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O texto latino apresentado é o da edição crítica de Ch. H. Buttimer, citado na Bibliografia e editado nos Estados Unidos em 1939 a partir da Patrología Latina de Migne (1879), que

contém as obras de Hugo de São Vítor em tres volumes (175, 176,177). A subdivisão dos seis Livros em pequenos capítulos é a mesma apresentada por Buttimer, Dos três Apêndices apostos à tradução, os primeiros dois (Apêndice A e B) aparecem no texto de Buttimer como os últimos dois capítulos do Livro VI, mas pre­ feri seguir 0 esquema das traduções inglesa, francesa e alemã. Freqüentemente, por razões didáticas, quebrei um longo pará­ grafo do original em parágrafos menores.

A tradução podia seguir dois caminhos: ou fazer uma tradu­ ção livre, ou tentar uma tradução literária. Optei por esta últi­ ma, seja porque percebí que não dificultaria sobremaneira a lei­ tura, seja porque o estilo de Hugo de São Vítor possui uma poe- ticidade própria e uma flexão ingenhosa da frase, belezas que seria um pecado trair.

DIDASCÁLICON

DA ARTE DE LER*

* Nesta edição bilingüe, optamos por colocar o texto latino espelhado com o texto da tra­ dução brasileira, ou seja, nas páginas pares encontra-se o texto latino e nas ímpa­ res o respectivo texto traduzido. Quanto às notas de rodapé, uma ressalva importante: existem duas sequências de notas, uma para o texto latino e outra para o texto traduzido.

PRAEFATIO

Multi sunt quos ipsa adeo natura ingenio destitutos reliquit ut ea etiam quae facilia sunt intellectu vix capere possint, et horum duo genera mihi esse videntur.

Nam sunt quidam, qui, licet suam hebetudinem non igno­ rent, eo tamen quo valent conamine ad scientiam anhelant, et in­ desinenter studio insistentes, quod minus habent effectu operis, obtinere merentur effectu voluntatis,

Ast alii, quoniam summa se comprehendere nequaquam posse sentiunt, minima etiam negligunt, et quasi in suo torpore securi quiescentes eo amplius in maximis lumen veritatis per­ dunt, quo minima quae intelligere possent discere fugiunt Unde psalmista; "noluerunt, inquit, intelligere ut bene agerent”\ Lon­ ge enim aliud est nescire atque aliud nolle scire. Nescire siqui­ dem infirmitatis est, scientiam vero detestare, pravae voluntatis.

Est aliud hominum genus quos admodum natura ingenio di­ tavit et facilem ad veritatem veniendi aditum praestitit, quibus, etsi impar sit valitudo ingenii, non eadem tamen omnibus virtus aut voluntas est per exercitia et doctrinam naturalem sensum excolendi. Nam sunt plerique qui negotiis huius saeculi et curis super quam necesse sit impliciti aut vitiis et voluptatibus corpo­ ris dediti, talentum Dei terra obruunt, et ex eo nec fructum sapi­ entiae, nec usuram boni operis quaerunt, qui profecto valde de­ testabiles sunt.

Rursus aliis rei familiares inopia et tenuis census discendi facultatem minuit. Quos tamen plene per hoc excusari minime posse credimus, cum plerosque fame siti nuditate laborantes ad scientiae fructum pertingere videamus. Et tamen aliud est

PREFACIO

Há muitas pessoas que a própria natureza deixou tão desprovi­ das de capacidades, que têm dificuldade para entender até as coi­ sas fáceis, e destas pessoas parece-me haver dois tipos.

Há alguns que, mesmo não ignorando os seus próprios limi­ tes, buscam o saber com tal afinco e insistem tão obstinadamen­ te no estudo, que merecem obter, por obra da vontade, aquilo que não obteriam pela eficácia do estudo em si.

Mas há outros os quais, sentindo que nunca poderíam com­ preender as coisas altíssimas, desprezam também as coisas míni­ mas e, como que repousando em seu próprio torpor, tanto mais perdem a luz da verdade nas coisas sumas, quanto mais fogem das coisas mínimas que poderíam aprender. Por isso, o salmista diz: "Não quiseram entender, para não ter que agir retamente”. Não saber e não querer saber são de longe duas coisas bem di­ versas. Não saber é questão de incapacidade, mas detestar o sa­ ber é perversidade da vontade.

Há um outro tipo de indivíduos, todai^ia, que a natureza do­ tou de engenho, oferecendo-lhes um acesso fácil para chegar à verdade. Nestes, todavia, mesmo havendo uma alta capacidade de engenho, nem em todos há a mesma virtude e a mesma vonta­ de de educar a capacidade natural por meio de exercícios e de instrução. Com efeito, muitos destes, mergulhados mais do que 0 necessário nos afazeres e nas preocupações desta vida ou da­ dos aos vícios e aos prazeres do corpo, sepultam na terra o ta­ lento recebido por Deus e não almejam obter dele nem o fruto da sabedoria nem os juros das boas obras. Estes são realmente muito detestáveis.

Em outras pessoas, ainda, a pobreza do patrimônio familiar e os recursos escassos dificultam a possibilidade de aprender. Achamos, todavia, que estes não podem ser minimamente des­ culpados, uma vez que vemos muitos os quais, mesmo sofrendo de fome, sede e nudez, alcançam o fruto do saber. Uma coisa é

cum non possis, aut ut verius dicam, facile non possis discere, at­ que aliud posse et nolle scire. Sicut enim gloriosius est, cum nul­ lae suppetant facultates, sola virtute sapientiam apprehendere, sic profecto turpius est vigere ingenio, divitiis affluere, et torpe­ re otio.

Duae praecipue res sunt quibus quisque ad scientiam ins­ truitur, videlicet lectio et meditatio, e quibus lectio priorem in doctrina obtinet locum, et de hac tractat liber iste dando prae­ cepta legendi.

Tria autem sunt praecepta magis lectioni necessaria; pri­ mum, ut sciat quisque quid legere debeat, secundum, quo ordine legere debeat, id est, quid prius, quid postea, tertium, quomodo legere debeat. De his tribus per singula agitur in hoc libro. Instruit autem tam saecularium quam divinarum scripturarum lectorem. Unde et in duas partes dividitur, quarum unaquaeqqe tres habet distinctiones. In prima parte docet lectorem artium, in secunda parte divinum lectorem. Docet autem hoc modo os­ tendendo primum quid legendum sit, deinde quo ordine et quo­ modo legendum sit.

Ut autem sciri possit quid legendum sit aut quid praecipue legendum sit, in prima parte primum numerat originem omnium artium deinde descriptionem et partitionem earum, id est, quo­ modo unaquaeque contineat aliam, vel contineatur ab alia, se­ cans philosophiam a summo usque ad ultima membra. Deinde enumerat auctores artium et postea ostendit quae ex his videli­ cet artibus praecipue legendae sint. Deinde etiam quo ordine et quomodo legendae sint, aperit. Postremo legentibus vitae suae disciplinam praescribit, et sic finitur prima pars.

In secunda parte determinat quae scripturae divinae appel­ landae sint, deinde numerum et ordinem divinorum librorum et auctores eorum et interpretationes nominum. Postea agit de quibusdam proprietatibus divinae scripturae quae magis sunt necessariae. Deinde docet qualiter legere debeat sacram scriptu­ ram is qui in ea correctionem morum suorum et formam vivendi quaerit. Ad ultimum docet illum qui propter amorem scientiae eam legit, et sic secunda quoque pars finem accipit.

É

você não poder aprender, ou melhor, não poder com facilidade, outra coisa é poder e não querer aprender. Se é mais glorioso aprender a sabedoria somente por meio da virtude, sem dispor de possibilidade alguma, é certamente mais torpe possuir o en­ genho, abundar em riquezas, e entorpecer no ócio.

Existem principalmente duas coisas por meio das quais uma pessoa adquire conhecimentos, ou seja, a leitura e a meditação. Destas, a leitura detém o primeiro lugar na instrução, e dela se ocupa este livro, dando as regras do 1er.

São três as regras mais necessárias para a leitura: primeiro, saber o que se deve 1er; segundo, em que ordem se deve 1er, ou seja, 0 que 1er antes, o que depois; terceiro, como se deve 1er. Neste livro se discorre sobre estas três regras, uma por uma. O li­ vro dá instruções seja sobre as leituras profanas seja sobre a lei­ tura dos textos sagrados. Por isso, ele se divide em duas partes, cada qual tendo três capítulos. Na primeira parte dá instruções ao leitor das artes, na segunda ao leitor dos livros divinos. O li­ vro procede de modo a mostrar primeiro o que deve ser lido, de­ pois em qual ordem e como se deve 1er.

Para que se possa saber o que 1er ou o que 1er prioritaria­ mente, na primeira parte o livro primeiro enumera a origem de todas as artes e depois apresenta a descrição e a divisão delas, ou seja, como cada uma contenha a outra ou é contida por ou­ tra, dividindo a filosofia do vértice até os últimos elementos. Em seguida, o livro enumera os inventores das artes e em seguida mostra quais destas artes merecera ser lidas com prioridade, E explica também em qual ordem e como devem ser lidas. Por fim, 0 livro prescreve aos leitores uma disciplina de vida, e assim ter­ mina a primeira parte.

Na segunda parte, o livro determina quais Escrituras devem ser chamadas divinas, e apresenta o número e a ordem dos livros sagrados, assim como os seus autores e as explicações dos no­ mes. Depois, trata de algumas peculiaridades mais importantes da Sagrada Escritura. Em seguida, ensina como deve 1er a Sa­ grada Escritura aquele que procura nela a correção dos seus costumes e uma forma de vida. Por último, o livro instrui a pes­ soa que lê tais Escrituras por amor do saber, e assim termina também a segunda parte.