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FIAT JUSTITIA, PEREAT MUNDUS

COS TUME

206 - Costume é um a norm a ju ríd ica sobre determ inada relação de fato e resultante de prática diurna e uniform e, que lhe dá força de lei. A o conjunto de tais regras não escritas cham a-se D ireito Consuetudinário2"2 (1).

A força com pulsória do costum e não é incom patível com o disposto no art. 141, § 2o, da C onstituição atual, que prescreve: “N inguém pode ser obrigado a fa­ zer, ou deixar de fazer algum a coisa, senão em virtude de lei.” A palavra lei não foi em pregada no estatuto suprem o, na acepção restrita de ato do C ongresso, e, sim, no sentido am plo, de Direito (2).

207 - Dispõe o C ódigo Civil: “Art. 1.807. Ficam revogadas as O rdenações, A lvarás, Leis, Decretos, R esoluções, Usos e Costum es concernentes às m atérias de D ireito Civil reguladas neste C ódigo.”

A quele repositório de preceitos suprim iu, de um golpe, todo o D ireito C on­ suetudinário C ivil? Extirpou o do passado e vedou o surto de outro no futuro?

Se a resposta fora afirm ativa, o C ódigo brasileiro seria o m ais atrasado da ter­ ra, obstáculo ao progresso jurídico, inferior às com pilações justinianas. O Digesto depara-nos este conceito de Juliano: ulnveterata consuetudo pro lege non, immeri-

to custoditur et hoc est ju s, qu od dicitur m oribus constitutum” (Liv. 1, tít. 3, frag.

32, § Io). U lpiano ensinara: “ Diuturna consuetudo p ro ju re et lege in his, quoe non,

ex scripto, descendunt, observari so let” (D igesto, liv. 1, tít. 3 - De Legibus, frag.

33). Eis a tradução dos dois fragm entos: 1) “O costum e inveterado recebe da lei m erecido am paro (e é este o D ireito que se diz consuetudinário).” 2) “O costum e

2 0 2 2 0 6 - (1) “ Costume é u m a lei e s t a b e le c id a p e lo u so d iu t u r n o " ; custom is a law established by long usage ( B o u v ie r 's La w Dictionary, e d ., 1 9 1 4 , v e r b . C u s t o m ) .

" (P a ra o s r o m a n o s ) o D ire it o n ã o e s c r it o e r a o r e s u lt a d o d a s m á x im a s q u e o u s o t in h a in tr o ­ d u z id o , e d e c u ja r e d a ç ã o a a u t o r id a d e p ú b lic a s e n ã o t in h a a in d a o c u p a d o " . Ex non scripto ju s venti quod usus com probavit: nam diuturni m ores, consensu utentium com probati, legem im itantur - " a d v é m d e f o n t e n ã o e s c r it a o D ire it o c u ja e x is t ê n c ia o u so r e v e lo u ; p o r q u a n t o a s s e m e lh a m - s e a le is o s c o s t u m e s d iu t u r n o s , c o n f ir m a d o s p e lo c o n s e n s o d o s q u e d o s m e s ­ m o s fa z e m u so " (Institu t de Justiniano, liv. I, t ít . II - De ju re naturali, § 9 e ; F e r r e ir a B o rg e s -

Dicionário Jurídico-Com ercial, 1 8 5 6 , v e r b . U s o ). (2) P tiu ln d e L a c e r d a , v o l. I, n 9 1 9 9 .

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diuturno deve ser observado em lugar de lei e direito constituído, relativam ente ao que provém de origem não escrita.”

Sem pre os costumes, quando uniform es, constantes, diuturnos, tiveram força de lei; considera-os a ciência m oderna um a fonte viva, e a m ais rica e im portante, de D ireito O bjetivo203 (1 ). N enhum Código lhes em baraçaria o surto espontâneo, necessário, fatal.

O art. 1.807 do C ódigo brasileiro encerra disposição idêntica à do artigo da lei francesa de 30 ventôse, do ano XII; pois bem , a doutrina e a ju risprud ência gau- lesas consideram revogados pelo texto referido os costumes anteriores ao C ódigo C ivil; adm item que outros novos se form em e prevaleçam (2).

N ão é lícito interpretar a lei de m odo que resultem antinom ias ou contradi­ ções entre os seus preceitos; ora o C ódigo brasileiro prestigia expressam ente usos e costum es, prescreve a sua observância, nos arts. 588 (§ 2o), 1.192 (n° 11), 1.210, 1.215, 1.218, 1.219, 2.221 e 1.242; logo não poderia o art. 1.807 ser inspirado pelo intuito de os varrer todos da tela jurídica, sem exceções futuras.

E xerce o costum e duas funções: a de D ireito S ubsidiário, para com p letar o D ireito E scrito e lhe p re en ch e r as lacunas', e a de elem ento de H erm enêutica, auxiliar da exegese (3). Só no prim eiro caso, isto é, quando adquire autoridade com pulsória, força de lei, o art. 1.807 lhes extin gu e a eficácia; pois os costum es e usos anteriores ajudam a interpretar os dispo sitiv os do C ódigo, que dos m esm os em ergiram evolutivam ente. C om o elem ento de H erm enêutica o costum e não é aproveitado por obrigação; fica o seu em prego, neste particular, ao critério do aplicad or do D ireito, com o acontece, aliás, com os dem ais fatores do trabalho interpretativo (4).

208 - O C ódigo Civil suíço, em tom explícito, no art. Io, atribui ao costum e a

autoridade de Direito Subsidiário; prescreve que ele com plete o texto, preencha as lacunas, supra as deficiências: “N a falta de um a disposição legal aplicável, o ju iz decide conforme o Direito Consuetudinário.’''’ Este com eça onde a lei term ina e depara um abism o a transpor, espaço vazio, norm a incom pleta, pontos sem elhantes não atingidos pela regra escrita204 (1).

203 207 - (1) Geny, vol. I, p. 445; Jandoli, op. cit., p. 31.

(2) Charles Brocher - Étude su r les Príncipes Généraux de L'lnterprétatíon des Lois, p. 73-74; Geny, vol. I, p. 388-390.

(3) Desembargador A. Ferreira C o e lh o - Código Civil Comparado, Comentado e Analisado, vol. II, 1920, p. 104, n2 845; Curti-Forrer, op. cit., p. 4, n2 8; Gmür, op. cit., p. 2 e 129; Black, op. cit., p. 296.

(4) Gmür, op. cit., p. 93-94.

204 208 - (1) Sutherland, vol. 11, § 473; Gmür, op. cit., p. 2 e 129-130. (2) Gmür, op. cit., p. 92-94.

Costume 135

Até m esm o 11a R epública helvética se acha mais im portante o papel do ns(

inveterado e do costum e uniform e e constante, com o elem ento de interpretação neste caso, ao invés de receber acréscim o, o Direito Positivo adquire línetimenlo m ais precisos, contornos avivados, decisivos, evidentes. A ssim acontece, não en conseqüência do art. I o, ou de qualquer outro texto com pulsório; m as em virludi dos princípios científicos norteadores da H erm enêutica (2).

Os próprios idólatras da lei escrita, que negam ao costum e função relativa m ente criadora, lhe não recusam o caráter interpretativo (3). Logo, se o art. 1.80' se não opõe ao surto de usos e costum es com o D ireito Subsidiário, posterior a< C ódigo Civil (4), a fo rtio ri os tolera e acolhe com o elem entos de exegese.

209 - O costum e foi, no passado, e é ainda, no presente, considerado óli m o intérprete das leis: optim a est legum interpres consuetudo205 ( 1 ). “( 'om eleito quando um a lei tem sido entendida e executada p or um a só e mesm a forma, ot m odo, por tanto tem po quanto é necessário para constituir uso, ou costum e gei.d há toda razão para se crer que a inteligência, que se lhe tem dado, é a verdadeira'

(

2

):

minime sunt mutanda quoe interpretationem certam sem per luihm•rutU ( ' I

Exatam ente por se form ar pouco a pouco, à m edida das exigências un o e n I

veis do m om ento e do m eio, a exegese costum eira h á de co rresp o n d ei, me l l i o i di

que outra qualquer, às necessidades sociais. Produto exclusivo da e v o l u ç ã o m e u

ce todo acolhim ento da ciência jurídica, hoje norteada pela Sociologia

Tem o costum e apenas o defeito de não ser fácil verificar a sua lorm açáo. i.m to que, se alguém o invocar, agirá com prudência, se o expuser de modo e\piev.i e provar que ele existe (4).

210 - Há três espécies de costum es: o secundum legem , previsto no texii

escrito, que a ele se refere, ou m anda observá-lo em certos casos, com o I )ireilt

Subsidiário206 (1); o pro eter legem, que substitui a lei nos casos pela mesm a deis.ij

(4) Clóvis Beviláqua - Código Civil Com entado, vol. I, 1916, p. 99 e 107; Eduardo I spínnl.i,

Breves Anotações ao Código Civil Brasileiro, vol. 1 ,1 9 1 8 , p. 35-38; Paulo de Lacerda, vol I, n'

198-202; Ferreira Coelho, vol. II, p. 102, na 843; Paula Batista, op. cit., § 43; Gé/a Kiss, op i II. p. 6-9; Geny, vol. I, p. 389-390.

205 209 - (1) Calístrato, no D igesto, liv. I, tít, 3, frag. 37; Domat, vol. cit., p. 437, XIX; Sulheil.uid v o l. II, § 473.

"Se houver estilo ou costume que determine o sentido de uma lei, devemo-nos cinqir a esse e| tilo ou costume, por ser o uso o melhor intérprete das leis" (Bernardino Carneiro, op. < ii ,'/ S' •] (2) Trigo de Loureiro, vol. I, Introd., § XLVIII. No mesmo sentido: Black, op. cit., p. 29 I ? ')! (3) Paulo, no D igesto, liv. I, tít. 3, frag. 23. Vede n® 199 e nota 1.

(4) Curti-Forrer, op. cit., p. 4, n® 8; Caldara, op. cit., ns 132.

206 210 — (1) I o i aso do < oslum e mencionado nos arts. 588 (§ 2o), 1.192 (n° II), 1,210, I -’ l| 1.218, 1.7 19 e I 141, i iidiHi) ( ML

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dos em silêncio; preenche as lacunas das norm as positivas e serve tam bém com o elem ento de interpretação; e o contra legem, que se form a em sentido contrário ao das disposições escritas (2).

O prim eiro é o m ais prestigioso, universalm ente aceito, até m esm o po r aque­ les que, em geral, não adm item o costum e com D ireito Subsidiário (3).

O contra legem, o costum e im plicitam ente revogatório dos textos positivos,

cortsuetudo abrogatoria, apesar dos esforços de um a corrente ultra-adiantada de

doutrina juríd ica, ainda não encontra apoio nos pretórios, nem tam pouco em cá­ tedras universitárias; deve ser posto à m argem ; assim exige a letra do art. 4o da Introdução do Código Civil: “A lei só se revoga, ou derroga por outra lei” (4).

consuetudinis ususque longoevi non vilis auctoritas est: verum non usque adeo sui valitura momento, ut aut rationem vincat, aut legem: “N ão é pequena a autoridade

do costum e e do uso diuturno; contudo não prevalecerá a ponto de sobrepor-se à razão ou à lei” (5).

211 - Cai um texto por não ser habitualm ente aplicado pelo sim ples desuso

(desuetudo)? Tem este força ab-rogatória, ou, pelo m enos, derrogatória?

Desuso e uso contrário à lei vêm a dar no m esm o; em um e outro caso apa­

rece e se repete um a prática em desrespeito ao texto vigente; desde que o não ob­ servem , fazem o contrário do que ele determ ina; portanto, o estabelecido para uma hipótese aplica-se à outra, fundam entalm ente idêntica: um a lei só é revogada por outra; não pelo desuso207 (1).

Há preceitos escritos, decadentes ou m ortos, incom patíveis com o estado so­ cial e as ideias dom inantes; m otivos superiores levam a silenciar sobre eles; exe­ gese orientada cientificam ente conclui pela sua inaplicabilidade em espécie, ante a falência das condições pelo m esm o previstas; entretanto seria perigoso generali­ zar, concluir logo haver o desuso revogado, de fato, a norm a. N un ca se opõe a um

(2) Paulo de Lacerda, vol. I, ne 198; Espínola, v o l. I, p. 36; Clóvis Beviláqua, Prof. da Faculdade de Direito do Recife, vol. I, p. 99.

(3) Geny, vol. I, p. 37-38.

(4) Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769, § 14; Teixeira de Freitas-V o cab u lário Jurídico, verb. Costumes; Trigo de Loureiro, vol. I, Introd., § XLVIII; Paula Batista, op. cit., § 52; Clóvis Beviláqua, vol. I, p. 69; Espínola, vol. I, p. 36; Paulo de Lacerda, vol. I, n25199 e 201; Bernardino Carneiro, op. cit., § 19; Black, op. cit., 296; Sutherland, vol. II, § 473; Geny, vol. I, p. 408-411. A nova Lei de Introdução estatui do mesmo modo, no art. 2a e parágrafos.

(5) Constantino, apud Código Justiniano, liv. 8, tít. 53, frag. 2.

207 211 - (1) Savigny, vol. I, p. 189-190; Geny, v o l. I, p. 399 e 407; Paulo de Lacerda, vol. I, n5 198; Aubry & Rau, vol. I, p. 96-97; Planiol, vol. 1, 231; Demolombe, vol. I, n9 35; Théophile Huc -

Com m entaire Théorique et Pratique du Code Civil, vol. 1, 1892, n°'J 40-50.

(2) Paula Batista, op. cit., § 55; Geny, vol. I, p. 410-411. (3) Baudry-Lacantinerie & Houques I ourcade, vol. I, n* I? 1.

Costume j

texto explícito de autoridade certa, um a prática apenas consuetudinária, “ sem| equívoca em sua fonte e de alcance m uitas vezes duvidoso” (2).

A n ã o aplicação, em bora prolongada, pode explicar-se p o r m otivos eslraull à ideia de revogação, e até exclusivos desta: por isso seria tem erário conside ab-rogado um dispositivo sim plesm ente porque o não observam há longo teni| A vaidade, a obsessão doutrinária, a fraqueza, os cálculos políticos, a ncgligéiu do Poder E xecutivo, a ignorância das partes e m otivos sem elhantes conli iliu< para reduzir a letra m orta preceitos im perativos, o que não im porta em ab-rogaç dos m esm os (3).

212 - C om o o papel do herm eneuta é dar vida aos textos, fazê-los elieien em toda a sua plenitude, revelar, não só o sentido, m as tam bém o alcance integ dos m esm os, jam ais poderia exercer tarefa sem elhante com o lançar m ão de eos m es cuja vigência im portasse, de fato, na queda do valor im perativo das normi escritas ou cientificam ente estabelecidas. Por isso, nem sequer para o efeito mlJ pretativo se adm item usos inveterados, ou práticas consuetudinárias, em an laJ nism o com a lei, ou com os princípios fundam entais do D ireito208 ( 1 ).

213 - Sem pre se consideraram indispensáveis alguns requisitos para q u e J

tilos, praxes, usos tom assem o caráter de norm a costum eira; deveriam sei "nnild

m es, públicos, m ultiplicados por longo espaço de tem po e constantem ente lo le j

dos pelo legislador”209 (1).

Só prevalecem quando certos (suscetíveis de prova d a sua existência), eij sentâneos com a razão e o bom -senso, acordes com a lei escrita, m antidos d dilatado tem po, ininterruptam ente e sem variações perceptíveis, com aquieseénd geral (indisputados portanto) (2).

Em resumo: tem valor juríd ico uso, ou costum e, d iutum o, constante, uni 14 m e e não contrário ao Direito vigente (3).

208 212 - (1) Caldara, op. cit., n2 132; Bouvier, op. cit., verb. Custom. 209 213 - (1) Ferreira Borges, op. cit., verb. Uso.

(2) Bouvier, op. cit., verb. Custom.

O costum e é o produto do consenso espontâneo; longo, enquanto o repelem ou disi u i.i

falta-lhe o principal fundamento, o que lhe dá aparência da vontade geral e assim o a lle u < o nível do Direito Positivo.

(3) Curti-Forrer, op. cit., p. 3, n® 8; Clóvis Beviláqua, vol. I, p. 99. (4) Clóvis Beviláqua, vol. I, p. 99; Espínola, vol. I, p. 37-38.

A exigência dos cem anos obedecia ao critério antigo de reduzir tudo, ern Direito, .i piei n matemática. Vede n01126-128.

(5) Black, op. ( il„ p. 293 ?94.

Autores sallsl.i/em se i mn a prova relativa aos últimos vintr anos: prevalei e o i osliim e, ficou deiui ii r.11 .tdo tm pxhl Ido durante esse período e com os demais ie(|iilsllo s (llouvlei, ( 111., vim 11 i ic.Iuim) i liielhoM iflii prellxar o pia/o.

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A lei célebre de 18 de agosto de 1768, no § 14, declarou observável apenas o costum e conform e à boa razão, não contrário às leis, e tão antigo que excedesse o tem po de cem anos.

Há exagero nos term os do últim o requisito. N ão se coaduna com a essência daquele instituto a duração prefixada, quase im possível de provar a respeito do que é, po r natureza, im preciso, lentam ente form ado e nem sem pre fácil de apreender. B asta que seja o costum e observado, sem interrupções nem variantes perceptíveis, por longo espaço de tem po (4).