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2.4 QUALIDADE SOCIAL – AFINAL QUE QUALIDADE É ESTA?

2.4.1 Retrospecto Histórico

Em suma, a qualidade no campo educacional no Brasil, perpassa três fases:

De um ponto de vista histórico, na educação brasileira, três significados distintos de qualidade foram construídos e circularam simbólica e concretamente na sociedade, ainda que presentes nos diferentes momentos, um se sobressai e pauta o debate e a política educacional. Um primeiro, condicionado pela oferta limitada de oportunidades de escolarização; um segundo, relacionado à idéia de fluxo, definido como número de alunos que progridem ou não dentro de determinado sistema de ensino; e, finalmente, a idéia de qualidade associada à aferição de desempenho mediante testes em larga escala (OLIVEIRA, 2006b, p. 83).

Pode-se dizer que o primeiro indicador de qualidade foi condicionado pela oferta limitada. Isso significa que a noção inicial de qualidade com a qual a sociedade brasileira aprendeu a conviver foi aquela da escola cujo acesso era insuficiente para atender a todos, pois o ensino era organizado para atender aos interesses e expectativas de uma minoria privilegiada (BEISIEGEL, 1986). Portanto, inicialmente a definição de qualidade estava dada pela possibilidade ou impossibilidade de acesso.

As estatísticas educacionais brasileiras evidenciam, por exemplo, que na década de 1920 mais de 60% da população brasileira era de analfabetos (ARELARO, 1988).

A partir dessa oferta limitada, surgiu o critério de qualidade erigido para fazer frente à demanda por escolarização, deste modo, até a década de 1980, as buscas da sociedade pelo acesso à escola e a todos os bens sociais e econômicos que as oportunidades educacionais oferecem, bem como a satisfação dessas demandas pelo poder público, caracterizaram a ampliação quantitativa da escolarização. A demanda pela ampliação de vagas era muito mais forte do que a reflexão sobre a forma que deveria assumir o processo educativo e as condições necessárias para a oferta de um ensino de qualidade. Foi a incorporação quase completa de todos à etapa obrigatória de escolarização que fez emergir o problema da qualidade em uma configuração inteiramente nova (BEISIEGEL, 1986).

A partir dessa lógica da existência de um primeiro critério de qualidade condicionado pela oferta limitada, a política educacional erigida para fazer frente à demanda por escolarização era relativamente simples: bastava construir prédios escolares (OLIVEIRA, 2006b, p. 84).

Se por um lado, o primeiro indicador de qualidade incorporado na cultura escolar brasileira foi condicionado pela oferta limitada e um dos seus principais efeitos foi a política de expansão da rede escolar, por outro, a ampliação das oportunidades de escolarização da população gerou obstáculos relativos ao prosseguimento dos estudos desses novos usuários da escola pública, visto que não tinham as mesmas experiências culturais dos grupos que tinham acesso à escola anteriormente, e esta não se reestruturou para receber essa nova população, isto é, os obstáculos à democratização do ensino foram se transferindo do acesso para a permanência com sucesso no interior do sistema escolar (BEISIEGEL, 1986).

[...] ao se ampliar o acesso, visibiliza-se outra exclusão, a que se produz no interior do sistema escolar. Passávamos da exclusão da escola para a exclusão na escola. Os alunos chegavam ao sistema de ensino, lá permanecendo alguns anos, mas não concluíam qualquer etapa do seu processo de formação, em virtude de múltiplas reprovações seguidas de abandono (OLIVEIRA, 2006b, p. 39).

Destarte, um novo tipo de seletividade deu origem a outro conceito de qualidade, agora relacionado à ideia de fluxo, definido como número de alunos que progridem dentro de determinado sistema de ensino. Assim, no final dos anos de 1970 e nos anos de 1980, um segundo indicador de qualidade foi incorporado ao debate educacional no Brasil. Se a saída se mostrasse muito pequena em relação à entrada, a escola ou o sistema como um todo teria baixa qualidade. De acordo com dados do Ministério da educação, a cada 100 crianças que ingressavam na 1º série, 48 eram reprovadas e duas evadiam (MEC, 1998).

Frente a isto, a década de 1990 é marcada pela tendência de regularização do fluxo no ensino fundamental por meio da adoção de ciclos de escolarização, da promoção continuada e dos programas de aceleração da aprendizagem que foram difundidos a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB - Lei n. 9.394/96) (ARELARO, 1988).

Segundo Patto (1990, p. 23) “com a ampliação do acesso é que vai se observar com crescente preocupação os processos de ‘produção do fracasso escolar’ e a extensão da chamada ‘pedagogia da repetência’”. Por causa disso, são editadas políticas que proíbem a reprovação em determinados etapas, são as políticas de ciclos de aprendizagem.

A adoção de ciclos, da promoção automática e de programas de aceleração da aprendizagem incide exatamente na questão da falta de qualidade, evitando os mecanismos internos de seletividade escolar que consistiam basicamente na reprovação e na exclusão pela expulsão “contabilizada” como evasão. Todavia, pondera-se se essas políticas e programas surtem o efeito real de melhoria da qualidade de ensino. Haja vista que na verdade, o seu

grande impacto observa-se nos índices utilizados até então para medir a eficiência dos sistemas de ensino, não incidindo diretamente sobre a questão da qualidade (OLIVEIRA; ARAUJO, 2003).

Porquanto se o combate à reprovação com políticas de aprovação automática, ciclos e progressão continuada incide sobre os índices de “produtividade” dos sistemas, gera- se um novo problema, uma vez que esses mesmos índices deixam de ser uma medida adequada para aferir a qualidade. Pois, se existem políticas e programas que induzem a aprovação, a tarefa de aferir a qualidade num sistema com um índice de conclusão igual ou superior a 70% torna-se mais complexa (OLIVEIRA; ARAUJO, 2003).

[...] apesar da ampliação do acesso à etapa obrigatória de escolarização observada nas últimas décadas, o direito à educação tem sido mitigado pelas desigualdades tanto sociais quanto regionais, o que inviabiliza a efetivação dos dois outros princípios basilares da educação entendida como direito: a garantia de permanência na escola e com nível de qualidade equivalente para todos (OLIVEIRA; ARAUJO, 2005, p. 13).

Conforme enfatiza Silveira (2007, p. 50) “para garantir educação para todos16

, não basta apenas matricular os alunos nas escolas, é preciso haver uma escola com qualidade para todos, necessitando, portanto, mais recursos para a educação”.

No escopo de solucionar esta dificuldade, a educação brasileira incorpora um terceiro indicador de qualidade, que é a qualidade indicada pela capacidade cognitiva dos estudantes, aferida mediante testes padronizados em larga escala.

Embora esta forma de aferição da qualidade ainda encontre muita resistência entre os profissionais da educação, porque não faz parte da história e da cultura educacional brasileira pensar a qualidade enquanto medida.

Nesse terceiro indicador o mais importante já não é garantir acesso, permanência e sucesso – entendido como conclusão – como se defendia há pouco mais de duas décadas, mas sim proporcionar uma educação de qualidade, compreendendo que a mesma pode ser indicada pela capacidade cognitiva dos estudantes aferida mediante testes padronizados em larga

16 Expressão mais comumente utilizada a partir da conferência de Jomtien, realizada em março de 1990, na

Tailândia, onde delegações de vários países, entre eles o Brasil, reuniram-se e assumiram compromissos com as metas de satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem de crianças, jovens e adultos, elaborando um documento intitulado como: Declaração Mundial sobre Educação para Todos.

Após dez anos da realização da Conferência Mundial de Educação para Todos, em Jomtien, foi promovido em 2000, o Fórum Mundial sobre Educação de Dakar, onde foi reiterado o compromisso destes países em proporcionar Educação para Todos até 2015 (WESTPHAL, 2009).

escala, exemplificados nos moldes do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) e Prova Brasil.

Porém, há ressalvas em relação a esses indicadores de qualidade, haja vista não conseguirem captar o amplo conjunto de fatores intra e extraescolares que implicam a contração da qualidade educacional.

Ainda, por meios dos testes padronizados em larga escala, pode-se retirar do Estado a função de provedor da qualidade do ensino público e repassando para empresas terceirizadas a formulação de provas, seguindo as estratégias do capitalismo “de que o Estado deve ser o avaliador, o coordenador e não mais o executor”. A lógica demonstra que as avaliações externas estão “vinculada à qualidade, mas aqui no caso, uma qualidade que tem como parâmetro o mercado” (PERONI, 2008, p. 113).

Gentilli e Silva, ao referirem-se a tais situações, afirmam que as políticas em curso de delegar às empresas privadas a tarefa de salvar a escola básica onde trafegam recursos públicos são subterfúgio e, portanto, estratégias antidemocráticas. E continuam:

Empresas devem pagar os impostos que lhe cabem. Ao Estado compete gerir democraticamente os recursos. [Além disso], o volume fantástico de recursos públicos repassados a empresas, acrescidos das isenções, em nome de programas educativos são uma prática perversa de dilapidar o fundo público sem avaliação e controle pela sociedade organizada (1997, p. 81).

Sobre a ideia de avaliação nestes moldes, Christian Laval (2004, p. 211) aborda que:

Esse vasto movimento de avaliação [...] é inseparável da subordinação crescente da escola aos imperativos econômicos. Ela acompanha a obrigação de resultados conhecida por se impor tanto à escola como a toda organização produtora de serviços. Nisso, ela participa das reformas centradas na competitividade visando a fixar e elevar os níveis escolares esperados.

Este mesmo autor mostra que uma gestão pautada no resultado supõe a avaliação como uma técnica neutra, sendo guiada pelo princípio da eficiência. Essas políticas, frequentemente estimuladas pelos governos, são iniciativas que se orientam por uma visão interna da escola. Tomada como um microssistema educacional, a escola é responsabilizada pela construção do sucesso escolar, cabendo ao poder público a aferição da produtividade, por meio de aplicação de provas de rendimento aos alunos (LAVAL, 2004). Este encaminhamento, ao mesmo tempo em que se revela estimulador da competição entre as

escolas, responsabilizando-as, individualmente, pela qualidade do ensino e resituando o compromisso do poder público com seus deveres, é expressão do campo educacional da defesa do Estado Mínimo17, em nome da busca de maior eficiência e produtividade (SOUSA,

1997). E ainda, “gerir o sistema público de educação de acordo com a lógica da economia de mercado tende a promover, não a sua democratização, mas o seu desmonte” (SOUSA, 1997, p. 81).

Assim, após este breve relato histórico do entendimento do conceito de qualidade no Brasil, efetuado com base na tese de livre docência de Romualdo Portela de Oliveira (2006b), é importante colocar que o intuito deste trabalho, é apenas delinear a reflexão para que se compreenda a qualidade da educação, sobretudo trazendo os aportes teóricos relevantes ao tema com a intenção de contribuir para qualificação da discussão sobre a qualidade educacional ideal, ainda que de maneira inicial.

Passa-se então a atual intensificação das discussões em torno da qualidade educacional, visto que muitas são as respostas que têm sido dadas à pergunta: Qual a qualidade ideal para educação? Algumas delas têm significação semelhante, outras variam em pequenos detalhes, inúmeras apresentam diferenças substanciais. Enunciado de várias formas, o conceito de qualidade na área educacional, de maneira geral, abarca as estruturas, os processos e os resultados educacionais.

Ao conjecturar sobre o tema qualidade, pode-se observar e assinalar que, este é um tema complexo, tanto em relação à definição do conceito quanto à qualidade como prática.

Neste aspecto, Dourado, Oliveira e Santos (2007), Fonseca M. (2009), Nardi e Schneider (2012) demonstram que a superficialidade de diversas produções e múltiplos pontos de vista, nem sempre explícitos, contribuem para a imprecisão do conceito. Enguita (2002) chama a atenção para o fato de que a difusão desta expressão nunca é neutra e, por vezes, chega a ocultar seu verdadeiro significado pela via de uma perspectiva mobilizadora que pode até aglutinar forças políticas opostas em torno de si. Aponta, ainda, para as diferentes faces da qualidade nas políticas públicas educacionais, indicando a necessidade de maior aprofundamento sobre os processos de determinação dos fatores que atribuiriam qualidade à educação.

Tal análise possibilita a compreensão de que a noção de qualidade da educação está intrinsecamente relacionada à concepção de educação que se deseja consolidar, assim

como à função social que esta ocupa na sociedade. Em outras palavras, é possível reconhecer a educação escolar como uma prática social que sempre esteve e estará vinculada a processos que reúnem conflitos de interesses, contradições e disputas.

Dessa forma, pensar sobre uma determinada concepção de qualidade da educação requer que esta seja relacionada ao contexto sócio – político – econômico-cultural no qual está inserida, a fim de melhor compreender o papel exercido por ela neste mesmo contexto. Isto porque a educação sempre reflete princípios pedagógicos baseados em uma dada filosofia que, por sua vez, expressa uma concepção de homem e de sociedade e estes princípios se realizam e se difundem por meio de diferentes instituições, como família, a igreja, a escola, entre outros (FREITAG, 1986).

Por esta razão, é imprescindível delinear a definição, ainda que de maneira mais geral, do conceito do termo qualidade, elucidando seu significado original e a forma como ele vem sendo empregado nas políticas educacionais brasileiras.

Inicia-se pelos estudos de Bueno (1967, p. 3276) que elucidam a qualidade como uma palavra proveniente do latim, que significa “propriedade específica, própria de um ser vivo ou inanimado; aspecto determinado de uma realidade; maneira, modo, atributo, condição social”.

Cury (2010) assinala que, pela origem greco‐latina, qualidade é um termo polissêmico, complexo e sem uniformidade característica, dificultando a sua compreensão, sua utilização em textos e na realidade humana concreta. O mesmo autor destaca a dimensão filosófica do conceito, expondo que já em Aristóteles, a qualidade significa um modo de ser da coisa que os atinge neles mesmos ou que os acrescenta, supondo, assim, um sujeito e certa substância da qual fazem parte tanto quantidade como a qualidade, ou seja, uma grandeza mensurável e uma determinação que confere ou não ao modo do ser.

Da análise do pensamento marxista, compreende-se que quantidade e qualidade constituem a mesma realidade. Marx, em sua obra explicita a qualidade relacionada com a mercadoria e seu valor de uso, sendo a qualidade o que define a mercadoria. Além disso, distingue uma de outra no seu valor de uso e, consequentemente, do seu valor de troca (MARX, 1998).

“A utilidade é então a mais importante e indispensável qualidade da mercadoria. A utilidade, que se realiza no uso ou no consumo, confere à mercadoria o seu valor de uso” (MARX, 1998, p. 13).

De acordo com esta perspectiva, na sociedade capitalista, os valores de uso se esvaem na mercadoria, pois se criam utilidades desnecessárias, fetichizando-as e tornando o ser humano escravo delas (MARX, 1998).

Na obra A Ideologia Alemã (1979), é robustecida a ideia de qualidade e quantidade, como componente uma da outra, na qual uma transformação depende do desenvolvimento de ambas, que vão ocorrendo historicamente. Embora Marx não tenha se dedicado de maneira direta para a definição do significado de qualidade, foi Engels que se aprofundou para dar sentido materialista às Leis da dialética de Hegel e por consequência, evidenciou com mais precisão a lei da passagem da quantidade para a qualidade.

Leandro Konder (1981) com referência em Engels descreve que a modificação do todo só se realiza, de fato, após um acúmulo de mudanças nas partes que o compõem, com alterações setoriais quantitativas, até que se alcança um ponto crítico que marca a transformação qualitativa da totalidade. Ressaltando que as coisas não mudam sempre no mesmo ritmo; o processo de transformação pela qual elas existem passa por períodos lentos (nos quais se sucedem pequenas alterações quantitativas) e por períodos de aceleração (que precipitam alterações qualitativas, isto é, “saltos”, modificações radicais).

Cury, também, reafirma que: “Sucessivas mudanças [...] na quantidade [...] produziriam nele um salto de qualidade, propiciando-lhe um outro modo de ser que subassume e supera o anterior” (CURY, 2010, p. 16).

Para Gramsci, “na filosofia da práxis, a qualidade está sempre ligada à quantidade; aliás, talvez resida nessa ligação a sua parte mais original e fecunda” (GRAMSCI, 2004, p. 164).

Por fim, em uma perspectiva materialista dialética, qualidade supõe quantidade e vice-versa, na qual um modo de ser é relativamente superior, enriquecido, representando um salto que diferencia e agrega o modo de ser primeiro.

Apontado o significado conceitual do termo qualidade torna-se indispensável, para apreendê-lo na sua totalidade, compreender que ele é produto da história, conforme citado alhures. E, assim sendo, traz consigo significações que somente foram possíveis a partir de uma práxis, que foram se desenvolvendo gradativamente por contradições, até desempenhar a função ideológica dicotômica que traz a sociedade contemporânea.

Para tanto, na tentativa de refletir sobre a questão no contexto de elaboração de políticas públicas educacionais no Brasil, destaca-se duas maneiras de arrazoar a qualidade:

Qualidade Total: vinculada aos interesses capitalistas e ao (neo)liberalismo, que tem a escola como uma empresa e que apresenta a lógica do capital como o melhor, e único,

fim para história da humanidade e, ainda, utilizando-se da escola como ferramenta de conformação dos sujeitos a ordem e continuar a se reproduzir.

Qualidade Social: relacionada aos interesses e necessidades da classe trabalhadora, com perspectiva democrática, que vê a escola como lócus de formação humana, aliando apreensão do conhecimento científico e participação dos envolvidos, propiciando condições aos sujeitos de ter clareza sobre a realidade e seus determinantes de modo a propiciar ferramentas para buscar transformações na sociedade vigente.

Nessa perspectiva, pretende-se analisar as duas concepções de qualidade à luz da história, pois, segundo Marx, “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem e sim sob circunstâncias que encontram, legadas e transmitidas pelo passado” (apud MARTINS, 2008). Isto significa que estes dois períodos distintos (qualidade total e posteriormente qualidade social) devem ser observados, não como momentos estanques no tempo, mas como continuidades de um período histórico, iniciado no século XX, em que o capitalismo passa por uma reestruturação e traz reflexos significativos para todos os setores da sociedade.