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REPRESENTAÇÕES EUROPEIAS NOS RELATOS CRONISTICOS: A construção da imagem indígena

RELAÇÕES CRONISTAS-COLÔNIA-ÍNDIOS

HISTÓRIA E CULTURA DOS POVOS INDÍGENAS E AFRODESCENDENTES Historien

Ano IV

H i s t o r i e n – R e v i s t a d e H i s t ó r i a [ 7 ] P e t r o l i n a , jun./nov 2 0 1 2 Página 52

O processo de colonização das terras da América portuguesa foi uma grande empresa, a qual abarcou da conquista de novas terras à aquisição de novos fiéis à Igreja. Para tal empreendimento e o seu sucesso inicial, houve a incumbência dos navegantes, escrivães e demais pessoas letradas de escreverem e relatarem sobre os territórios à sua realeza e aos nobres lusitanos; entre eles estavam os cronistas Gabriel Soares de Sousa e Ambrósio Fernandes Brandão. Têm-se nos seus relatos uma diversidade de valores, de imaginário, que se relacionam com conceitos que mais tarde resultaram na formação da imagem das terras da América portuguesa e, principalmente de seus nativos, dos seus costumes, de sua cultura, etc.

O termo “bárbaro”, o mais usado pelos cronistaspara se referir aos autóctones, e adaptado aos interesses coloniais, foi usado para designar os indígenas das diversas regiões americanas, sob a égide religiosa, cultural e econômica. Observemos alguns trechos onde esses cronistas usavam chamar os aborígines de bárbaros: “[...] esse costume devia de lhes ensinar algum demônio, e à sua imitação o usam com darem maior mostra nele de sua grande barbaridade.” (BRANDÃO, 1997, p.72);“[...] são mais bárbaros que quantas criaturas Deus criou.” (SOUSA, 2000, p.302). Segundo o dicionário de Bluteau (1789, p. 167)“bárbaro” quer dizer: “homem rude, sem polícia, nem civilidade, oposto ao civilizado, e urbano.” O termo aqui representado, no período colonial ganhava maior peso, pois se referia além de todos esses citados, ao de não cristão, de não conhecedor da verdade universal, não possuidor da Luz, da salvação.

A partir deste ponto já se toca em outra questão bastante peculiar, a qual engendrou o processo da colonização: a guerra justa. Os índios, de forma tão incessantemente relatada não só por Gabriel Soares de Sousa e Ambrósio Fernandes Brandão, mas como por tantos outros cronistas, eram gentios – no sentido da palavra, pagão –, e logo todo pagão era tido como bárbaro. A “missão civilizadora” portuguesa em relação aos indígenas poderia sofrer variações de acordo com o modo em que se daria a evangelização. Os índios eram obrigados a escolher, na maioria das vezes, quando militarmente subjugados, a se tornarem cativos dos senhores de engenho, ou escolherem a “proteção”dos jesuítas (SCHWARTZ, 1988). A bondade, a civilidade dos índios, só tornava-se possível se próximas ao conceito de civilização europeia, e como tal, convertidos ao Cristianismo católico.

Quando se observa os relatos de Soares de Sousa e Brandão, no sentido religioso, ambos eram defensores da propagação da fé pela Igreja na colônia. Seria ela, uma das responsáveis por ministrar a base que tornaria legítima a fixação nas novas terras que, unida ao governo de um donatário, teriam as características fundamentais do que conheciam como civilização, com suas instituições principais, Estado e Igreja. Por outro lado, segundo

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pensavam, era um modo de amansar os índios, convertendo-os à fé cristã. Trazê-los para junto das vilas, destribalizando-os e aculturando-os, aumentava a possibilidade de se defender dos demais que se negavam a abandonar suas terras, os quais eram descritos, conforme a visão dos cronistas e do estereótipo, o qual já estava bastante enraizado, relativo à barbárie. Neste caso, este era um dos métodos da empresa colonial, com sua justificativa “civilizadora” e evangelizadora para praticar todo tipo de ação contra os índios. Em relação a eles, o modo de tratamento era fruto dos primeiros contatos, com todo seu estranhamento e falta de entendimento do outro, das suas culturas. A bizarrice, a barbárie, o pecado, o empecilho para o avanço da colonização, faziam parte dos relatos de Brandão e Soares de Sousa. Referiam-se aos índios com tom depreciativo, que a primeira vista e aos leitores desavisados, a partir de uma escrita aparentemente passiva, principalmente a de Sousa, chega a certo ponto de fazer-se crer que suas interpretações e julgamentos sobre a vida dos indígenas fossem em todo verdade. Nesse sentido, ambos os cronistas tinham suas ideias seguindo a mesma direção, que se completavam numa complexa teia de interesses e pensamentos, entre “civilizado” e “bárbaro”, cristão e gentil. Tudo se completava no mundo de encontros, subjugo, assimilações, que davam impulso à empresa colonial.

Por muito tempo a historiografia usou esses escritoscomo inalienáveis e verdadeiros, não cabia ao historiador problematizá-los, mas apenas narrar a verdade contida nos mesmos. Tal prática contribuiu para que estes discursos cronísticos, ao serem tomados como fiéis, fossem utilizados para a construção da imagem do indígenano Brasil. Alguns que se utilizaram destes cronistas como fonte narrativa e que se tornaram referências no âmbito nacional são: Capistrano de Abreu, com Capítulos da História Colonial, Paulo Prado, com Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Esses textosexpunham a partir das concepções dos cronistas, seus interesses específicos, formação cultural e o imaginário relativo ao seu etnocentrismo. E o que se têm nos livros escolares – em grande parte deles –, é a não consideração da religião indígena e de todos os seus aspectos culturais, e a visão de ingenuidade dos mesmos, como ocorre no livro História do Brasilde Sonia Irene do Carmo e Eliane Couto. A não interpretação dos relatos contribuiu fortemente para esta perpetuação da imagem do indígena, que desde o período colonial já se montava no imaginário ocidental.