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99 sação, que atua nas profundezas da alma Essa necessidade arcaica pode ser substituída e superada por uma ou-

No documento Ordens Do Amor - Bert Hellinger - 30-4-2013 (páginas 100-102)

tra compensação, adequada a uma ordem do amor. Quando as pessoas que cederam seu lugar são consciente- mente respeitadas e honradas, não se precisa fazer nada mais. Logo que se faz algo adicional, por exemplo, no intuito de expiar, isso anula o reconhecimento. O respeito é a única coisa que importa e tudo o mais é supérfluo. Por isso, cada um pode realizar isso imediatamente por si mesmo.

FRANK: Trata-se portanto apenas de reconhecimento?

HELLINGER: Correto.

KARL: Esta é a pergunta que eu já trazia anteriormente. Quando a pessoa que se sente como vítima presta essa homenagem, isso basta. Não precisa fazer com que outra pessoa o faça também.

HELLINGER: Para ele, basta que ele o faça. Deve portanto reconhecer que essa primeira mulher cedeu seu lugar à mãe de sua mãe e, portanto, também à sua mãe.

ANNE: É importante o lado em que a desgraça acontece, se materno ou paterno?

HELLINGER: Não, isso não importa. Não existe diferença.

(para o grupo): Sobre isso vou contar-lhes uma fábula, dessas que simultaneamente encobrem e revelam. Ela nos ilude com uma imagem enganosa, como se ajudasse a realização de desejos. Assim, talvez nos desvie para ações que não nos conduzem à felicidade desejada mas à infelicidade temida.

Onde essas imagens atuam, é útil contar esta fábula com sobriedade, para que também aqui os desejos conhe- çam limites e as ações arrogantes fracassem. Com isso, baixamos do céu para a terra e reconhecemos nossa medida.

O engano

Um velho rei estava para morrer. Preocupado com o futuro de seu reino, chamou seu servidor mais fiel, cha- mado João, confiou-lhe um segredo e pediu- lhe: “Cuide de meu filho, pois ainda é inexperiente, e sirva-o tão fielmente como a mim mesmo! ”

O fiel João sentiu-se importante — pois era apenas um criado — e, sem pressentir nada de mau, ergueu a mão em juramento e disse: “Guardarei teu segredo e servirei fielmente a teu filho como a ti mesmo, mesmo que me custe a vida.”

Depois que o rei morreu e terminou o ritual do luto, o fiel João conduziu o jovem rei através do castelo, abriu- lhe todas as salas e mostrou-lhe os tesouros do reino. Uma das portas, porém, ele passou adiante e quando o rei, impaciente, quis que também fosse aberta, João preveniu-o de que seu pai o tinha proibido de abri-la. Quando o rei, teimosamente, ameaçou arrombá-la com as próprias mãos, se fosse preciso, o fiel João cedeu, com o coração pesado. Abriu também essa porta mas antecipou-se rapidamente e postou-se diante de um qua- dro, para que o rei não o visse. Isso, porém, de nada adiantou. O rei o empurrou para o lado, olhou o quadro e desmaiou. Era um retrato da Princesa do Teto Dourado.

Quando o rei voltou a si, continuou fora de seu juízo e só pensava como poderia obter a mão daquela princesa. Mas cortejá-la abertamente seria excessivamente arriscado, pois soubera que o pai dela tinha recusado todos os pretendentes. Assim, ele e o fiel João tramaram um ardil.

Como tinham ouvido que o coração da Princesa do Teto Dourado era apegado a qualquer objeto de ouro, pe- garam no tesouro real as joias e os talheres de ouro, colocaram tudo num navio e navegaram pelo oceano até chegarem diante da cidade onde a princesa residia. Ali o fiel João tomou alguns objetos de ouro e clandesti- namente os colocou à venda diante do castelo. Quando a princesa o soube, veio olhar todas as joias. O fiel Jo- ão contou-lhe que possuíam muitas mais no navio e persuadiu-a a embarcar nele, em sua companhia. O rei a recebeu, disfarçado em roupas de comerciante, e achou-a ainda muito mais bela em pessoa do que no retrato que vira. Levou-a ao interior do navio e mostrou-lhe os tesouros de ouro.

Nesse meio-tempo, as âncoras foram levantadas e as velas abertas e o navio singrou para o mar. A princesa notou isso e ficou perturbada. Mas percebeu a trama e, como ela vinha ao encontro de seus secretos desejos, entrou no jogo.

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Quando já tinha examinado tudo, olhou para fora, viu o navio já longe do cais e pareceu assustada. Mas o rei tomou-a pela mão e disse: “Não tenhas medo! Não sou um comerciante mas um rei e amo-te tanto que te peço que sejas minha mulher." Ela o olhou e achou simpático, pegou o ouro e disse sim.

Entretanto, o fiel João, sentado ao timão, assobiava uma melodia, muito feliz pelo bom êxito de seu ardil. Nis- to, três corvos chegaram voando, pousaram num mastro e começaram a conversar entre si.

O primeiro corvo disse: “O rei ainda está longe de ter a princesa. Pois logo que desembarcarem, galopará ao seu encontro um cavalo cor de fogo e ele o montará para cavalgar até o castelo. Porém o cavalo sumirá com ele e o rei jamais será visto de novo.”

O segundo corvo disse: “A não ser que alguém se antecipe, pegue a arma que está em seu coldre e mate o ca- valo.”

E o terceiro corvo disse: “Mas se alguém souber e revelar, será transformado em pedra, do dedo do pé até o joelho.”

O segundo corvo disse: “Mesmo que o primeiro caso acabe bem, o rei ainda não terá a princesa. Pois, quando ele chegar a seu castelo, um traje de festa estará preparado e o rei irá até lá para vesti-lo. Mas o traje o quei- mará até os ossos, como piche e enxofre." O terceiro corvo disse: “A não ser que alguém chegue antes dele, pegue o traje com luvas e o lance ao fogo.”

E o primeiro corvo disse: “Mas se alguém souber e revelar, será transformado em pedra, do joelho até o cora- ção.”

O terceiro corvo disse: “E mesmo que o segundo caso acabe bem, o rei ainda não terá a princesa. Pois, quan-

do a dança nupcial começar, a rainha ficará pálida e desabará no chão como morta. E, se alguém não acudir imediatamente, abrir seu corpete, tirar para fora seu seio direito e sugar dele três gotas de sangue e tomar a cuspi-las, ela morrerá.”

E o segundo corvo disse: “Mas se alguém souber e revelar, será transformado em pedra, do coração até o to- po da cabeça.”

Então o fiel João percebeu que o assunto era grave. Fiel a seu juramento, propôs-se fazer tudo o que pudesse para salvar o rei e a rainha, mesmo que lhe custasse a vida.

Quando desembarcaram em terra, aconteceu exatamente como os corvos haviam predito. Um cavalo cor de fogo aproximou-se a galope. Antes que o rei pudesse montá-lo, o fiel João se adiantou, pegou a espingarda e matou o cavalo. Então os outros criados disseram: “Como ele se atreve1 O rei queria cavalgar o belo cavalo até o castelo, mas ele o matou. Não se pode tolerar isto! ” Mas o rei disse: “Ele é meu fiel João. Quem sabe qual foi o proveito disso.”

Quando chegaram ao castelo, lá estava o traje festivo e, antes que o rei pudesse aproximar-se e vesti-lo, o fiel João o pegou com luvas e atirou ao fogo. Então os outros criados disseram: “Como se atreve ele! Agora o rei queria vestir o belo traje para as núpcias, mas ele o atirou ao fogo diante de seus olhos. Isso não se pode tole- rar!" Mas o rei disse: “Ele é meu fiel João. Quem sabe qual foi o proveito disso."

Então foi celebrado o casamento. Quando começou a dança das núpcias, a rainha ficou pálida e desabou no chão, como morta. Mas o fiel João apareceu imediatamente ao seu lado e, antes que o rei ousasse fazer qual- quer coisa, abriu o corpete da rainha, tirou para fora seu seio direito, sugou dele três gotas de sangue e as cuspiu. Então abriram-se os olhos da princesa e ela ficou curada.

O rei, porém, ficou envergonhado. Ao ouvir os criados censurarem que desta vez era realmente demais e, se o rei deixasse passar mais essa, perderia sua reputação, convocou o tribunal e condenou seu criado à morte.

O fiel João, porém, quando era conduzido ao cadafalso, ponderou consigo mesmo se deveria revelar o que os

corvos tinham contado. Pois de qualquer maneira iria morrer: se não o revelasse, morreria na forca; se reve- lasse, se converteria em pedra. Mas então resolveu revelar, pois disse a si mesmo: “Talvez a verdade os liber- te.”

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tou, diante de todo o povo, por que tinha feito o que parecia tão mau. Logo que terminou, caiu e foi transfor- mado numa pedra. Assim morreu.

Todo o povo gritou de dor e orei e a rainha voltaram para o castelo e se retiraram para seus aposentos. Lá a rainha olhou para o rei e disse: “Também ouvi os corvos mas nada disse, por medo de me transformar em pe- dra.” O rei, porém, colocou-lhe um dedo diante da boca e lhe sussurrou: “Eu também os ouvi! ”

Este ainda não é o fim da história. O rei não ousou enterrar o fiel João transformado em pedra, e assim o co- locou, como um monumento, diante de seu castelo. Quando passava diante dele, suspirava e dizia: “Ah, meu fiel João!” Mas logo se ocupou com outros pensamentos, pois a rainha engravidou e no ano seguinte deu à luz gêmeos, dois lindos meninos.

Quando os dois meninos tinham três anos, o rei não encontrava paz e disse à sua mulher: “Temos de fazer al- guma coisa para ressuscitar o fiel João. Conseguiremos isso se sacrificarmos a coisa mais querida que temos.

” Então a rainha se assustou e disse: “Mas o mais querido são nossos filhos! ” — “Sim”, disse o rei.

Na manhã seguinte tomou uma espada, cortou as cabeças de seus filhos e derramou o sangue deles sobre o monumento do fiel João, na esperança de que ele ressuscitasse. Mas ele continuou transformado em pedra. Então a rainha soltou um grito e disse: “Isto é o fim!” Retirou-se para seus aposentos, juntou suas coisas e foi- se embora para sua terra. O rei, porém, dirigiu-se ao túmulo de sua mãe e lá chorou por muito tempo.

Quem agora for tentado a reler esta história tal como nos foi transmitida, encontrará nela, se a ler com atenção, o mesmo que ouviu aqui. Mas, caso tema a visão nua e crua de sua própria verdade, lá encontrará ao mesmo tempo a fábula propriamente dita que transforma para ele o terrível em algo ainda suportável ao adicionar-lhe algo de belo, conjurando com uma ilusória esperança o seu medo de que o céu esteja vazio.

No documento Ordens Do Amor - Bert Hellinger - 30-4-2013 (páginas 100-102)