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O Ser Humano e o Mundo

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2. CAPÍTULO CORRELAÇÃO, MUNDO E FÉ

2.4 Mundo, Correlação, Ser Humano e Fé

2.4.1 O Ser Humano e o Mundo

No entanto, é na figura do filosofo e teólogo Santo Agostinho (354 – 430 d. C), que podemos encontrar um mediador, ele irá propor uma correlação entre o ser humano e o mundo. Para ele, “no homem constitui a origem do mundo”, reconhecendo assim, “duas significações no conceito de mundo; há, de um lado, o mundo criado por Deus, e do outro, o mundo engendrado pelo pecado do homem”. (ALLMEN, 2001, p. 1213). Para ele, o homem (ser humano) que tem em si a origem do mundo, também é o mesmo que o destrói o mundo por meio de suas próprias escolhas negativas, ou seja, o pecado.

Encontra-se no Livro XII, da obra “Confissões” (1997), os pensamentos do bispo de Hipona acerca da criação do mundo. Como cristão ele baliza seu pensamento pautando-se pela narrativa da criação do livro de Génese, contudo, Agostinho faz algumas observações pertinentes que passaria despercebido numa primeira leitura. Para ele o mundo está em continuo processo de mudança tanto da natureza quanto da substância “pelo qual cessam de ser aquilo que eram e começam a ser o que não eram” e a “própria mutabilidade das coisas é capaz de tomar todas as formas em que se transfiguram as coisas mutáveis” (AGOSTINHO, 1997, p. 368), desta maneira percebe-se que o mundo é um organismo vivo e funcional, como uma práxis, movimentos cíclico em espiral.

19 ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 06:

Cada mudança provocada pelo indivíduo no mundo vai retornar de alguma maneira para o mesmo, que por sua vez, irá alterar novamente o seu

hábitat, o seu meio. Ainda no mesmo, o filosofo Agostinho apresenta uma breve

discussão intitulada “opiniões diversas sobre o sentido de “céu e terra””, (p. 381) onde aparentemente está fazendo uso dos conceitos platônicos para distinguir entre o mundo visível (sensível) e o invisível (inteligível), mas até então o diálogo fica em torno das formas e matérias utilizadas na criação. Contudo, na sua obra “Cidade de Deus” (1990), que é reconhecida com grande notabilidade, acerca do gênero humano, é aonde podemos encontrar de fato o conceito de mundo.

Agostinho escreve essa obra em dois volumes os quais discorrem acerca da criação do mundo, “da alma e do gênero humano” como também a relação do último com sua divindade, no caso do cristianismo com sua crença monoteísta; como também das outras religiões as quais ele considerava pagãs, as politeístas. Por meio de questões que ele mesmo levanta baseando-se nos livros da bíblia e em discussões secundárias. Ele, assim como Platão e Aristóteles (entre outros), divide o mundo em duas partes, mas ao mesmo tempo reconhece que “com efeito, ambas as Cidades enlaçam-se e confundem-se no século até que o juízo final as separe” (AGOSTINHO, 1990, p. 64. Vol. I), a divisão proposta por ele é da seguinte forma, ele diz:

Dividi a humanidade em dois grandes grupos: um, o dos que vivem segundo o homem; o outro, o daqueles que vivem segundo Deus. Misticamente, damos aos dois grupos o nome de cidades, que é o mesmo que dizer sociedades de homens. [...] O desenvolvimento dessas duas cidades compreende todo o lapso de tempo, também chamado de século, rápida sucessão de nascimentos e de mortes, que forma o curso das duas cidades. É a que nos referimos. (AGOSTINHO 1990, p. 173).

Essa forma de ver o mundo, essa divisão proposta por Santo Agostinho é surpreendente. Diferente dos pais da Igreja dos primeiro séculos, percebe-se que Agostinho faz um reconhecimento público do indivíduo como integrante do mundo, ou pelo menos expressa a ideia do indivíduo sendo cor-participativo no “mundo” ao seu entorno. Se os pais da igreja primitiva acreditavam e pregavam que o homem cristão tem que renunciar e negar completamente o mundo, e aqui a ideia de mundo é, ou melhor, são as relações estabelecidas em/na sociedade.

O uso da palavra “misticamente” pode ser compreendida de duas maneiras, sendo aplicada no sentido místico, como “pensamento inspirador” e a segunda definição seria em “que há mistério ou razão incompreensível20”. Com

o intuito de se aproximar da melhor maneira possível do pensamento do autor, acredita-se que a segunda definição (baseando-se pelo contexto) expressa mais claramente sua ideia, consecutivamente, ele condiciona a palavra “misticamente” com “cidades” ou “sociedades de homens”, ou seja, agrupamento de pessoas, muito embora ele use frequentemente o conceito “homem”, devemos entender de maneira inclusiva (homens, mulheres de forma geral). Isto posto, compreende-se que é impossível para qualquer pessoa, independente de qual seja seu credo religioso, abster-se completamente do convívio social. Viver em sociedade “é como o ar: necessário para respirar, mas insuficiente para dele se viver21”. Mais que isso, pode ser observado (através da suas obras) que o

próprio Agostinho de Hipona estava sempre em diálogo com a sociedade, com o mundo. Os cidadãos das duas cidades estão presos no “lapso do tempo do nascer ao morrer” ao convívio mútuo, queira ou não queira.

Pode ser tendencioso pensar que a ideia de dividir o mundo em duas sociedades, proposta por Santo Agostinho, proporcione uma compreensão mais fácil, se comparado com a ideia de mundo apresentado pelos gregos de mundo sensível e inteligível, contudo, para os gregos todos podem acender ao mundo superior por meio da inteligência, mas para o filosofo cristão não. Vejamos o porquê.

Agostinho vai dizer que está “predestinada a reinar eternamente com Deus”, enquanto que a outra está predestinada a “sofre eterno suplicio com o diabo” (p. 173). Embora não seja ele quem define se esse viverá com Deus e/ou aquele com o diabo, para ele, ao se retratar do gênero humano, nunca é algo categórico ou específico, mas sempre dualista, como: “o primeiro filho dos dois primeiros pais do gênero humano foi Caim, pertencente à cidade dos homens, e o segundo, Abel, participante da cidade de Deus,” ou “os filhos da carne e os filhos da promessa” (p. 174); esse conceito dualista permeia boa parte das suas

20"misticamente", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa 2008-2013,

http://www.priberam.pt/dlpo/misticamente Acessado em: 20-10-2016.

21George Santayana, pseudônimo de Jorge Augustín Nicolás Ruiz de Santayana (1863 - 1952),

obras, mas Agostinho apresenta uma terceira via para refletir acerca do mundo sem que seja uma dualidade cosmológica, embora ele retome o dualismo cósmico posteriormente.

No quinto capítulo do livro décimo quinto, o qual ele apresenta uma pequena parte da historicidade da formação de Roma, o autor fala sobre “dois imperadores: o da cidade terrena e o de Roma” (p. 177). A importância desta passagem reflete a idealização do mundo produzido pelo desejo que aparece também nas dimensões sociais, e que por muito busca transpor as leis e as proibições que são norteadoras do convívio em sociedade. O desejo é interno, subjetivo, mas à medida que o indivíduo vai se apropriando do mundo o mesmo busca satisfazer os seus próprios desejos. Foi o que aconteceu na fundação de Roma...

... segundo a história, Rômulo matou o irmão Remo, com a diferença de aqui serem ambos cidadãos da cidade terrena. Ambos pretendiam a glória de ser fundadores da republica romana, mas não podiam ambos ter a gloria que teria um só deles, se outro não existisse, porque os domínios que sua glória queria, dominando, seriam mais reduzidos, se lhe minguasse o poder, por viver o companheiro no mando. E para o mando passar íntegro a um apenas, eliminou o companheiro, com o crime aumentando o império que com a inocência fora menor e melhor. (AGOSTINHO, 1990, p. 177, 178).

Isto posto, pode-se constatar no pensamento agostiniano uma abertura para o mundo dos desejos por meio das relações humanas, e assim, romper a simbiose dualista entre mundo físico e mundo metafísico ou celestial, ou melhor, não seria romper de maneira absoluta, mas sim perceber outras maneiras distintas de olhar a realidade, contudo, as três perspectivas são em si mesmas, três formas de ser no mundo. Essa forma de ser e ver o mundo agostiniano torna- se tão importante, que o grande reformador Martin Luther Martinus Luter (1483 – 1546), que nasceu mil e cinquenta e três anos após a morte de Agostinho, na vida adulta, irá em muitos de seus inscritos ter como base os pensamentos agostiniana.

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