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Colocadas as bases teóricas que fundamentam o conceito de poder municipal, sobre as quais voltaremos a falar mais adiante, retomamos o Artigo 49 do Decreto da Assembléia de 14 de dezembro de 1789, visto que nele está concentrado o teor das funções municipais.

Para Enterría (1984) é o problema suscitado pelo Decreto Constituinte acerca da relação existente entre Município e Estado o que determinará os primeiros passos do regime municipal moderno e, por conseguinte, a sua própria constituição histórica.

Desta feita, o sistema municipal pleiteado pela Constituinte mediante o conceito de pouvoir municipal objetiva “[...] articular a autonomia local com a indeclinável função unificadora do Estado [...]” (ENTERRÍA, 1984, p. 109).

Para tanto, adota-se um esquema estrutural simples: o Município seria responsável por gerenciar, além dos assuntos privativos do poder municipal, as funções que o Estado lhe delegar.

Esta nova fase histórica do municipalismo, propiciada pela Revolução, objetiva harmonizar estas duas instâncias administrativas que se encontravam em tensão e não promover a eliminação da municipalidade, como fora feito pelo governo do Antigo Regime. “Ocorreu, no entanto, que este sistema de execução municipal das tarefas estatais fracassou totalmente desde o momento em que foi colocado em prática” (ENTERRÍA, 1984, p. 109).4

Diante do fracasso dos entes locais eletivos e diante da iminência da volta às velhas posições absolutistas, surge neste cenário, em torno das discussões sobre as relações entre Município e Estado, a reforma napoleônica. É com ela que a construção territorial objetivada pela Revolução ganhará um perfil definitivo que “[...] perdurará virtualmente até os nossos dias e a que será recebida pelos países europeus diretamente tributários do sistema, sem prejuízo de suas correções posteriores” (ENTERRÍA, 1984, p. 115).

Esta nova técnica organizativa do território, proposta por Napoleão, se alicerçará sobre a espinha dorsal de uma série de agentes, tais como ministro, prefeito, subprefeito e alcaide, ligados ao Estado por um laço de dependência hierárquica. Todos estes agentes são estreitamente dependentes do centro e nesta condição são meros titulares de eventuais funções consultivas e deliberativas executando e cumprindo as funções determinadas pelo Estado – único a deter uma função ativa – em suas municipalidades correspondentes.

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O fracasso se dá, em grande medida, pela dissolução do recente Estado francês, pós-revolução, em um enorme número de pequenas repúblicas locais o que dificultou os vínculos dos agentes municipais com o poder central de onde emanavam as leis e mandatos a serem cumpridos.

Notamos, neste ponto, a não existência do caráter eletivo – idéia preciosa para o conceito de poder municipal – destes agentes, visto que a nomeação ou a remoção a qualquer uma destas funções é competência exclusiva do Estado, isto é, do centro ativo. Nesta articulação existente entre Estado e Município, marcada pela dependência hierárquica deste último, percebemos a presença da técnica napoleônica por excelência da centralização administrativa.

A centralização administrativa, concluirá Enterría (1984), não é fruto do acaso, mas daqueles novos princípios sociais e políticos determinados por Tocqueville como os elementos constituintes de uma nova estrutura societária impulsionada, em grande parte, pelo nascente ideário econômico-liberal pertencente aos revolucionários.

Em suma, a estrutura local apregoada pelo esquema napoleônico subjuga a força do significado de pouvoir municipal, defendido pela Assembléia Constituinte de 1789, entendido como um poder que é de exclusividade do Município nele mesmo se originando sem a necessidade de uma legitimação advinda do Estado.

A idéia central do sistema municipal francês, do qual somos herdeiros, se expressa mediante o conceito de pouvoir municipal. Este se alicerça sobre os fundamentos da corrente fisiocrata, mais precisamente, dos intentos de Turgot. E, após a reforma napoleônica, encontrará sua expressão definitiva com a corrente do liberalismo doutrinário que lhe dará a configuração institucional definitiva que praticamente persiste intacta até hoje: “após este momento, o sistema unicamente evolui quanto à composição democrática de seus membros, mas sua figura estrutural já está praticamente completa e acabada até hoje” (ENTERRÍA, 1984, p.134).

A idéia de poder municipal, essencial ao sistema municipal francês, edifica-se no seio de um Estado construído mediante o esquema da centralização administrativa, no qual

impera a soberania da vontade geral, representada pelo centro diretivo, sobre a vontade particular, esfera das ações municipais.

Para Enterría (1984, p. 137), o conceito de pouvoir municipal – que objetiva recuperar o papel de representação das municipalidades, posto em ruína desde o Antigo Regime – centra-se sobre a idéia associacionista de Município da qual as municipalidades modernas herdarão um caráter apolítico que as restringirá ao mundo dos interesses privativos (segurança, propriedade, habitação, saneamento etc) impedindo-a de participar dos interesses gerais, a não ser por delegação. Esta característica, dirá o autor, é o próprio suporte de existência da doutrina do pouvoir municipal. “[...] o Município como tal não pode tocar o mundo dos “interesses gerais” que é próprio da ordem política e do Estado. A separação nítida entre interesses gerais e interesses privativos é a base do municipalismo de tipo francês [...]” (ENTERRÍA, 1984, p. 137).

Desta forma, este embate entre Município e Estado nada mais fez que reduzir o Município a um papel de ações subalternas e domésticas que tornou impossível uma outra via de relação que não fosse a da tutela administrativa, desta agência local, ao papel diretivo e centralizador do Estado moderno.

A natureza administrativa centralizadora do Estado moderno, que advém dos intentos da Revolução Francesa, não parece caracterizar-se meramente como uma rejeição ao centralismo praticado pelo governo absolutista, mas como uma recusa a sua política mercantilista que não mais atendia aos anseios de uma classe burguesa emergente no cenário francês. A nova configuração social e política definir-se-á pelas diretrizes do liberalismo como princípio econômico que passou a exigir, por sua vez, igualmente um Estado forte que, embora permita a iniciativa privada de livre comércio, se tornará o protetor e estimulador das ações da sua classe proprietária diante da existência da concorrência de outros grupos de

proprietários externos e diante, também, do iminente desejo de explorar legalmente o trabalho de uma classe destituída de meios e bens de produção.

Esta ação protecionista do Estado moderno é expressa por Peroni (2003) ao analisar o intuito das políticas descentralizadoras do governo brasileiro durante a década de 1990. Para a autora,

[...] o Estado [...] além de ser chamado a regular as atividades do capital corporativo, no interesse da nação, tem, ainda de criar um ‘bom clima de negócios’, para atrair o capital financeiro transnacional e conter (por meios distintos dos controles de cambio) a fuga de capital para ‘pastagens’ mais verdes e lucrativas (PERONI, 2003, p. 33).

Este Estado, do qual os sistemas atuais são tributários, segundo Enterría (1984), jamais deve violentar os direitos dos cidadãos – o direito à propriedade – ou restringir as liberdades naturais dos indivíduos – liberdade de comércio.

Para tanto, em nome de seu bom funcionamento assiste-se na atualidade a configuração de uma nova ordem mundial que afirmou o neoliberalismo (sistema tributário das idéias que impulsionaram a sedimentação do Estado moderno) como ideologia da atual fase do capitalismo, após a Segunda Guerra, e estabeleceu uma profunda relação de dependência dos países periféricos aos ditames dos critérios reformadores das agências internacionais.