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RESIDÊNCIAS SENHORIAIS: do donjon ao corps de logis; distribuição e articulação

32 ROSENFELD, Myra, La distribution des palais et des hôtels à Paris du XIVe au XVIe siècle in Architecture et vie

2.3 RESIDÊNCIAS SENHORIAIS: do donjon ao corps de logis; distribuição e articulação

As novas noções introduzidas pela iniciativa real foram acompanhadas pelos grandes senhores aristocratas (nobreza, clero e burguesia), pois era “ [...] de

bon ton de moderniser les anciennes forteresses, d’adapter leur décor au goût nouveau, et parfois, de construire à neuf [...]”34. E essa evolução, naturalmente,

aconteceu não só em Paris, como um pouco por toda a França. Concentremo-nos por enquanto na cidade.

O hôtel de Clisson (1371-1407), construído por Olivier de Clisson (1336-1407) num terreno próximo (a poente) do hôtel Saint-Pol, tinha as suas peças distribuídas em três corpos que envolviam um jardim, de acordo com um inventário que data de 150435. Se Saint-Pol foi uma referência, os corpos

estariam dispostos ortogonalmente, algo também possibilitado pelo vasto terreno. No corpo Oeste, o da entrada, erguia-se uma torre com uma escada em espiral, provavelmente numa posição mais ou menos destacada, caso seguisse o exemplo do Louvre. Ao corpo principal, a Este, com sala grande e capela no piso térreo, câmara de dormir e sala pequena no primeiro piso, e com um jardim adjacente, acedia-se por meio de uma galeria situada a Norte. A Sul, encontravam-se os estábulos e a casa do jardineiro.

Mesmo sem desenhos não é difícil imaginar como seria esplendorosa a chegada ao pátio desta residência após a entrada no portal que ainda hoje

34 ERLANDE-BRANDENBURG, A. e MÉREL-BRANDENBURG, A.; Histoire de l´architecture française: du Moyen Âge

à la Renaissance: IVe siécle début XVIe siécle; Paris: Mengés; 1995; p. 390.

35 ROSENFELD, Myra, La distribution des palais et des hôtels à Paris du XIVe au XVIe siècle in Architecture et vie

sociale: l'organisation intérieure des grandes demeures a la fin du moyen âge et a la renaissance / actes du colloque; études réunis par Jean Guillaume; Paris: Picard; 1994 ; p. 211 - recorre a esse inventário (Archives nationales) para

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Fig. 36 O portal do hôtel de Clisson incorporado no hôtel de Soubise. 2013

persiste na rue des archives [fig.35-36] depois da demolição do séc. XVIII para dar lugar ao hôtel de Soubise (1704-1707), projeto do arquiteto Pierre-Alexis

Delamair (c.1675-1745). Entrando sob a vigilância dos torreões36, um cenário

de aparato (note-se a marcação do estatuto social através do escudo e do brasão) [fig.37], chegava-se ao pátio, peça que desempenhava um papel fundamental em termos distributivos. Nele chegava o senhor da casa, onde via o seu cavalo retirado para os estábulos, podendo recolher diretamente aos seus aposentos no primeiro piso através da galeria voltada ao Sol de Sul. Nele chegavam também os seus convidados, que acediam depois à sala grande (de aparato), gozando também das vistas sobre do jardim. Não se sabendo mais pormenores sobre as outras peças, nomeadamente as de serviço, pode-se verificar como a escada e a galeria funcionavam como elementos de articulação das áreas privadas e de aparato, e como o pátio as acompanhava nesse fulcral papel.

O hôtel de Bourbon (1390-1413), ou Petit-Bourbon, construído num terreno a nascente do Louvre [fig.38] para a Casa dos duques de Bourbon, é outra das residências urbanas que se seguiram tendo em conta a trajetória que se está aqui a descrever. Por isso mesmo, este hôtel (quase completamente demolido em 1664) era constituído por vários corpos, galerias e pátios, com claro destaque para as grandes salas de aparato [fig.39] e a capela de Bourbon, onde ocorriam grandes reuniões. Não se sabe ao certo o número exato, ou a

36 Tourelle (torreão), segundo VIOLLET-LE-DUC, Eugène (ed. 1858-1868) Op. Cit. Tomo IX, p. 189: “Diminutif de

tour, petite tour, ou plutôt tour d’un petit diamètre. Les manoirs ne pouvaient être munis de tours, mais de tourelles seulement. On donnait aussi le nom de tournelles à de véritables tours flanquant des courtines, mais dont l’étroite circonférence ne pouvait contenir qu’un très-petit nombre de défenseurs; sortes de guérites ou d’échauguettes. Les portes, les châtelets, n’étaient souvent munis que de tournelles. Aujourd’hui, on désigne habituellement par le mot tourelles les ouvrages cylindriques, ou à pans, portés en encorbellement. Ces tourelles s’élevaient, soit sur un cul-de- lampe, soit sur un contre-fort ; elles donnaient un flanquement peu étendu et des vues sur les dehors d’une habitation, d’une porte ou d’une courtine. On ne commence guère à les employer que pendant le XIIe siècle ; les XIIIe, XIVe, XVe et XVI siècles même en font un grand usage, et certaines habitations du XVII siècle en possèdent encore. La tourelle est fermée et ne communique avec les logis ou chemins de ronde que par une porte. Elle forme ainsi intérieurement une petit pièce circulaire, un cabinet, une guérite, et est couverte le plus souvent par un cône de pierre ou de charpente, plomb et ardoise. Souvent les tourelles contiennent un escalier à vis pour communiquer d’un premier étage aux parties supérieurs de l’édifice”.

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Fig. 38 Paris. C. 1552. Posição do hôtel de Bourbon. Por J. A. du Cerceau.

disposição, das peças de aparato. O mesmo se passa com as restantes peças37.

No entanto, há indicações da existência de um corpo perpendicular (não se pode afirmar com certeza que seria uma galeria), com pelos menos uma arcada no piso térreo, que fazia a ligação entre um corpo paralelo ao rio Sena e à referida capela [fig.40]. Existiriam também, no primeiro piso do corpo paralelo ao rio, a galeria dourada e uma câmara, que se crê serem as grandes peças de recepção das grandes festas e banquetes.

Além das peças com vocação administrativa e social, grande importância foi também atribuída às peças privadas. Num pavillon38 (pavilhão) no canto de

dois corpos, encontravam-se duas câmaras de dormir (interligadas - uma para o duque e outra para a duquesa), guarda-roupa, oratório, capela, câmara alta e baixa, que se articulavam com uma sala de aparato no piso inferior. O que significa que no próprio corpo privado, ou melhor, pavilhão, continuava presente a necessidade de articulação entre peças de aparato e peças privadas. Além disso, as peças de aparato também seguiam uma hierarquia, dado que havia aquelas que desempenhavam de facto funções oficiais de recepção e reunião, e aquelas cujo o carácter era mais privado. Quanto à entrada e ao papel desempenhado pelo pátio na organização da residência, não nos podemos alongar muito. De acordo com registos gráficos, verifica-se a presença de um portal e de um pátio murado a poente, mas nada sabemos sobre a sua articulação. Contudo, a presença de pequenos pátios a nascente, onde estavam localizadas as peças de serviço, tais como a cozinha e os estábulos, significa que o pátio era uma peça à qual se recorria para distribuir e articular todas as outras.

37ROSENFELD, Myra, La distribution des palais et des hôtels à Paris du XIVe au XVIe siècle in Architecture et vie

sociale: l'organisation intérieure des grandes demeures a la fin du moyen âge et a la renaissance / actes du colloque; études réunis par Jean Guillaume; Paris: Picard; 1994 ; p. 208 - refere vários documentos de referência, entre os

quais destacamos um inventário de 1457 de P. Daignet (Archives nationales) que enumera 42 peças com funções específicas.

38 Vários autores, como J. Babelon, H. Ballon, A. Blunt, J. Pérouse de Montclos, A. Sutcliffe, D. Thomson, entre outros da bibliografia consultada, usam o termo para definir as estruturas quadrangulares de dois ou três pisos, normalmente encimadas por uma cobertura de ardósia bastante inclinada, geralmente de quatro águas. Esta estrutura parece ser uma derivação das torres defensivas quadrangulares localizadas nos ângulos exteriores dos châteaux, adaptadas à nova condição residencial.

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Fig. 41 Louvre sous Louis XIII. 1522. Note-se o hôtel de Bourbon à direita. Por anónimo.

Deste modo, a distribuição em diferentes corpos, galerias e pátios, promovia a setorização entre as peças sociais, privadas e de serviço. A ausência de estruturas defensivas como o donjon e a muralha, por substituição pelos torreões, que mais não faziam do que promover a defesa contra atos isolados da população e manter um certo aparato exterior [fig.41-42], eram um sinal da sucessiva sobreposição das necessidades de comodidade habitacionais - peças de recepção, intimidade da família e do individuo e dependências de serviço - sobre as de fortificação. O que mostra também como eram, de certo modo, incompatíveis.

Se transpusermos os limites de Paris podemos mesmo verificar como essas estruturas defensivas, se adaptaram às novas tendências residenciais que se estabeleceram no Louvre. Além disso, a evolução distributiva ocorreu num duplo sentido. Isto é, se por um lado as novas necessidades residenciais da coroa, e consequentemente da aristocracia que a circundava, resultaram numa mudança na distribuição, por outro, a sala grande que remonta aos

châteaux medievais fortificados, que já havíamos referido, em conjunto com

o donjon, formaria a essência da enfilade39 característica do corps de logis da

residência senhorial rural e urbana.

Já referimos como o donjon de Vincennes se adaptou às novas comodidades residenciais da coroa. Um conjunto de donjons, mais modestos, mostram como evoluiu a enfilade das peças de aparato e das peças privadas, como se articulavam, conjuntamente com as peças de serviço, do corps de logis senhorial.

O donjon de Sarzay (c.1440), localizado a cerca de 300km a Sul de Paris, em

Indre, foi construído pelos Barbançois, uma família de cavaleiros que

participaram nas batalhas da Guerra dos Cem Anos. A estrutura não é mais do que um corpo retangular com quatro torres cilíndricas nos cantos, uma