• Nenhum resultado encontrado

2.3 UMA BREVE INTRODUÇÃO À IDEIA DE REDES

2.3.1 Redes de Atenção à Saúde (RASs)

Há um consenso crescente de que a organização dos sistemas de saúde sob a forma de redes integradas é a melhor estratégia para garantir atenção integral, efetiva e eficaz à população, com chance para a construção de vínculos de cooperação e solidariedade entre as equipes e os níveis de gestão do sistema de saúde. Mendes (2011) expõe que, no Brasil, a organização do SUS, nos moldes da RAS, tem sido apontada como estratégia para consolidação de seus princípios – universalidade, integralidade e equidade.

Em outros países, a experiências da RAS tem mostrado resultados efetivos. Oliveira (2016) apresenta que, nos Estados Unidos, a discussão sobre esse formato de atendimento foi retomada ainda na década de 1990 para superar o problema da fragmentação da saúde. A proposta foi a oferta contínua de serviços focada na Atenção Primária à Saúde (APS), realizados de forma interdisciplinar e com a integração dos serviços de saúde e sistemas de informação. Experiências semelhantes foram registradas no Canadá, Noruega, Suíça, Holanda, Espanha, França, Inglaterra, Alemanha e Irlanda. De acordo com a autora, na América Latina, a implementação da RAS ainda é inicial e o Chile é o país com maior experiência na área. Mendes (2011) reforça que os sistemas organizados em Redes de Atenção à Saúde, com modelos estruturados em APS forte, resolutiva e coordenadora do cuidado dos usuários, têm resultados melhores do que aqueles apresentados em modelos em que a APS é frágil, como no caso do Brasil, por exemplo.

O autor expõe que os sistemas de atenção à saúde movimentam-se numa relação dialética entre fatores contextuais – envelhecimento da população, transição epidemiológica e avanços científicos e tecnológicos – e fatores internos – como cultura organizacional, recursos, sistema de incentivos, estrutura organizacional e estilo de liderança e gestão. Na análise do autor, os fatores contextuais são externos ao sistema de saúde e têm um ritmo mais rápido que os fatores internos. Nessa condição, Mendes (2011) avalia que os sistemas de atenção à saúde não conseguem se adaptar, em tempo, às mudanças contextuais, principalmente epidemiológicas e demográficas. Para o autor, essa é a razão da crise universal dos sistemas de atenção à saúde que foram concebidos e desenvolvidos com uma ideia de continuidade de uma atuação voltada para as condições e eventos agudos e desconsiderando a epidemia contemporânea das condições crônicas. “Como consequência, temos uma situação de saúde do

século XXI que responde por um sistema de atenção à saúde do século XX, quando predominaram as condições agudas” (MENDES, 2011, p. 51).

Oliveira (2016) reforça que o problema é caracterizado pela predominância da fragmentação do sistema que resulta em duplicação de serviços, ineficiências de escala e escopo, baixa qualidade devido à atenção descontínua e custos de tratamento altos em virtude da má gestão das doenças crônicas. “As partes do sistema de saúde não funcionam como um todo. Há pouca articulação de recursos, equipes e tecnologia entre os prestadores” (OLIVEIRA, 2016, p. 19). Com isso, a autora considera que o sistema de saúde no Brasil não está preparado para lidar com os problemas complexos determinados pelas doenças crônicas que representam 2/3 da carga das doenças no país.

As RASs, de acordo com a autora, seriam organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde, vinculados entre si por uma missão única, com objetivos comuns e ação cooperativa e interdependente, permitindo a oferta de uma atenção contínua e integral a determinada população. Esse funcionamento seria coordenado pela Atenção Primária à Saúde com responsabilidade sanitária e econômica e gerando valor para a população.

No Brasil, a proposta da RAS foi instituída pela Portaria GM/MS nº 4.279/2010, que apresenta seis características importantes à essa Rede:

1) Formar relações horizontais entre os diferentes pontos de atenção: os pontos de atenção à saúde são entendidos como espaços onde são ofertados serviços de saúde, sendo todos igualmente importantes para o cumprimento dos objetivos da rede de atenção. Na RAS, um posto de saúde, um hospital e um centro de especialidades têm a mesma importância para garantir a atenção à saúde do usuário;

2) Atenção Básica (primária) como ordenadora de ações: a AB é a porta principal de entrada no usuário no sistema de saúde; é responsável por coordenar o percurso do usuário pelos outros pontos de atenção da rede, caso suas necessidades de saúde não possam ser atendidas somente na APS; deve manter o vínculo do usuários com a rede, dando continuidade a ações de prevenção de agravos e promoção da saúde, mesmo que estejam sendo cuidados em outros pontos de atenção da rede. Além disso, a AB se constitui com um centro de comunicação dentro da RAS, mantendo o fluxo de informação e contato do usuário com o sistema. A Figura 2 mostra a APS como ordenadora do serviço, além de ilustrar a mudança do sistema piramidal para uma RAS. A Figura 2, inclusive, reforça o que está representado

na Figura 1, mostrando a opção pela rede distribuída e aproximando a ideia da RAS da teoria de rede;

Figura 2 – Mudanças de sistemas piramidais e hierárquicos para Redes de Atenção à Saúde (poliárquico)

Fonte: Mendes (2011), (2020).

3) Planejar e organizar as ações segundo as necessidades de saúde de uma população específica: as ações e serviços devem se basear nas necessidades da população adscrita (registrada nas unidades de determinado território) e nas evidências científicas devidamente verificadas;

4) Ofertar atuação contínua e integral: serviços e sistemas integrados que poderão ser capazes de oferecer atenção integral aos usuários, conseguindo solucionar cerca de 80% dos problemas demandados pela APS, sendo que os outros 20% dos casos sigam um fluxo que necessite de densidade tecnológica mais ampla dos níveis de atenção seguintes. Ao final desse cuidado, a continuidade da atenção deve ser mantida na AB;

5) Cuidado multiprofissional: necessidade de equipes multiprofissionais para atender os casos de saúde que, muitas vezes, são multicausais e complexos e precisam de diferentes olhares profissionais para o devido manejo. Essa ação interdisciplinar garante o compartilhamento e corresponsabilização da prática de saúde entre os membros da equipe;

6) Compartilhar objetivos e compromissos com os resultados, em termos sanitários e econômicos: a missão de uma equipe de saúde deve ter objetivos sanitários, como o aumento do aleitamento materno, maior e melhor atendimento à população, dentre outros, e objetivos econômicos, como melhor alocação de recursos humanos, tecnológicos e financeiros.

Conforme Oliveira (2016), são três os elementos constitutivos de uma RAS. O primeiro é a população, que deve ser conhecida e registrada, segmentada e subdividida por fatores de risco em relação às condições de saúde. O segundo elemento é a estrutura operacional formada pelos pontos de atenção da rede e pelas ligações entre os diferentes serviços, tendo cinco componentes: centro de comunicação (AB que coordena o fluxo dos usuários na rede); pontos de atenção secundários e terciários (serviços especializados com diferentes aportes tecnológicos e dão apoio à Atenção Primária); sistemas de apoio (diagnósticos e terapêutico, assistência farmacêutica e sistemas de informação em saúde); sistemas logísticos (soluções tecnológicas com base em tecnologias da informação); e sistema de governança (gestão de todos os componentes da rede). O terceiro elemento é o modelo de atenção à saúde, que se trata de um sistema lógico que organiza o funcionamento da RAS, articulando as necessidades da população à intervenção necessária.

De acordo com Mendes (2011) há um esforço, no Brasil, para implantar a RAS nos sistemas municipais e estaduais de saúde com resultados positivos na atenção à saúde do idoso, na saúde mental, no controle do diabetes e na utilização de serviços especializados. Por esse motivo, Oliveira (2016) aponta que a implantação da RAS no país tem seguido em forma de redes temáticas, priorizando linhas de cuidado para acolher e redefinir os novos modelos de atenção à saúde que estão surtindo efeitos positivos e eficientes no controle de algumas condições crônicas.

Mendes (2011) aponta que, a partir das várias experiências internacionais e também brasileiras, o principal problema do SUS reside na incoerência entre a condição de saúde brasileira, de tripla carga de doença descrita anteriormente, e o forte predomínio relativo das condições crônicas, além de um sistema de atenção à saúde fragmentado e voltado para condições e eventos agudos. “Esse descompasso configura crise fundamental do sistema público de saúde no Brasil que só será superada com a substituição do sistema fragmentado pelas redes de atenção à saúde” (MENDES, 2011, p. 58). De acordo com o autor, a própria Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que o enfrentamento das condições crônicas exige uma mudança nos sistemas de atenção à saúde por meio de um plano estratégico com ações de curto, médio e longo prazos. Mendes (2011) aponta que o ponto principal de novos

desenhos para a atenção às condições crônicas é um sistema coordenado e contínuo, com base na cooperação entre gestores, prestadores e usuários.

Outra proposta defendida por Mendes (2011) é que para conseguir implementar a RAS de forma mais efetiva, o Brasil precisa substituir a concepção de hierarquia pela poliarquia e uma organização mais horizontal dos pontos de atenção à saúde de distintas densidades tecnológicas e seus sistemas de apoio, sem ordem e sem grau de importância entre eles. Para o autor, todos os pontos de atenção da rede são igualmente importantes para que se cumpram os objetivos das RASs, e apenas se diferenciam pelas distintas densidades tecnológicas que os caracterizam. Nesse panorama, Mendes (2011), Oliveira (2016) e Spedo et al. (2010) colocam que a atual divisão do SUS em níveis de complexidade passa a ideia de que a Atenção Básica ou Atenção Primária à Saúde seja menos complexa que os cuidados secundários e terciários. Mas, os autores defendem que isso não é real e esse sentido precisa ser reforçado para que a RAS possa se constituir no Brasil. Mendes (2011) coloca que:

É a APS que deve atender mais de 85% dos problemas de saúde, é aí que situa a clínica mais ampliada e onde se ofertam, preferencialmente, tecnologias de alta complexidade, como aquelas relativas a mudanças de comportamento e estilos de vida em relação à saúde: cessação do hábito de fumar, adoção de comportamentos de alimentação saudável e de atividade física. Os níveis de atenção secundários e terciários constituem-se de tecnologias de maior densidade tecnológica, mas não de maiores complexidades. (MENDES, 2011, p.83)

Diante disso, os autores reforçam a importância de consolidar e reforçar a APS, que dentro da RAS, é a ordenadora do serviço e centro de comunicação de toda a rede, coordenando o fluxo com referência e contra-referência de pacientes. Mendes (2011), inclusive, relata que a mudança dos sistemas fragmentados para as RASs só ocorrerá se for apoiada em uma APS robusta e de qualidade. Os autores destacam que a APS constitui o primeiro contato de indivíduos, famílias e comunidades com o sistema de saúde, aproximando os serviços de saúde aos lugares de vida e trabalho das pessoas, significando o primeiro elemento de um processo contínuo de atenção. A APS será o foco da próxima subseção.