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3 RISCO E URBANISMO

No documento DIREITO DOS DESASTRES (páginas 166-169)

O fenômeno urbano ocorreu em momento bem anterior ao desenvolvimento da industrialização, com o surgimento das primeiras cidades há cerca de 5.500 anos, nos vales dos rios Nilo, Tigre-Eufrates, Indo Amarelo e Azul, onde habitavam antigas civilizações. A proximidade dos rios é consequência da necessidade de uma fonte de água, elemento indispensável à vida das populações (CARMONA, 2015).

Durante a idade média as cidades passaram por um ciclo de despovoamento, com a adoção de um modelo feudal, baseado na agricultura de subsistência e no trabalho servil, época em que o desenho urbano era claramente delimitado por muralhas edificadas em torno de castelos, igrejas, abadias, praças e vielas. Com o fim da idade média a população urbana volta a crescer e as cidades a expandirem e, a partir de então, são propiciadas as condições necessárias para a era industrial, com o aumento da mão de obra e o constante fluxo de migrantes da população rural para as cidades (CARMONA, 2015)

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O impacto da revolução industrial gerada a partir da experiência inglesa foi sentido no mundo e suas consequências ainda não plenamente avaliadas. Surgiram novas técnicas produtivas e novos hábitos de vida que propiciaram o crescimento da produção industrial e elevaram o padrão de consumo, criando uma equação na qual o conforto do homem moderno tem como fonte a destruição do meio ambiente (MAZZILLO, 1981).

Devido ao progresso econômico e social diversas indústrias acabaram instalando-se ao redor das cidades, nas quais havia disponibilidade de mão de obra, transporte e recursos financeiros, aumentando o risco na zona urbana e tornando a cidade mais poluída. Apesar de ainda não existir naquela época o fenômeno da poluição acumulada em grandes magnitudes, Londres já enfrentava problemas urbanos e ambientais, como, por exemplo, o despejo dos esgotos em via pública (MAZZILLO, 1981).

Com o deslocamento das indústrias de risco para os países em desenvolvimento, em virtude da disponibilidade de mão de obra barata, os riscos extremos são transferidos para regiões de pobreza nas periferias das cidades de

nações subdesenvolvidas. Esse fato cria um ponto de conflito entre a população afetada pelo risco da industrialização e aqueles que transformam esses riscos em oportunidades de mercado e lucro (BECK, 2011). Isso sem falar na queda dos preços dos terrenos adjacentes a usinas nucleares ou fábricas poluentes, uma vez que o perigo de acidentes químicos, tóxicos ou nucleares desvaloriza, ou até desapropria, os direitos de propriedade.

A ausência de soberania do indivíduo e sentimento de arbitrariedade resulta em um paradoxo sintetizado por Hermitte (2005): o indivíduo não pode fugir aos efeitos da sociedade de risco, da qual não participa do processo decisório. Varella (2005) utiliza a denominação governo dos riscos para caracterizar a ação pública ou privada voltada à gestão de riscos, destacando a existência de diferentes percepções individuais e do próprio governo sobre o risco dentro de uma sociedade. Na seara urbanística, a percepção do risco e consciência pública também estão suscetíveis a variações, influenciada sobremaneira pelos sistemas peritos.

Segundo Giddens (1991), sistemas peritos correspondem a “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”. Esses sistemas influenciam as relações de confiança das pessoas nos processos realizados de maneira contínua, pois oferecem garantias às expectativas dos indivíduos, e servem de instrumento de controle acerca da produção do conhecimento técnico.

Os interesses das empresas construtoras que exploram atividades de alto impacto ao meio ambiente e à saúde humana buscam elevar os critérios de cientificidade e reduzir ao mínimo o círculo dos riscos conhecidos, com a homologação ou até o fomento estatal. Como sintetiza Giddens (1991) “os riscos são na verdade criados por formas normativamente sancionadas de atividades”. Por outro lado, a definição de um limiar de precaução não pode ser tarefa relegada a sistemas peritos estruturados e organizados por corporações voltadas unicamente para seus interesses econômicos.

A natureza socializada, para Giddens (1991), consiste na modificação da relação entre seres humanos e o ambiente físico, com a transformação da natureza por sistemas de conhecimentos humanos. O autor elenca sérios riscos ligados à

natureza socializada: a radiação a partir de acidentes graves em usinas nucleares ou do lixo atômico; a poluição química nos mares suficiente para destruir o plâncton que renova uma boa parte do oxigênio na atmosfera; um 'efeito estufa' derivando dos poluentes atmosféricos que atacam a camada de ozônio, derretendo parte das calotas polares e inundando vastas áreas; a destruição de grandes áreas de floresta tropical que são uma fonte básica de oxigênio renovável; e a exaustão de milhões de acres de terra fértil como resultado do uso intensivo de fertilizantes artificiais.

A geração de todas essas externalidades é uma componente do movimento de apropriação da propriedade pública e dos bens de uso comum do povo (STEIGLEDER, 2017), revelando a importância do Direito Urbanístico para lidar com a modernidade e os riscos criados. Nesse contexto, o urbanismo desponta como importante técnica de criação, desenvolvimento e reforma das cidades. Dentre as diversas técnicas urbanísticas desenvolvidas para lidar com as implicações da urbanização ao longo dos séculos XIX e XX, serão abordadas três delas.

A primeira dessas técnicas urbanísticas recebeu o nome de cidade-jardim, de acordo com o teorizador inglês e autor dessa concepção urbana, Ebenezer Howard, em obra lançada no ano de 1898 com o título “Tomorrow: A Peaceful Path to Real Reform” e reimpressa quatro anos depois com novo título: “Garden Cities of Tomorrow”. O autor busca harmonizar o ambiente urbano com o rústico e interligar as construções com jardins, conectando a vida urbana com a do campo (CORREIA, 2001)

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Outra técnica urbanística desenvolvida tendo em consideração a necessidade de contemplar um planejamento conjunto para os territórios urbano e rural foi designada regionalismo urbanístico. Os dois princípios sobre os quais se fundamenta essa concepção foram idealizados pelo escocês Patrick Geddes e seu discípulo americano Lewis Mumford e podem ser assim resumidos: 1) “é impossível controlar eficazmente o crescimento das cidades e o seu impacto sobre o território circundante se se tomar em consideração apenas o espaço estritamente urbano”; e 2) “a vida das cidades não se confina à área urbana, antes se estende a todo o território de um município, de uma região e até de um país inteiro”. Para essa corrente, devem ser tomados em conta os fatores econômicos, culturais, históricos e

geográficos que influenciam a cidade. O Plano de Nova Iorque de 1929 teria sido o primeiro a realizar essa ideia e o “Town and Country Planning Act” inglês de 1932 a consagrou de forma mais explícita (CORREIA, 2001).

A terceira e mais recente técnica, cujo surgimento se deu na década de 80 do século passado, recebeu a denominação New Urbanism e as ideias do movimento foram discutidas no Congresso do Novo Urbanismo em 1993, que resultou em um manifesto conhecido como Carta do Novo Urbanismo. Teve início na década de 1980 e inspiração nos padrões da década de 1930, apoiada no planejamento regional para áreas livres e a aproximação entre residências e trabalho dos habitantes, reduzindo o tráfego e aumentando a oferta de trabalho (CARMONA, 2015).

Apesar da existência de técnicas e estudos teóricos sobre urbanização sustentável, no Brasil, a ausência de um arcabouço jurídico marcou todo o período de crescimento rápido das cidades brasileiras no século XX, especialmente na segunda metade, gerando um descompasso entre a ordem jurídica e os processos socioeconômicos e ambientais. O paradigma civilista liberal clássico revelou-se insuficiente para lidar com todos os espectros do fenômeno multidimensional de mudanças territoriais e transformação de um país predominantemente rural-agrário em urbano-industrial (FERNANDES, 2005).

No documento DIREITO DOS DESASTRES (páginas 166-169)