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A insatisfação e o desejo de alcançar a aparência ideal fazem parte da história da humanidade. Ao longo dos anos, as mulheres escravizaram – e ainda escravizam – o corpo de acordo com os padrões impostos pela sociedade, que por vezes impõe à figura feminina ser magra, alta,

ter cabelos lisos, etc., fazendo com que muitas frequentem clínicas de estética e busquem o corpo “ideal”, submetendo-se a problemas psico- lógicos e quadros psiquiátricos, como: bulimia, anorexia, vigorexia e ortorexia. É aceito o indivíduo que acompanha as tendências exigidas ou que se enquadra no padrão social; já aquele que não segue o padrão vive à margem da sociedade.

Entre os contos A Noiva inconsolável (Portugal) e A Bela e a Fera (Brasil) encontramos um brilhante e reflexivo confronto do tema apre- sentado. De um lado, uma mulher desfavorecida de beleza e do outro, uma mulher extremamente bonita e sedutora. Em meio a tais realidades, os textos literários abordam um aspecto em comum: a beleza, como fundadora de estigmas sociais, destinos e, sobretudo, identidades.

No primeiro conto, deparamo-nos com o árduo cotidiano de Joana, uma jovem que não corresponde aos padrões de beleza impostos pela sociedade. Dessa forma, é julgada incapaz de encontrar alguém deter- minado a cumprir o papel de esposo e amá-la. No dia em que, “final- mente”, um homem se interessa por Joana, ela é tratada como um produto que deve ser vendido enquanto almejado. Ou seja, a perso- nagem se vê pressionada pelo sistema social a se inclinar para o altar. Entretanto, antes do casamento, Joana é notificada por meio do jornal que seu noivo morreu afogado. Ela não derrama uma lágrima sequer. O fato é que Joana não precisa mais ser submetida às “leis” da época que obrigam a mulher a se casar, basta um “trapo preto” e um véu escuro, e só é preciso desempenhar um novo papel: o de noiva inconsolável.

Analisando bem, percebe-se nesse conto que a mulher é tratada como gênero deficitário, frágil e incompetente sem um homem. Além disso, é perceptível que a aparência da personagem lhe destinou uma vida infeliz, pois era encarada como uma carcaça dita “feiosa” e nada mais. E, ainda, se nos afastarmos da escrita e observarmos os cenários onde estão inseridos Joana e o seu noivo, percebemos que ela estava em casa – provavelmente limpando, fazendo comida, etc., enquanto ele,

após o trabalho, estava dando um mergulho com os amigos, ou melhor, “desfrutando a vida”, como pode-se observar de forma mais lúdica na

imagem a seguir que contrapõe o universo masculino ao feminino.

Figura 3 - Ensaios de gênero, 2012.

FONTE: HTTPS://ENSAIOSDEGENERO.WORDPRESS.COM/TAG/MULHER/.

Seguindo-se este raciocínio é como se a mulher estivesse desti- nada unicamente aos papéis de mãe de família, dona de casa e esposa, e somente o homem tivesse aptidão de ser líder e ter carreira sólida e profissional. Uma visão machista e estereotipada que inferioriza a mulher no que diz respeito a valores éticos, morais e intelectuais.

Já em A Bela e a Fera, encontra-se outra realidade: a protago- nista, Carla de Souza e Santos, uma mulher cuja beleza estonteante lhe proporcionou um casamento com um banqueiro. No conto, sua rotina imutável sofre rupturas após uma conversa inesperada com um men- digo, que a faz refletir sobre a vida e a maneira como, miseravelmente, somos julgados.

Normalmente, pessoas da classe da personagem não andam nas ruas, muito menos encontram pessoas que não estão em seu patamar, porém, por causa de um horário não calculado, Carla encontrou-se na calçada – admirando sua beleza e o dia – refletindo como aquele momento era único e a vida era boa. Entretanto, seus pensamentos foram interrompidos por um mendigo sem uma das pernas e com uma

enorme ferida à mostra e é nesse momento que o leitor, previamente, acha o sentido do título do conto: Carla, a bela e o mendigo, a fera.

Assustada com a abordagem repentina de alguém como aquele homem, a protagonista começa a questionar os seus comportamentos e a refletir sobre “injustiça social”, mas suas indagações são limitadas a pensamentos fúteis de alguém que não enxerga, ou não quer enxer- gar, seres humanos que passam fome e não podem ter o padrão de vida adotado por ela.

Nesse exato momento, pode-se analisar o sentido do título da trama. Uma mulher que escolhe viver pedindo esmola por atenção, em troca de um casamento que lhe proporciona status e conforto. O conto leva o leitor a imaginar que o casamento de Carla é uma espécie de vitrine, sendo ela apenas um “objeto decorativo” que serve para o marido mostrar em festas como um troféu bem esculturado.

Em meio a essa vida ilusória encoberta pelas mais caras maquia- gens e trajada com vestidos de luxo, Carla torna-se “A Fera”. Já o homem, o mendigo, tem que lidar com a dura realidade da vida, com suas limi- tações, mas mesmo assim sempre à procura de amor, transforma-se em “O Belo”.

O conto apresenta Carla como uma mulher linda e encantadora, porém, subjugada ao homem, tratada como insignificante, pois é ele quem faz suas “escolhas”, inclusive, de que frequente os salões de beleza, os shoppings e os bailes, é como se ela não tivesse voz no mundo e nem importância, sendo capaz de suportar traições e desprezos para, sim- plesmente, evitar escândalos e manter o sobrenome do esposo.

Após perceber que o mendigo ganha a vida através de sua “ferida”, que ele expõe para conseguir dinheiro e, consequentemente, sua sobre- vivência, a protagonista percebe que vive exatamente como ele, usando uma característica natural, a beleza, para sobreviver confortavelmente.

“A beleza pode ser de uma grande ameaça”, “A beleza assusta”, “Se eu não fosse tão bonita teria tido outro destino”, esses são os pensamen-

tos mais reveladores da personagem, que conduzem Carla a associar seu destino a um verdadeiro leilão, no qual “quem dá mais?” adquire o produto. Mas depois de toda reflexão e por um instante admitir que sua vida é uma farsa, volta para sua rotina sem mesmo saber o nome do homem da ferida.

Nesse instante, podemos conectar os dois contos e perceber que apesar de a beleza ser um instrumento que proporciona à mulher atin- gir as expectativas de uma sociedade patriarcal – casar e ter filhos – não é suficiente para garantir a sua felicidade. As duas protagonistas, mesmo com tantos contrastes, viviam infelizes e vestiam máscaras de satisfação para adequar-se à realidade e livrar-se de julgamentos. Aspecto muito bem representado no poema “Umas e Outras” de Chico Buarque (1969), que também contrapõe mulheres com belezas e desti- nos diferentes, porém ambas infelizes, como se pode observar a seguir:

[...] Mas toda santa madrugada Quando uma já sonhou com Deus E a outra, triste namorada Coitada, já deitou com os seus O acaso faz com que essas duas Que a sorte sempre separou Se cruzem pela mesma rua Olhando-se com a mesma dor Que dia! Cruzes, que vida comprida Pra que tanta vida pra gente desanimar.

Retornando aos contos, pode-se constatar a ideologia de que a mulher é incapaz de construir carreiras e é dependente da figura mas- culina. Vê-se, falsamente expresso, que sua felicidade, sua satisfação e seu direito individual não têm independência. Após analisar os dois contos literários, compreendem-se as suas mensagens, uma vez que as autoras armaram denúncias de maneira implícita, que permane-

cem atuais e universais e demonstram o quão relevante é refletir sobre essas questões.

Finalizando, o papel da beleza é impor status sociais, preconceitos

e prestígios. É dar ao indivíduo de elevado teor de “beleza”, a condi-

ção de se posicionar acima dos denominados “inferiores”, que devem correr atrás de seus objetivos e alcançá-los com seus próprios méritos.

4 CONCLUSÃO

A Literatura faz com que as pessoas exercitem a alteridade, uma vez que lhes proporciona enxergar melhor o mundo, o seu semelhante e a si mesmas. Portanto, contribui para a construção da cidadania e do pensamento crítico. Além disso, tem o papel devastador de mostrar a realidade por meio de personagens e enredos “fictícios”, que simboli- zam a vida e as pessoas.

A escrita de ambos os contos reflete a postura preconceituosa da sociedade em relação às mulheres, sociedade esta que não somente reproduz como também faz prevalecer rótulos sociais, incentivando as perpetuações de pensamentos retrógrados que permanecem arrai- gados no sistema cultural.

Por fim, os textos analisados mostram que é necessário enxergar- se a alma, pois, as mulheres são bem mais do que a aparência, do que vestem e do que bons resultados, antes de todas essas coisas, são seres humanos que têm essência e importância no mundo.

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A CANTIGA DE RODA E O