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Estala relho marvado Recordar hoje é meu lema

Quero é rever os antigos tropeiros da Borborema São tropas de burros que vêm do sertão

Trazendo seus fardos de pele e algodão O passo moroso só a fome galopa Pois tudo atropela os passos da tropa O duro chicote cortando seus lombos Os cascos feridos nas pedras aos tombos A sede e a poeira o sol que desaba Rolando caminho que nunca se acaba

Estala, relho marvado Recordar hoje é meu lema

Quero é rever os antigos tropeiros da Borborema Assim caminhavam as tropas cansadas

E os bravos tropeiros buscando pousada Nos ranchos e aguadas dos tempos de outrora Saindo mais cedo que a barra da aurora Riqueza da terra que tanto se expande E se hoje se chama de Campina Grande Foi grande por eles que foram os primeiros Ó tropas de burros, ó velhos tropeiros.

(Composição de Rosil Cavalcanti e Raymundo Asfora/ Interpretação de Luiz Gonzaga)

A voz dolente e melodiosa de Luiz Gonzaga vem sonorizar a poesia de Rosil Cavalcanti e Raymundo Asfora. Os dois tentaram narrar este fragmento da história de Campina Grande em versos simples e cadenciados como a passada dos muares guiados pelos tropeiros.

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Cadenciados, como a batida da zabumba, que anuncia os chocalhos e o chicote que range nos lombos, anunciam a chegada da tropa, assim como, o acordeão, as flautas (que tentam imitar o som do pífano) e então, uma pausa: a voz de Luiz Gonzaga acompanha o compasso dos passos da burrama.

Ao longo da canção, os violinos choram e as flautas clamam e tocam a alma do ouvinte, seduzindo-os a acompanharem as tropas através da canção. Entre os versos, Luiz Gonzaga deixa sua marca na produção de Cavalcanti e Asfora: Gonzaga tange a tropa - uhá, te apruma Medaia! Neste trecho, a música acelera, assim como, a tropa, que embalada pelo intérprete (tropeiro), ganha um novo ritmo na caminhada.

Ao fim da segunda estrofe, novamente Luiz Gonzaga acrescenta novos trechos a canção: “Uhá, te apruma medaia! Que é isso medaia? Tu nunca visse luz eterna? Oia o acero da rua medaia! Uhá! Tá igual mulher dama quando vê caixeiro viajante! Te apruma medaia! Uhá! Uhá!”

O artista anuncia a chegada da tropa na cidade caracterizada pelo termo acero da

rua, assim como, um possível descontrole de uma das mulas, que se assusta com as

luzes da cidade (luz eterna). Em outro momento, este descontrole da mula é comparada a mulher dama, ou seja, as prostitutas, quando chegam os caixeiros, homens que vinham fazer negócio e propiciar negócio para elas.

Buscamos a gravação original da canção para podermos analisar seus suportes materiais e simbólicos de produção (Napolitano, 2010, p. 272). Como os rabiscos que o artista incorpora a canção, que não podem ser negligenciadas pelo pesquisador, mas inseridos no bojo da produção de uma época. Estes traços, acrescentam detalhes ao trabalho do historiador.

A canção foi ao longo dos anos regravada por artistas diversos que interferiram na melodia e em alguns casos na própria letra. Mas, desde a primeira gravação, algumas mudanças na letra já podiam ser notadas. Originalmente, Asfora escreveu: Estala, relho

malvado / embora a burrama gema128. Existem duas versões para esta mudança na letra: esta alteração foi uma versão gonzagueana, que, talvez, pudesse achar mais atrativa ao público; uma segunda versão, aponta que os próprios compositores fizeram a

128 Anos mais tarde Biliu de Campina gravaria a canção Tropeiros da Borborema usando a letra original

de Raymundo Asfora e Rosil Cavalcanti. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=6aEDxA0LqJM.

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mudança antes de entregar a canção para Luiz Gonzaga. O colunista Bráulio Tavares, em comentário ao blog Retalhos Históricos de Campina Grande, afirma que, em conversa com Raymundo Asfora, o compositor teria dito que “Rosil Cavalcanti achou que o termo burrama, como coletivo de burros, era erudito demais e provocaria estranheza”129. Então, de comum acordo, os dois trocaram o verso para recordar hoje é

meu lema (ou meu tema, como alguns intérpretes cantam).

A letra da canção apresenta o cotidiano dos tropeiros em suas viagens na direção de Campina Grande. Em 1946, o historiador Epaminondas Câmara, que tanto se debruçou sobre a história de Campina Grande, já dizia da “vocação” que a cidade tinha em atrair tantos caminhos, tantas histórias e tantas pessoas.

(...) Com o tempo os boiadeiros e tropeiros procuraram encurtar as distâncias, aproveitando os desvios menos sinuosos e acidentados. O povoado de Campina por se achar à margem do Brejo e reunir uma abundantíssima feira de cereais, tornou-se pouso obrigatório de almocreves, cavalerianos e tangerinos que desciam do Seridó, do Curmataú e do Sertão para Goiana e Olinda

O avanço destes personagens está vinculado a “gênese” do “progresso” da cidade. Adentrando as estradas e caminhos providos de mantimentos para alguns dias de viagem, os tropeiros carregavam os caçoais, balaios e grajaus no lombo dos burros. Mas, o foco dos compositores é contar e cantar a trajetória destes homens e dos animais, apontando suas dores e dificuldades. Frases que afligem e trazem o ouvinte para a cena: “a fome, o duro chicote, os cascos feridos, a sede, a poeira, o sol que desaba e o longo caminho que nunca se acaba”. O sofrimento que atinge o corpo dos burros e a alma daquele que escuta.

No segundo momento, os compositores enfocam as dificuldades dos tropeiros: a busca por pousada, diante do cansaço de uma jornada que começa, “mais cedo que a barra da aurora”, além disso, tem que enfrentar as diversidades do clima.

Por fim, mostram que as riquezas da cidade, que tanto se expande, foram forjadas, inicialmente com o suor e o sofrimento de burros e tropeiros. Elementos que foram decisivos na construção de uma Campina Grande.

129 Disponível em http://cgretalhos.blogspot.com.br/2010/06/tropeiros-da-borborema-traducao-

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Tropeiros da Borborema é um canto de louvor a cidade de Campina Grande. Uma

sonoridade que constrói a ideia de um povo que luta para construir as riquezas da urbe, levando a ser considerada uma metrópole do Nordeste, segundo o discurso da época. Neste contexto, enxergamos na comemoração do centenário que certos personagens foram valorizados e se tornaram exemplos simbólicos da cidade.

Recordar hoje é meu lema. Com estas palavras a canção é entoada na voz de Luiz

Gonzaga. A frase nos leva a pensar que esta noção aparece quase como um dever de memória130, em 1964, no contexto do centenário. O dever de memória não se limita a guardar o rastro material, escrito ou outro, dos fatos acabados, porém convoca o sentimento de dever a outros, dos quais diremos mais adiante que não são mais, mas já foram. Pagar a dívida, diremos, mas também submeter a herança a inventário (RICOEUR, 2007: 101).

Neste sentido, recordar os tropeiros em forma de canção é um dever para com os primeiros que trouxeram o desenvolvimento para Campina Grande. Consiste em uma dívida, uma dívida de memória que será comemorada nesta cena festiva.

O discurso reproduzido em forma de canção foi apropriado pelos atores políticos que conclamam um passado glorioso da cidade e tomam os tropeiros como um dos símbolos da cidade que comemora cem anos. Neste sentido, destacamos a canção como um veículo de construção de identidade, como um mecanismo que serve para inscrever dadas leituras do passado, utilizando determinados personagens para explicar as suas glórias do ontem, do hoje e do amanhã.

4. 2 – O TOQUE DO PODER: OS SÍMBOLOS PRODUZIDOS DURANTE AS