas do direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1971, 3v., p. 214/215 261 LISBÔA, Barachisio. Da reclamação. Bahia: Tipografia Naval, 1952, p. 31.

262

LISBÔA, Barachisio. Da reclamação. Bahia: Tipografia Naval, 1952, p. 53. 263

MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1960, vol. IV, p. 384; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas do direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1971, 3v., p. 212/213

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MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1960, vol. IV, p. 384.

permitida a impetração de mandado de segurança contra despacho ou decisão irrecorrível, desde que preenchidos os demais requisitos.

Essa consideração acerca da utilização dos sucedâneos recursais é importante para se compreender que a opção legislativa por tornar, como regra, irrecorríveis os despachos interlocutórios para, segundo a sua exposição de motivos, evitar tumulto processual, o seu prolongamento ou confusão no seu curso, não foi verdadeiramente eficaz.

Justifica-se: visando evitar os prolongamentos, os “tumultos” e as confusões decorrentes de recursos contra os despachos interlocutórios, o CPC/1939, tornando-os, como regra, irrecorríveis, abriu caminho para a utilização dos sucedâneos recursais, que eram ainda mais prejudiciais a um processo que pretendia ser livre de tumultos e confusões.

As exposições acerca da correição parcial e da reclamação, sobretudo quanto à discussão sobre a sua falta de lógica e a sua inconstitucionalidade, bem como o fato de o mandado de segurança dar ensejo a um novo processo, são aspectos que indicam não terem sido, de fato, eficazes as medidas tomadas pelo CPC/1939 para evitar “tumultos” e “confusões”.

As necessidades práticas exigiram, portanto, a utilização de vias (indesejáveis) para que as partes se esquivassem da rigidez estabelecida pelo CPC/1939. Tais considerações são importantes para, mais adiante, se analisar a opção feita pelo CPC/2015.

Por fim, um último aspecto sobre a opção legislativa fixada no art. 842 do CPC/1939. Apesar de ser inegável a fixação de inúmeros despachos interlocutórios como recorríveis por agravo de instrumento, o art. 842 não foi expresso quanto à destinação específica do recurso à impugnação desta espécie de ato do juiz, como fizeram o art. 522 de CPC/1973, implicitamente desde a promulgação e inquestionavelmente depois da Lei 9.139/1995, e o art. 1.015 do CPC/2015. Com isso se quer dizer que o CPC/1939 não tornou o agravo de instrumento um recurso voltado à impugnação dos despachos interlocutórios, o que fez com que não se questionasse, primeiramente, a natureza da decisão para depois se concluir sobre o recurso cabível.

Assim, na falta da análise do binômio (natureza jurídica da decisão + questão decidida), o cabimento era, muitas vezes, defendido apenas com base na adequação a um dos incisos do art. 842, o que fazia com que algumas sentenças definitivas fossem agraváveis e causava

266

Sobre o termo “correição”, deve-se destacar que as obras de José Frederico Marques e J. M. Othon Sidou fazem menção expressa ao termo, bem como a versão da Lei n. 1.533/1951 disponibilizada no site da Câmara dos Deputados. No entanto, a versão da lei disponibilizada no site do Planalto fala em “correção”. A versão do site da Câmara dos Deputados está disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-1533- 31-dezembro-1951-362109-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 28/09/2015. A versão do site do Planalto, em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L1533impressao.htm. Acesso em: 29/09/2015.

algumas das discordâncias doutrinárias vistas acima.

Este panorama muda substancialmente no decorrer da história processual brasileira, que assume como regra geral a vinculação de um tipo de decisão a cada recurso, ganhando destaque, para fins de cabimento recursal, a análise da natureza jurídica da decisão impugnada.