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5.1 CAMPO DE AÇÃO ESTRATÉGICA

5.1.1 Saúde em Rede

De acordo com Paulillo et al. (2016), a análise de redes tem seu alicerce na estrutura das relações sociais e rejeita a ideia de que as pessoas, organizações ou instituições sejam entidades estáticas, atomizadas e com limites claramente definidos – características que também não se aplicam a sistemas de saúde que mantém atendimento constantes a diversas necessidades de cuidados em saúde dos pacientes em diferentes níveis de atenção, complexidade e especialidades. Para os autores, a configuração em rede implica na substituição de um sistema piramidal para alcançar a excelência de produtos e serviços. A partir disso, eles colocam que as organizações passam a ter uma estrutura mais distribuída e procedimentos menos autocráticos quando a configuração da rede se estabelece e permite a prática de relações mais horizontais e não hierárquicas.

Essas características também são atribuídas à Rede de Atenção à Saúde (RAS), apresentadas por Oliveira (2016), Mendes (2011) e Spedo et al. (2010). Esses autores explicam que o SUS no Brasil é um sistema fragmentado, hierárquico com unidades desconectadas e incoerente com as necessidades de saúde da população. Oliveira (2016) e Mendes (2011) reforçam a importância de se implantar no Brasil a RAS, um sistema poliárquico, com relações horizontalizadas, que tem na Atenção Básica seu centro de comunicação e ordenador do cuidado em todos os níveis de atenção. Essa rede também tem por característica a manutenção de vínculo próximo com seus usuários e um fluxo de informação contínua, por meio do qual as unidades se conectam e têm conhecimento do funcionamento da rede como um todo. Oliveira (2016) relata que há um esforço no Brasil de se implementar a RAS, inclusive com a Portaria

nº 4.279 (2010) que estabelece diretrizes para a RAS no SUS. No entanto, essa implantação ainda é insuficiente, principalmente pelo enfraquecimento da Atenção Básica (AB) ou Atenção Primária à Saúde (APS). Mendes (2016) cita que no Brasil “faz-se essencial que as equipes primárias de saúde estejam organizadas e operando da melhor forma possível para haver a substituição do modelo de saúde hegemônico pelo modelo de redes integradas de saúde” (MENDES, 2011, p.46).

Na saúde pública de São Carlos é possível observar, a partir das entrevistas, que essa rede ainda não está estabelecida na prática, apesar de ser nomeada como rede pública de saúde de São Carlos. Essa, aliás, foi uma resposta unânime de todos os entrevistados, reforçando que essa rede não existe na prática. Algumas falas ilustram isso: “Ela [rede] é integrada. Ela é integrada, ponto. Ela é integrada da forma de vagas para consulta, vagas hospitalares. A saúde em São Carlos ela é integrada, mas ainda de forma arcaica” (E11); “É muito fragmentada, tem fluxos que são muito burocráticos” (E24); “Eu não posso falar que hoje há rede de cuidado. A rede está fragilizada. Então, assim, todo o município, o Brasil precisa trabalhar em rede. Então, assim, hoje o município de São Carlos tem uma fragilidade da rede, tá? Então, assim, os diálogos acontecem? Acontecem. O trabalho em rede acontece? Para alguns casos, sim. É unânime, de fato está fortalecido? Tem fluxo estabelecido, tanto no trabalho de linha de cuidado, dentro das redes que estão sendo discutidas dentro da RAS? Não que eu perceba, só se eu estiver equivocada. Eu falo muito respaldada na minha prática profissional e dos espaços que eu estou participando, de conselhos, de discussões” (E3); “Funciona em rede, não na sua plenitude. Funciona parcialmente em rede. Porque a gente não se conversa” (E19); e “Não, não funciona como uma rede. Porque ele não está planejado para as necessidades do município. Ele não está organizado de acordo com o perfil epidemiológico do município. Não tem como funcionar como rede porque oferece mais do que menos precisa e menos do mais precisa. Para se organizar em rede, tem que ter um estudo clínico das necessidades de saúde do município, e isso não acontece. Inclusive, os lugares que as unidades estão distribuídas” (E16). E25 tem a mesma percepção: “A saúde de São Carlos funciona em rede? “Não, de maneira nenhuma. Eu nunca vi funcionar em área nenhuma. Cada um trabalha por si, são independentes entre si. Todo mundo se reporta à SMS, mas, assim, os serviços deles não são integrados, infelizmente”.

Pelo fato da rede de saúde não estar estruturada adequadamente na cidade há vários problemas que se refletem por todo o caminho de cuidado dos pacientes. Esses impactos, conforme os entrevistados, serão apresentados a seguir. O primeiro deles é a referência e

contra-referência inadequadas. Na USE, a resposta das profissionais do Acolhimento é

vêm adequadas. Apesar da haver uma guia de referência e contra-referência disponível nas unidades do município, os documentos chegam à USE sem história clínica dos pacientes, sem hipótese diagnóstica, procedimentos já realizados e justificativa do encaminhamento. Na visão das profissionais, esse problema impacta no Acolhimento por dificultar o levantamento da real necessidade de cuidado dos pacientes. Os trechos a seguir destacam essa constatação: “Vem encaminhamentos sem nome do paciente, principalmente na área da Fisioterapia porque a gente está ali na porta de entrada, recebo de tudo. Sou psicóloga. Eu receber um encaminhamento com uma ficha SADT só escrito fisioterapia motora não me ajuda em nada. Então, muitas vezes, eu vou coletar informação para saber o possível diagnóstico, do quadro, só com o paciente. É raro um encaminhamento bem feito” (E9); “Os encaminhamentos não chegam corretos. Falta, principalmente, a unidade de origem, a data do encaminhamento, os dados, CID só se for encaminhamento do médico e, geralmente, a gente vê os que vêm da Santa Casa e eles são digitados. Eu penso que deve ser meio obrigatório. Mas os que vêm da rede, em geral, o histórico é muito pequeno, geralmente vem só a hipótese diagnóstica. O que ocorre é que, como o momento é do Acolhimento, a gente tenta resgatar esse histórico junto ao paciente e aí, vai subsidiando a gente mediante aquilo que foi possível identificar. Encaminhamentos do AME eu também percebo que são mais completos, são impressos, tudo certinho. Mas, encaminhamentos, principalmente das Unidades Básica de Saúde, são muito pobres de informação” (E5); e “Eles[pacientes] vêm, às vezes, dá dó, sabe? Porque eles já passaram no postinho perto da casa deles, aí mandou para outro lugar, daí do o outro lugar mandou para cá e nenhum resolveu o problema dele” (E9).

Em relação aos encaminhamentos e orientações inadequados, a USE considera que as informações devem ser fornecidas na AB, que está direcionando o paciente. Esse trecho da entrevista, por exemplo, destaca isso: “Acho que quem tem mais condições de fazer isso é a rede básica, né? Que está mais próxima do usuário, conhece o usuário. Eu acho que a rede básica, ou o postinho, que é onde o paciente deveria ter a referência dele, né…é o primeiro lugar que ele procura ajuda. Lá, eu acho que caberia esse trabalho de orientar como que é a rede, onde que ele vai, quais são as etapas do atendimento...Enfim, a gente acaba fazendo isso aqui, né?” (E9).

Um representante do Departamento de Regulação, setor também responsável pela coordenação do fluxo de pacientes pelo sistema público, relata que há uma preocupação de corrigir esse erro dos encaminhamentos, que as orientações são repassadas para todas as supervisões das unidades da AB, mas que nem sempre é possível garantir a efetividade desse processo. Na entrevista, E12 cita que “mesmo você fazendo orientação, você tendo fluxo

estabelecido, que nem esses critérios das guias de referência e contra-referência, a gente fez, formalizou, passamos para todas as chefias de unidades para que eles dessem ciência com todos os profissionais. Mesmo assim, isso não é uma garantia que está funcionando dessa forma”. Representantes das unidades, afirmam que esse encaminhamento é feito corretamente: “Geralmente, a gente entrega a guia e liga no setor para se informar qual seria o melhor horário, a melhor maneira de estar encaminhando para ela não ir e estar com a porta fechada. Via telefone, a gente tenta buscar a informação via telefone” (E19); “A gente dá o telefone e pede para o paciente ligar e se informar sobre o que vai precisar para cadastro, como funciona, se tem fila de espera, se não tem, se é só chegar e levar documentos” (E14) e “Nós encaminhamos com telefone e orientamos a se informar melhor pelo canal de comunicação para saber como funciona” (E15), dentre outras falas que podem ser checadas no Apêndice A.

Outra ferramenta para melhorar essa questão da referência e contra-referência, e que também auxilia no processo de aproximação é o matriciamento proposto entre as unidades e, também entre parceiros, como USE e AME, por exemplo, e as unidades da rede. O matriciamento consiste em capacitar os profissionais das unidades, com abordagem, diagnóstico e condução de casos dos pacientes, propondo a elaboração de terapias conjuntas que qualifiquem o atendimento ao usuário e deem maior capacidade de resolutividade para os pontos da rede. A Regulação cita que “Eu preciso ter essas discussões de matriciamento e fortalecer essas equipes multiprofissionais nesse sentido. Porque, se eu tenho uma equipe multiprofissional atuante, mesmo que eu não tenho psiquiatra, por exemplo - eu sei que ele é fundamental para o diagnóstico -, mas eu consigo, minimamente, apoiar esse usuário, dar um suporte, às vezes, até para ele não entrar no surto. A gente já tentou várias formas, né? Marcar em lugar neutro, aí as pessoas começam, vão duas ou três, e depois não vai mais. ‘Então, vamos fazer dentro da própria unidade, aí não tem desculpa de não conseguir sair’. Mas, as pessoas não se corresponsabilizam” (E12). Apesar da importância do matriciamento, algumas unidades mostram vários entraves e resistências a ele: “É uma estratégia importante de gestão e de cuidado, facilitadora, mas que eu vejo que a equipe, em si, está bem desanimada. O matriciamento seria essa aproximação entre as pessoas, entre todos nós. Meu medo é isso se perder mesmo. Tenho que discutir com meu gestor e falar que o pessoal aqui não quer ir mais fazer matriciamento, não é bem recebido, não está vendo sentido. Isso é uma perda muito grande” (E22); e “Tanto matriciarmos a rede quanto a rede nos matriciar. Essa interlocução é difícil, sabe? Parece que sempre fica uma coisa assim: ‘Quem sabe mais, a gente sabe e ele não sabe’. É uma imagem que eu tenho que precisa ser desconstruída. ‘Ah, a universidade toda poderosa está para ensinar’. Não é, eles que têm o contato direto com os usuários, eles têm

muitas coisas para nos ensinar. Acho que poderia ter essa troca, essa troca de matriciamento, essa troca de...acho que é uma coisa que a gente chama de educação permanente. Um vai ajudando o outro, trocas de experiências” (E8).

Outro problema da rede é o excesso de usuários que ficam na média complexidade após a resolução do cuidado na especialidade, por falta de local ou acompanhamento devidos para continuidade do cuidado da Atenção Básica. Esse problema é citado por Spedo et al. (2010) e E2 expõe isso na sua fala: “A alta, se tivesse uma rede estruturada, ok, porque você poderia dar seguimento ali. O problema é que não tem para onde encaminhar”. E1 também expõe essa condição na rede: “o grande problema que enfrentamos é que não há serviços no município em muitas das especialidades, especialmente Fisioterapia e Psiquiatra. Além disso, a rotatividade de pacientes crônicos em atendimento, em muitas áreas de especialidade, fica comprometida, pois não temos locais no município para encaminhamentos”. E18 reflete da mesma forma: “O clínico encaminha, passa pelo endócrino, estabiliza o quadro e devolve para ser acompanhado na UBS. Quando necessário, ele volta para reajustar a dose, e a gente não consegue fazer essa devolução. Precisaria voltar esse paciente. Quem encaminhou, você vem, estabiliza e volta. Essa dinâmica que precisa ser incrementada”.

De acordo com os relatos dos entrevistados, esse problema do excesso de usuários que ficam retidos na média complexidade e a inadequação da referência e contra-referência são reflexos da fragilidade da Atenção Básica, que será apresentada na análise da próxima subseção.