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Cristiano Pessatti de Matos2

RESUMO:

O presente artigo tem como finalidade apresentar os resultados parciais obtidos no Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da UNEB – Campus V - (PPGHIS). Através do projeto de pesquisa Criminalidade e Justiça em Morro do Chapéu, 1869-1889. Todavia, analisaremos especificamente nesse trabalho apenas dois processos crimes movidos contra a ex-escrava Romana. Investigando a forma como a referida liberta foi tratada pelo poder judiciário no primeiro caso enquanto ré enfrentando a justiça e sendo considerada por todos os indivíduos envolvidos no julgamento uma mãe desnaturada e assassina, no segundo na posição de vítima de agressão física, buscando seus direitos perante a justiça enquanto pessoa livre.

PALAVRAS-CHAVE: Crime; justiça; século XIX.

Nesse artigo, apresentamos alguns resultados parciais obtidos a partir do projeto de pesquisa Criminalidade e Justiça em Morro do Chapéu, 1869-1889, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da UNEB – Campus V - (PPGHIS). Que se dá através de análises das práticas criminais perpetradas pela população livre e cativa e sobre o tratamento dado a elas pela administração jurídica de Morro do Chapéu através dos seus mecanismos de controle social.

No recorte espaço-temporal aqui investigado, foram identificados escravos que tiveram acesso a diversas regalias que não condiziam com a condição geral em que viviam os cativos segundo a historiografia “dita” tradicional da escravidão. Entre elas destacam-se o direito de possuir propriedades, liberdade de viajar sem o consentimento de seu senhor, acesso ao porte de armas, direito de trabalhar para si, etc.

1 Este trabalho reflete sobre escravidão brasileira no final do século XIX. Romana, nome que se encontra no título, se refere a uma liberta baiana, nosso objeto de estudo.

2 Mestrando em História Regional e Local - Universidade do Estado da Bahia – Campus V; bolsista FAPESB; Contato: pessatti18@hotmail.com

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Foi durante a primeira metade do século XIX que ocorreu especificamente a formação de Morro do Chapéu. Da mesma forma que outras comunidades dessa região. A sociedade morrense também surgiu como resultado da concessão de sesmarias, a doação dessas grandes quantidades de terra resultou na formação de diversas fazendas, que se transformaram em freguesias e posteriormente em vilas a exemplo de Morro do Chapéu e Mundo Novo que hoje são cidades.

Morro do Chapéu existe, oficialmente, desde a primeira metade do século XIX, quando a freguesia, e com ela o distrito de paz, foi criada pela Lei Provincial n.° 67, de 1º de junho de 1838. Seu território foi desmembrado de Jacobina, junto com Mundo Novo, de acordo com a Lei de n.° 933, de 07 de maio de 1864, ocorrendo sua instalação a 06 de novembro do ano seguinte. (LEITE, 2009, p. 29).

A partir dessa lei instituída no dia sete de maio de 1864 a freguesia de Nossa Senhora da Graça do Morro do Chapéu foi elevada a categoria de vila. É nessa condição hierárquica e política que a analisamos, pois corresponde ao recorte temporal que nos dedicamos a investigar nesse trabalho. Pois, apenas com a Lei n.º 751 de 8 de agosto de 1909 é que Morro do Chapéu foi elevada a categoria de cidade.

Para que seja possível refletirmos sobre a escravidão em Morro do Chapéu, iremos nos dedicar nesse momento a uma análise geral da sociedade morrense no período em questão. Dessa forma, também poderemos compreender melhor as práticas e relações socioeconômicas e culturais dos sujeitos aqui investigados. Segundo o pesquisador Moiseis Sampaio:

Dadas às características do solo, apenas uma parcela da região prestava-se ao cultivo de gêneros agrícolas, mas, com produção suficiente apenas para o consumo dos moradores. O excesso de rochas afloradas e o solo arenoso dificultavam uma agricultura em larga escala. As faixas de terras mais férteis localizavam-se nos vales e nas margens dos rios, onde se desenvolvia a agricultura de subsistência. (SAMPAIO, 2009, p. 28).

Ainda de acordo com o pensamento do autor acima citado, devido a essas características a população de Morro do Chapéu desenvolvia sua agricultura de acordo com as estações do ano. Sendo o cultivo de gêneros alimentícios como o feijão e o milho influenciado pelos períodos de chuva e de seca, as plantações de cana-de-açúcar e de arroz eram feitas próximas aos rios durante alguns meses do ano quando essas áreas ficavam alagadas. No entanto, “a mandioca, pela resistência à seca, era o cultivo mais importante dos pequenos lavradores da região”. (SAMPAIO, 2009, p. 28).

Devido às características de clima e solo acima apresentadas, se fez necessária à população de Morro do Chapéu a busca por outras formas de trabalho que permitissem a

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sobrevivência desses indivíduos. Quando não estavam envolvidos em atividades agrícolas, essa necessidade fez com que os trabalhadores morrenses desenvolvessem habilidades em diversos ofícios, pois como nos mostra Moiseis Sampaio,

esta possibilidade de trabalho apresentava-se como oportunidade de renda extra. Muito embora a meação fosse a forma de trabalho mais utilizada nas fazendas da região, os meeiros poderiam trabalhar como jornaleiros ou como diaristas em outras propriedades, isto também era estendido aos escravos proporcionando oportunidade de pecúlio. (SAMPAIO, 2009, p. 20).

Temos como exemplos desses outros espaços de trabalho além da lavoura que também foram desenvolvidos nessa região, dos quais nos fala o autor acima citado, a pecuária e a mineração, essa última que durante seu auge necessitou de muitos trabalhadores, alguns deles escravos que, através de uma renda extra, podiam acumular pecúlio. Essas diferentes oportunidades de trabalho permitiram aos trabalhadores morrenses se especializarem em várias profissões, sendo elas utilizadas conforme a necessidade e o momento ou até mesmo concomitantemente.

A produção de carne fazia parte da estrutura básica para a sobrevivência das famílias e dos agregados nas fazendas da face norte da Chapada Diamantina. Neste tipo de pecuária era criado gado bovino para carne e tração, eqüinos e muares, além de animais de pequeno porte, como caprinos e suínos, além de aves domésticas. Os animais de porte menor eram criados apenas para o consumo das famílias enquanto a criação de bois, cavalos e muares configuravam-se como a principal atividade econômica da fazenda, criados para abastecer o mercado mais amplo, principalmente o Recôncavo baiano. (SAMPAIO, 2009, p. 28).

O desenvolvimento da pecuária extensiva como mostrado acima foi muito importante para a sociedade morrense. Todavia, essa atividade foi muito prejudicada por alguns períodos de seca, ocorrendo uma diminuição de sua prática. Dessa forma, no final do século XIX e início do XX essa atividade foi sendo substituída pela extração de minerais, como o garimpo de diamantes, que durante um período viveu seu apogeu. Todavia, após seu declínio foi substituído pela mineração de carbonatos “Que possibilitou o acúmulo de riqueza por parte de muitas pessoas de origem pobre”. (SAMPAIO, 2009, p. 6).

No período que trabalhamos nessa pesquisa, os homens poderosos de Morro do Chapéu eram os grandes fazendeiros e também senhores de escravos. Encontramos em muitas de nossas fontes registros que mostram que esses indivíduos não possuíam apenas poder econômico, mas também político e social. Por muitas vezes, chegaram a ocupar importantes cargos na administração do poder judiciário como o de delegado e juiz, tendo dessa forma

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condições de influenciar nos resultados dos julgamentos de muitos crimes praticados por “sua gente”.

No Alto Sertão da Bahia, como em todo território nacional, durante o Império, o senhoriato agrário constituía-se no único segmento social com acesso ao poder político, que emanava da propriedade da terra. Desde a autonomia política fazia-se necessário reordenar juridicamente a estrutura fundiária, originária do sistema de sesmarias. (NEVES, 1998, p. 111).

O poder político desses grandes fazendeiros que se constituiu nos “sertões” baianos no período em questão, também foi verificado por Fagundes Neves como demonstrado no pensamento acima citado. A existência desses indivíduos e sua influência junto à população, fez com que surgisse um forte embate entre o Estado Nacional e os poderes locais e regionais pelo controle do corpo social.

Segundo o pensamento de (BATISTA, Dimas José, 2006, p. 22). “nos sertões, a estrutura e o funcionamento do poder de vigiar e punir, de controlar e coagir teria que se adequar a um modo de pensar, sentir e agir diverso daquele para o qual a lei e a justiça tinham sido projetadas”. Isso ocorreu devido aos valores socioeconômicos e culturais desenvolvidos pelas populações sertanejas que juntamente com os poderosos locais, construíram suas noções de crime e justiça, seus códigos de honra e seus próprios parâmetros orientavam como punir as práticas criminais.

Partindo desse pressuposto sobre os sertões, acredito que a população de Morro do Chapéu e região também possuía seus próprios códigos de conduta social, valores morais e concepções sobre crime e violência, baseados nas práticas costumeiras, desenvolvidas nas relações interpessoais construídas no cotidiano pelos diversos elementos que compunham aquela comunidade. As noções de “justiça” daquela população poderiam divergir em muitos aspectos daquelas pensadas pelos agentes burocráticos que representavam o poder judiciário do Império.

Todavia, apesar de muito poderosos, os fazendeiros de Morro do Chapéu necessitavam de auxílio para administrar suas grandes fazendas. Nesse contexto, a atuação dos agregados enquanto trabalhadores versáteis nessas propriedades, foi de fundamental importância para o desenvolvimento de várias atividades produtivas e econômicas, sobre essa relação entre senhor e agregado Sampaio diz que,

enfrentar as duras condições de vida nos tabuleiros da Chapada Norte se tornava menos difícil quando se tinha com quem contar em momentos de dificuldade. Assim foram estabelecidas relações de interesses mútuos entre agregados e proprietários. Estes, almejando sempre uma maior quantidade de animais para comercializar,

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dependiam completamente da habilidade e disponibilidade dos vaqueiros. Enquanto que os agregados precisavam de ajuda material e proteção, muitas vezes contra outros proprietários e bandoleiros errantes do sertão. (SAMPAIO, 2009, p. 29).

Foi nesse ambiente marcado por difíceis condições de existência que se formou a sociedade morrense aqui analisada. A proximidade em que viviam os grandes fazendeiros e seus agregados, senhores e escravos, homens livres de nascença e libertos, fez com que surgissem as relações de “interesses mútuos” acima citados.

Essas relações foram de suma importância em tempos de seca, quando eram agravados todos os problemas endêmicos a essa região. O período de seca que assolou toda a Bahia durante o período de 1868 a 1871, segundo (SAMPAIO, 2009, p. 13) “prejudicou a agricultura já deficiente e a pecuária do sertão, espalhando pobreza, fome e mortes”.

Era nesse contexto de extrema dificuldade de sobrevivência que se formavam laços afetivos entre os mais necessitados. Essas relações socioeconômicas e culturais permitiam que escravos, libertos e homens livres pobres, que muitas vezes enfrentavam juntos os mesmos problemas, pudessem desenvolver percepções coletivas da realidade que vivenciavam, e dessa forma lutarem juntos por melhores condições de existência. Essa ideia acerca das sociedades escravistas sertanejas é apresentada por Fatima Pires quando diz que,

em meio às dificuldades continuadas da sobrevivência, escravos e ex-escravos consolidaram apoios e aproximações com livres pobres, com os quais, desde a escravidão trabalharam lado a lado. As redes de vizinhança e parentesco constituíram forte elemento de coesão do grupo, além de propiciarem elasticidade aos acordos. Noutras palavras, a vivência conjunta ampliava possibilidades de barganhas e expressava percepções coletivas de vidas partilhadas nos meios mais pobres. (PIRES, 2009, p. 23).

Entretanto, acreditamos ter sido por causa dessa mesma proximidade entre indivíduos de diferentes segmentos sociais que apesar de alguns interesses em comum, possuíam muitas diferenças nos seus modos de ser e de agir a causa da ocorrência de tantas práticas criminais no período aqui trabalhado. Resultantes de disputas muitas vezes vinculadas a recursos matérias, em outros casos por divergências de valores socioculturais.

Ao investigarmos a administração do poder judiciário na sociedade morrense, devemos levar em conta não só a estrutura de sua formação, mais também o perfil dos indivíduos que a compõem. Dessa maneira, é necessário refletirmos sobre as práticas e relações escravistas desenvolvidas nessa região, pois as mesmas foram fundamentais na organização daquela comunidade. Segundo Moiseis Sampaio:

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Embora a vida não fosse mais fácil, talvez, os escravos do sertão possuíssem maiores possibilidades de ascensão do que os escravos da região açucareira. Isto por que no sertão, os trabalhadores eram menos vigiados e tinham maiores oportunidades de acumular pecúlio, uma vez que após cinco anos de trabalho com o gado, o vaqueiro seja ele escravo ou agregado tinha direito a um dentre quatro bezerros com a idade de um ano. Na região norte da Chapada Diamantina este pagamento era chamada de “sorte”. Ao fim de alguns anos de trabalho a depender da habilidade do vaqueiro no trato com o gado, este poderia acumular bens uma vez que as boiadas eram reunidas em torno de 100 a 300 animais. (SAMPAIO, 2009, p. 29).

A possibilidade de conquistar pecúlio acima apresentada pelo autor citado, nos mostra que na região de Morro do Chapéu, era possível a escravos adquirirem recursos financeiros, provavelmente utilizados inicialmente para conseguir à tão sonhada liberdade. Permitindo num segundo momento a possibilidade os cativos obterem bens materiais, alcançando determinado grau de status social naquela sociedade.

Por muito tempo os estudos historiográficos negaram a existência de populações negras nos sertões baianos. Ideia que vem sendo desmistificada por estudos contemporâneos sobre essa temática como foi demonstrado pelos exemplos de pesquisas aqui citadas. Todavia, essa não é a única problemática existente ao refletirmos historicamente sobre as vivencias das populações afrodescendentes, Segundo Vieira Filho.

Até a década de 70 do século XX, os estudos sobre as populações africanas e seus descendentes estavam muito mais voltados para explicações teóricas gerais sobre o sistema colonial ou a organização da exploração e da administração colonial, desta forma as pesquisas empreendidas tinham como foco principal os modelos teóricos estruturantes das explicações macro, deixando de fora a “dinâmica interna da sociedade”. (VIEIRA FILHO, 2006, p. 31-32).

Como nos mostra esse historiador, por muito tempo os estudos dedicados a refletir sobre a escravidão brasileira foram voltados apenas a uma tentativa de explicar o sistema escravista de forma estrutural, dando ênfase ao seu caráter econômico. Se por um lado essas pesquisas contribuíram para a compreensão desse aspecto da história do Brasil, por outro lado elas ofuscaram as vivências e relações cotidianas da população afrodescendente estabelecidas com os demais indivíduos que compuseram a sociedade brasileira.

Por entendermos a importância da participação da população negra na formação e no desenvolvimento de Morro do Chapéu, dedicamos parte dessa pesquisa a uma reflexão sobre a escravidão nessa região. Através da investigação de alguns processos crimes buscamos conhecer a forma como ocorriam as relações escravistas na sociedade morrense.

Os autos criminais depõem sobre ocupações de escravos e ex-escravos, além de os registrarem circulando pelas estreitas ruas das vilas, em tabernas e vendinhas, nas

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feiras-livres, em suas casas, nas casas de seus parceiros ou nas casas de seus senhores, nas lidas diárias nas roças, nas tropas ou cuidando do gado. (PIRES, 2009, p. 22).

Como nos mostra Fátima Pires, processos crimes em que escravos estiveram envolvidos sejam como vítimas ou réus, podem ser utilizados para refletir não só sobre criminalidade escrava, mas também permitem investigações acerca de muitos outros aspectos da vida dos cativos. As fontes que utilizamos contem informações a respeito das relações socioeconômicas e culturais desenvolvidas pelos escravos não só entre eles, como também com os demais sujeitos com quem conviviam.

Se compararmos os números de processos crimes em que cativos estiveram envolvidos seja enquanto réus ou vítimas, com aqueles em que pessoas livres ocuparam essas posições, veremos que o número de escravos era muito inferior. Todavia, é importante ter cuidado para não cometermos o mesmo erro que muitos estudiosos dos sertões baianos cometeram: o de não acreditar na presença efetiva de afrodescendentes nessas regiões. Segundo Vieira Filho,

A concepção de pequena proporção de negros e da povoação do sertão através da miscigenação de brancos e indígenas foi forjada desde meados do século XIX, com o indianismo na literatura, mas também vai beber em outras fontes do século XX, como democracia racial, lida de forma pragmática por parte da intelectualidade baiana. As bases teóricas deste raciocínio, portanto, são híbridas. (VIEIRA FILHO, 2006, p. 40-41).

Nos dois processos crimes que apresentaremos a partir de agora, a ex-escrava Romana será nosso objeto de investigação. Iremos analisar a maneira como foi tratada a referida liberta pelo poder judiciário morrense, no primeiro caso enquanto ré enfrentando a justiça e sendo considerada por todos os indivíduos envolvidos no julgamento, uma mãe desnaturada e assassina, no segundo na posição de vítima, buscando reaver seus direitos violados enquanto pessoa livre.

Romana era ex-escrava do Tenente João Ferreira da Silva Reis, natural de Rio de Contas e moradora da Villa de Morro do Chapéu. Em 1886, ano em que ocorreu o primeiro processo, disse em depoimento ter vinte e sete anos e viver de trabalhos domésticos, não sabendo ler nem escrever. Segundo as informações que constam no inquérito policial a ré foi acusada pelo fato que se passa a seguir.

No dia dezeseis do mês de janeiro do corrente anno de 6, as 5 horas da tarde no lugar denominado Serra do Boi, uns quatro centos metros pouco mais ou menos retirado das ruas desta Villa, foi encontrada huma criança recem nascida que pela experiencia observada mostrara não ter ainda 24 horas que viera ao mundo, jogada

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ao duro solo pela forma mais brutal e horroroza de que não se possa imaginar, nu como nascera, com a boca cheia de folhas verdes e estava com um imundo pano como para preterir o choro natural, e já com varejeiras em algumas partes do inocente corpo como nos olhos, umbigo. Como de tudo consta o corpo de delito e inquerito policial a que se procedeo pelos quais tem alem da minha indagação, fica exuberantemente provado ser a liberta Romana ex escrava do Tenente João Ferreira da Silva Reis a mãe desnaturada desta innocente criança, como que devo dar providencia velando sobre aprovação do crime, teve vida está criança, atte receber o sacramento do baptismo, falecendo horas depois. Cumprindo o quanto determina o 6º do Artigo 42 do regulamento nº4824 de 22 de setembro de 1871, remeto esse caso na qualidade de crime de morte3.

A criança abandonada foi encontrada por Pedro de Souza Bellas, lavrador de vinte dois anos de idade, casado, natural e morador de morro do Chapéu. Em seu depoimento ele disse ter ido ao mato procurar um animal fugido, quando encontrou e recém-nascida nas condições em que a define o corpo de delito, voltando às pressas a Vila para contar o acontecido. A referida criança foi batizada de Maria, pelo Reverendo Vigário Joaquim Ignácio de Vasconcelos dessa Freguesia, morrendo horas depois.

Todas as testemunhas afirmaram que o recém-nascido abandonado era filho da liberta Romana, sendo a mesma recolhida à prisão. Esse caso é muito interessante, pois permite refletirmos sobre uma prática desenvolvida por escravas e libertas, bastante estudada pela historiografia da escravidão, o assassinato de crianças por suas mães, que as abandonavam para a morte como no caso de Romana, ou afogavam, envenenavam, etc. No intuito de livrar