• Nenhum resultado encontrado

Para Castel, ocorre a emergência de uma nova função do Estado, de uma nova forma de direito e de concepção de propriedade, instaurando-se o seguro obrigatório como uma revolução tranquila na condição dos assalariados. A mutualidade1 traz um germe de organização democrática, pressupondo um vínculo social decorrente de relações que independem de uma sujeição moral e que são diferentes das trocas comandadas pelas leis do mercado; é o princípio da solidariedade que une os membros de uma mutualidade (CASTEL, 2009).

O seguro instaura, de acordo com Castel (2009), a possibilidade de pertencimento social para as populações que a industrialização havia empurrado para a margem, deslocando as proteções ao mesmo tempo em que as despersonaliza. Esse autor o compreende como uma tecnologia que promove a seguridade sem atentar contra a propriedade e sem tocar nas relações de produção – constituindo-se, entretanto, em uma estrutura complexa que depende do equilíbrio, em constante transformação, de interesses divergentes cujo árbitro deve ser o Estado – e que mobiliza uma solidariedade e endossa o pertencimento a um coletivo, configurando uma relação de proteção social que une o indivíduo a um coletivo abstrato.

A seguridade social, constituída a partir do pressuposto da mutualidade, instaura, segundo o mesmo autor, a proteção da condição de assalariado e destina-se a garantir os trabalhadores e suas famílias contra os riscos de toda natureza, que possam suprimir ou reduzir sua capacidade de ganho, de geração de renda para a subsistência. A tecnologia dos seguros recompõe a esfera do direito e o risco passa a ser coberto pelo fato de se estar assegurado numa participação em grupo, na medida em que se possa continuar fora da propriedade privada sem estar privado da seguridade. A seguridade social procede da transformação de propriedade pela mediação do trabalho e sob a égide do Estado, estando a seguridade e o trabalho ligados substancialmente em uma sociedade que se reorganiza em torno da condição de assalariado2. O seguro obrigatório constitui-se como uma aceitação do caráter irreversível de estratificação social que a sociedade industrial acarreta e busca trazer a

1

Trata-se aqui da Europa Ocidental, mais especificamente das realidades francesa e inglesa, estudadas com maior profundidade por Castel (2009), mas acreditando-se que os princípios instaurados pela mutualidade podem ser pensados também para a conformação do seguro obrigatório e da seguridade social no Brasil.

2

A chamada sociedade salarial é descrita por Castel (2009) a partir da realidade francesa e constituiu-se mais expressivamente a partir da década de 1950, carregando, consigo, a dissolução da alternativa revolucionária e a redistribuição da conflitualidade social conforme um modelo diferente do da sociedade de classes.

estabilização do status da classe operária e conferir-lhe dignidade, preservando-a da destituição social em situações fora do trabalho, definidas negativamente, como a doença, o acidente e a velhice improdutiva. O mesmo autor coloca, ainda, que as seguridades podem ser enganosas se se apoiarem exclusivamente no crescimento, visto que desapareceriam com uma mudança na conjuntura e não haveria, dessa forma, uma garantia legal (CASTEL, 2009).

De acordo com Teixeira (1985), as políticas sociais tratam dos planos, programas e medidas necessários ao reconhecimento, implementação, exercício e gozo dos direitos sociais em uma dada sociedade como incluídos na condição de cidadania, gerando uma pauta de direitos e deveres entre aqueles aos quais se atribui a condição de cidadãos.

Para Fleury (1994), por um lado, a cidadania é condição da consolidação das desigualdades de classe, remetendo os requisitos de igualdade a um plano formal que impede a problematização das desigualdades existentes, mas que, por outro, deve ser vista como um avanço na luta das classes oprimidas em relação à situação anteriormente existente, de total exclusão do servo e do escravo da comunidade política.

Segundo Lopes (1999), as políticas sociais devem participar da construção de sistemas de amparo, externos ao mercado, nos quais os proprietários momentaneamente ou terminantemente despossuídos do poder de venda de sua força de trabalho possam se abrigar de forma temporária, para tratamento de saúde e/ou reciclagem profissional, que os reabilitem a voltar a atuar no mercado, ou de forma permanente, como é o caso de aposentadoria por idade ou invalidez.

Na América Latina, conforme Fleury (1994), o modelo organizador da seguridade social tem preservado a inserção ocupacional como o critério para vinculação ao sistema, tendo como mecanismo básico de financiamento a contribuição salarial, o que gera a exclusão de parcela significativa da população economicamente ativa, ou seja, aquela que exerce atividades no mercado informal de trabalho.

A Convenção № 102/1952 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), caracteriza a seguridade social como sistema de:

Proteção social que a sociedade proporciona a seus membros, mediante uma série de medidas públicas contra as privações econômicas e sociais que, de outra maneira provocariam desaparecimento ou forte redução dos seus rendimentos em consequência de enfermidade, maternidade, acidente de trabalho, enfermidade profissional, emprego, invalidez, velhice e morte, bem como de assistência médica e de apoio à família com filhos (OIT, 1952, s/p).

cobertura social no continente latino-americano, constitui-se em um sistema que prevê, segundo Fleury (1994), o desenvolvimento de políticas sociais e inscreve-se no interior de um Estado Capitalista, tratando-se de um campo de processos estratégicos onde se entrecruzam núcleos e redes de poder que, ao mesmo tempo, articulam-se e contradizem-se.

A Constituição Federal de 1988 define a seguridade social como um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (BRASIL, 1988). Silva (2004) aponta como um dos avanços da Constituição Federal de 1988, a inclusão da assistência social nos direitos sociais que constituem a cidadania, compondo, com a saúde e a previdência, o sistema de seguridade social.

Para Boschetti (2003), a seguridade social não foi implementada conforme o previsto na referida Constituição, tendo as sucessivas reformas do Estado e, sobretudo, da previdência social, implementadas ao longo da década de 1990, contribuído para descaracterizar a seguridade enquanto sistema de proteção social, favorecendo a fragmentação das políticas sociais que a integram - previdência, saúde e assistência – e abalando a possibilidade de sua consolidação enquanto propriedade social.

De acordo com esse mesmo autor, a seguridade social brasileira raramente é tratada ou analisada empiricamente na sua totalidade e a maioria das produções teórico-acadêmicas sobre a temática, e mesmo os planos e relatórios governamentais, restringem-na ao seguro previdenciário, ou analisam cada uma das políticas que a compõem de forma isolada e autônoma, tentando relacioná-las a uma suposta seguridade que está longe de materializar-se efetivamente no Brasil. O autor considera que pelo menos três elementos estão presentes na constituição da seguridade social: seguros, assistência médica e auxílios assistenciais, mesmo que os termos possam ser diferentes em cada país. Afirma ainda que sua precisão conceitual requer a superação das análises fragmentadas das políticas que a constituem e que a compreensão de suas propriedades internas e de seu significado na conformação do Estado Social pressupõe a investigação dos elementos que definem o caráter dos direitos, bem como o tipo de financiamento e a sua forma de organização (BOSCHETTI, 2003).

Ao tratar da seguridade social, Silva (2004) assinala que se a questão central a ser considerada for a ampliação da cobertura e a reversão da desigualdade, prevalecerá o princípio da seguridade universal, cuja aplicação prática depende do mercado – retomada do

crescimento econômico, geração de empregos, filiação à previdência, aumento da arrecadação e garantia de cobertura –, porém não se deve subordinar a ele.

Segundo o mesmo autor,

A seguridade social não pode sucumbir às pressões em favor da liberdade do mercado em face dos constrangimentos – para este último – de ter que financiar e manter a seguridade social, especialmente em seu elenco de benefícios “não contributivos”, pelo que representam como mecanismos de transferência de renda para os mais pobres. Contributivos ou fiscais, os recursos constituem parcela da riqueza social, cuja gestão e distribuição deve responder a critérios de solidariedade, de universalidade e de justiça social (SILVA, 2004, p. 19-20).

Reduzir seguridade a previdência e esta a seguro implica passar a utilizar, no âmbito da Previdência Social, as estratégias do mercado: selecionar riscos de menor custo e recusar outros como objeto de seguro, transferir riscos e prejuízos para o segurado. Trata-se da substituição da seguridade pela incerteza em face do risco, sob a égide da rentabilidade e sob o âmbito individual, sem as garantias de um pacto coletivo (SILVA, 2004, p. 20).

Sobre os desafios da consolidação da seguridade social em direção ao respeito à diferença e ao aumento da cobertura social:

O regime único e universal deve respeitar a diferença, sob pena de reproduzir a desigualdade. Se se trata de consolidar o sistema de seguridade social brasileiro, então o desafio é ampliar a cobertura – pela inclusão daqueles que por falta de trabalho, por insuficiência de renda, por absoluta impossibilidade de contribuição prévia ou mesmo por desconfiança encontram-se fora do sistema –, aumentando o número de filiados e de contribuintes, o que remete à retomada do crescimento econômico e à ampliação das oportunidades de emprego (SILVA, 2004, p. 27).