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4 EVENTOS DE LETRAMENTO NA PRODUÇÃO DE TEXTOS

4.5 Produzindo uma paródia coletivamente

A produção coletiva da paródia aconteceu em 24 de março de 2016, em nossa oitava observação, como expõe o mapa de eventos construído para síntese dos eventos. Vale salientar que neste dia nossa observação aconteceu entre 07h30 e 10h, uma vez que a professora participante da pesquisa precisou ausentar-se da sala para ir a uma consulta médica e as crianças permaneceram na escola sob os cuidados de uma estagiária que, a pedido da coordenadora escolar, exibiu um vídeo infantil para a turma.

Portanto, os eventos abaixo mapeados ocorreram neste contexto cronológico. E, ao analisá-los, percebemos que todos eventos observados nessa manhã, se relacionam com o evento de produção de textos promovido pela professora. Por isso, decidimos expor integralmente o registro etnográfico que trata dos cinco eventos elencados no mapa abaixo seguidos de nossas análises.

Quadro 10: Mapa de eventos da aula de 24/03/2016

Eventos Foco das ações dos participantes

Registro escrito de texto oral

Crianças ditando e professora registrando no quadro uma canção infantil relativa a páscoa.

Produção escrita de texto .

Crianças e professora produzindo coletivamente uma paródia da canção ditada anteriormente.

Professora dialogando com as crianças sobre: elementos do gênero paródia, autoria e domínio público.

Escrita do cabeçalho

Crianças escrevendo o cabeçalho

Cópia Crianças copiando no caderno a paródia produzida. Fonte: Criação da pesquisadora

Após cumprimentar as crianças, como de costume, e conversar um pouco sobre o feriado prolongado da Semana Santa, a professora perguntou as crianças:

“Quem lembra daquela canção que as tias cantaram na festinha da Páscoa? Gente, foi tão engraçado, não foi? A gente dançando e pagando mico para vocês? Olhem tem uma filmagem que mostra a gente dançando. Uma para o lado, outra para o outro. Um horror!!!!!” Logo após, a professora cantarolou o verso da canção apresentada por ela e pelas demais professoras: “De olhos vermelhos de pelo branquinho...”. E continuou: “Quero escrever essa canção no quadro. Vocês podem me ajudar?”.

As crianças ditaram alguns versos da canção, um a um para professora que, simultaneamente os escreveu no quadro. Em alguns momentos ela pediu para que falassem um pouco mais devagar para que conseguisse fazer o registro. Enquanto escrevia a canção no quadro, ela deixava um espaço grande entre um verso e outro. A princípio não entendíamos qual seria seu objetivo em registrar o texto daquela maneira, porém logo após findar o registro falou para as crianças: “Essa música está muito “manjada”, vamos tentar fazer outra música, usando ela como exemplo?”

Não foram todos os versos da canção que foram ditados pelas crianças. Em dado momento, elas pararam de ditar, porém a professora não solicitou que continuassem. Dessa forma, o registro ao quadro ficou assim exposto:

De olhos vermelhos De pelo branquinho Com passos ligeiros Eu sou coelhinho Sou muito assustado Porém sou guloso Por uma cenoura Já fico manhoso Eu pulo pra frente Eu pulo pra traz Dou mil cambalhotas Sou forte demais

(Versos da canção de Páscoa ditados para a professora pelas crianças e registrada no quadro em cor azul)20.

Ao analisarmos a ação da professora no evento descrito acima, percebemos que o contexto da produção do texto foi por ela organizado. Como já havia planejado a produção coletiva do gênero paródia a partir de uma canção bastante conhecida das crianças, ela achou necessário relembrar esse texto, a partir do “ditado das crianças”, fazendo o registro no quadro (deixando um espaço entre os versos escritos, que foi utilizado para a escrita da nova canção). Só após esse registro é que efetivamente as crianças são convidadas a produzir o texto.

Ao questionarmos a professora em entrevista sobre o uso dessa estratégia (deixar os espaços entre os versos) ela nos informou que organizou o quadro daquela forma para que as crianças:

Tivessem uma base de uma coisa já construída e naquilo eu ia botar o que eu queria, quer dizer, já tinha rima, aí eu trabalhei rima, aí eu trabalhei a sequência lógica para não deixar aquela “parodia” toda atravessada em que você ler sem entender. Então trabalhou rima, trabalhou verso, aí "no primeiro verso, qual é a palavra que tem? O que é que rima com isso aqui?", aí já volto novamente a consciência fonológica para aqueles que estavam mais atrasados. (Entrevista com a professora, 24 de outubro de 2016).

20 Vale rememorar que no registro no quadro, a professora deixou um espaço maior entre os versos. Espaço destinado para a produção coletiva dos versos.

Ao analisarmos a fala da professora, percebemos que seu objetivo ao organizar o quadro daquela forma antes de iniciar a produção propriamente dita, era usar o texto original como modelo onde as crianças pudessem perceber elementos que constituíam o texto, como também a forma como se o mesmo se organizava.

A construção do texto foi realizada coletivamente, agora passamos a entender o motivo do espaço entre os versos expostos no registro do quadro. As crianças foram estimuladas a produzir oralmente os novos versos e a professora os registrou abaixo dos originais, agora em vermelho. A canção modelo, outrora ditada pelas crianças, estava registrada em azul.

As crianças ditaram os versos, deram ideias, perceberam que as palavras finais precisavam rimar. Em alguns momentos expuseram mais de uma sugestão para composição de um único verso da nova canção. A professora permitiu e orientou que as próprias crianças decidissem coletivamente quais seriam usados. Fazendo questionamentos: “Pode ser esse verso? Vocês concordam? Já posso botar aqui? Resolvam aí, direitinho”.

No momento da construção coletiva, as crianças pareciam preocupadas com a organização do registro, afirmando: “Não, não pode ser assim, por que não rima, não combina!”, “Eita, já tem essa palavra não bota essa não, para não repetir”, “Oxe, nada a ver isso que tu falou, não tem nada a ver com a música!”.

A medida que os versos iam sendo produzidos e registrados no quadro a professora “lia” e “cantava” os anteriores. Ao concluírem a produção, as crianças demonstraram bastante alegria, bateram palmas e a professora solicitou que “cantassem” a nova canção, agora, registrada no quadro em cor vermelha.

Figura 11: Quadro com os registros da canção original e versos da paródia em vermelho

Fonte: Fotografada pela pesquisadora, com a permissão da instituição.

Em análise, percebemos que a estratégia anterior da professora ao utilizar o texto original no quadro e produzir coletivamente com as crianças verso a verso foi bem-sucedida, uma vez que as mesmas buscaram atender aos critérios da rima, demonstram preocupação com a repetição das palavras e com o sentido do texto. Nossas constatações ancoram-se nas falas das crianças: “Não, não pode ser assim, por que não rima, não combina!”, “Eita, já tem essa palavra, não bota essa não, para não repetir”, “Oxe, nada a ver isso que tu falou, não tem nada a ver com a música!”.

No que diz respeito à escolha dos versos, quando surgem mais de um, percebemos que quando a professora delega às crianças a decisão do que vai ser escrito para compor o texto, ela as oportunizou a participação de uma forma interativa com o grupo de modo a construir uma interlocução. Esse processo se efetivou quando a professora se propôs a criar um espaço de mútua colaboração e comunicação, materializado em sua fala quando perguntou as crianças: “Pode ser esse verso? Vocês concordam? Já posso botar aqui? Resolva aí, direitinho.”.

A medida que os versos iam sendo produzidos coletivamente pelo grupo e registrados no quadro, a professora “lia” e “cantava” os anteriores. Percebemos que ela fez uso da estratégia para ajudar as crianças a se situarem, a se localizarem inclusive na estrutura do texto original. Nessa ação pedagógica nos parece que a

professora propôs um momento simultâneo de revisão do texto, que pode ser compreendido como “[...] uma tentativa de compreender o movimento empreendido pelo aprendiz na construção de sentidos, na escrita e de apreender tanto os recursos de que se serve para produzir um texto escrito e se apropriar de suas peculiaridades” (ROCHA, 2008, p. 69).

Quando acabaram de cantar, a professora disse:

“Agora, vou falar uma coisa que talvez vocês não saibam, presta atenção. Essa música do coelhinho já existia? Essa, que eu escrevi de azul.?

C: Sim!!! (Em coro)

P: Essa já existia. Aí nós fizemos uma outra, né? Aproveitamos a música e colocamos uma letra diferente. Vocês sabem como é que chama essa forma de escrever? C: Não! (Em coro)

P: Paródia. Esse nome aqui, Oh!!!! Aí qualquer pessoa pode fazer uma paródia. Fazer música é difícil? É! Mas a gente pode pegar uma música que já existe e botar a letra que a gente quer, entenderam ou não?

E então como é o nome da música que a gente fez? C: Parodia... (Em coro)

P: É difícil fazer uma paródia? C: Não

P: Mais ou menos! Vocês viram que as palavras têm que combinar...como é que chama isso? Quando as palavras combinam?

C: Rima

P: Rima, muito bem!”

Também perguntou a turma qual seria o título da nova canção, o título “Coelhinha Manhosa” foi escolhido. A professora fez registro no quadro com o título escolhido e falou:

“Agora eu pergunto para vocês, quem é o autor da canção que está de azul? C: A gente não sabe! (Em coro)

P: Vejam só, quando a gente não sabe o autor da música e ela é assim conhecida, a gente diz que é de domínio público, pois não se sabe ao certo quem escreveu! Já o de vermelho somos nós os autores. Olha como estamos importantes. Nós somos os

autores da paródia e eu vou escrever aqui logo depois do título 3º ano A, para mostrar que somos os autores da paródia.”.

Ao analisar a fala da professora, percebemos que ela tentou ajudar as crianças a construírem um conceito para o gênero trabalhado, explicando que aquela “[...] forma de escrever” tinha um nome, “[...] paródia”. A professora deu indícios das características do gênero, em duas de suas afirmações: “Aproveitamos a música e colocamos uma letra diferente” e “A gente pode pegar uma música que já existe e botar a letra que a gente quer, entenderam ou não?”.

Um ponto que chamou nossa atenção, ainda durante o evento, remete-se a forma como a professora tratou a rima, enfatizando-a como elemento constitutivo ao gênero trabalhado. Como explícito no diálogo abaixo:

“Vocês viram que as palavras têm que combinar...como é que chama isso? Quando as palavras combinam?

C: Rima

P: Rima, muito bem!”.

Na fala da professora, percebemos que ela tratou a rima com tom generalizador, como se esse elemento fosse constitutivo e característico do gênero trabalhado, a paródia.

A produção foi finalizada com a escolha do título para a paródia que também foi decidido de forma coletiva, explicação sobre o uso da expressão domínio público que era característica da canção infantil utilizada como modelo para produção, e o reconhecimento da turma como autores do texto. Esse reconhecimento é marcado no registro produzido no quadro. Como também é reafirmado pela professora quando mencionou: “Olha como estamos importantes. Nós somos os autores da paródia e eu vou escrever aqui logo depois do título, 3º ano A, para mostrar que somos os autores da paródia”. Dessa forma, a professora informa as crianças que pelo fato de produzirem coletivamente o texto, tornam-se autores, pois como ela mesma afirmou em entrevista: “[...] todos eles já davam um pitaco.”, “Ah, eles se sentem orgulhosos, né, eles dizem ‘fui eu que fiz, eu também ajudei’". Portanto podemos perceber que nos eventos propostos, cujo foco foi a produção coletiva:

O professor tem o papel de mediador do trabalho de escrita, além de desempenhar também o papel de coautor, pois colabora para o produto textual. Ele terá a incumbência de provocar, instigar, coordenar, sugerir, de tal modo que o aluno, neste espaço de interação e diálogo que se instaura no momento de produção coletiva, sinta-se motivado a expor suas ideias na produção textual. (VARELLA, 2013, p. 20).

Concluída a discussão sobre alguns elementos do gênero, a professora solicitou o registro do texto no caderno e exigiu: “Cabeçalho completo e letra bonita, caprichem!”. As crianças reclamaram bastante entre si, quando o cabeçalho foi solicitado. Uma delas, questionou o porquê desse registro, a professora respondeu um pouco aborrecida: “Tem que fazer, para o caderno ficar organizado. Como eu vou saber o dia que essa tarefa foi feita?”. A criança resmungou, porém, cumpriu a exigência.

Nesse evento, o que nos chama atenção é um dos pontos já abordados em nossa pesquisa: a escrita do cabeçalho como prática de letramento marcante da turma investigada com o fim de organização dos cadernos. Após a escrita do texto produzido coletivamente que seria registrado pelas crianças no caderno, o cabeçalho é exigido como marca de organização deste artefato central nos usos da escrita da turma investigada. Ao nos deparamos com o que falou a professora em resposta a uma das crianças: “Tem que fazer, para o caderno ficar organizado. Como eu vou saber o dia que essa tarefa foi feita?”. Percebemos o quanto determinados artifícios da cultura escolar não convencem a criança, que cumpre a exigência de maneira desconfortável. Ficando evidente, então, como o processo de escolarização (SOARES, 2001) interfere na forma como a escrita se materializa nessa esfera social que é a escola.

Ao analisarmos esse registro, nos questionamos acerca de alguns pontos denunciados por autores clássicos (COSTA, 1991; GERALDI, 1997; LEAL, 2004, LEAL, 2008) sobre o ensino de produção de textos na escola. O texto produzido pelas crianças segue registrado no caderno. Esse é o único espaço material que o texto produzido ocupa, o simples registro das ações de escrever. Esse trato da produção textual, transforma “[...] o texto escrito em um objeto fechado em si mesmo” (LEAL, 2008, p. 54), o registro realizado no caderno é o momento final da operacionalização da produção textual.

Podemos concluir a partir da interpretação dos eventos observados, que a professora tentou fazer com que as crianças compreendessem o conceito de paródia,

porém, enfatizando para que percebessem a rima como um dos elementos que caracterizava o gênero, estabelecendo uma generalização inadequada.

Ao questioná-la em entrevista sobre o porquê da escolha da paródia para compor seu trabalho, ela nos respondeu: “Porque a paródia também volta à questão dos gêneros textuais, também é um gênero que eu ia trabalhar”. Dessa forma, percebemos que para a professora se faz necessário o trabalho com os gêneros. Porém, em uma análise geral da aula ministrada, podemos perceber que a canção escolhida para ser transformada em paródia é composta por um conteúdo que não amplia as possibilidades de argumentação das crianças, para que se colocassem de maneira coesa na produção de um texto que atenda às finalidades de uma paródia. Por isso, percebemos que a estratégia de se basear pela rima que se tornou elemento estrutural do texto, foi proposta pela professora e aceita pelas crianças como “resposta, devolutiva” às condições de produção propostas.

Para melhor compreensão dos leitores, trazemos o texto original, verso a verso, seguido pelo registro da produção coletiva dos estudantes.

Quadro 11: Versos originais da canção de páscoa seguidos dos versos produzidos pelas crianças.21

De olhos vermelhos De olhos bem grandes De pelo branquinho De pelo rosinha Com passos ligeiros De passos lentinhos Eu sou coelhinho Eu sou coelhinha Sou muito assustado Sou muito acanhada Porém sou guloso Porém sou manhosa

21 O texto que segue em itálico corresponde aos versos produzidos pelas crianças, a última estrofe segue toda em itálico, porque nos pareceu que a professora por perceber a aproximação das crianças com a canção, clássico do cancioneiro popular infantil em Pernambuco, não achou necessário no momento anterior registrar ao quadro a canção por completa, porém percebemos que a produção coletiva considerou a última estrofe da canção.

Por uma cenoura Por um chocolate Já fico manhoso Eu fico dengosa Eu pulo pra frente Eu pulo pro lado Eu pulo pra traz Eu pulo pro outro Dou mil cambalhotas Eu pulo pra cima Sou forte demais Eu pulo pra trás Comi um chocolate Com papel e tudo Eu fui pro hospital E tomei injeção E fiquei melhorzinha Voltei para toca

E guardei meus ovinhos