• Nenhum resultado encontrado

A ALIENAÇÃO DE SI MESMO E O MERGULHO NO DESCONHECIDO

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 6, 2011.

Apenas um piano branco. Fundo de cortinas vermelhas. Uma adolescente sentada ao piano. Vestida como que para um primeiro baile.” (RODRIGUES, 1981, p. 173).

A descrição do cenário, do espaço em que se constrói essa cena, nos faz pensar sobre outra característica muito forte do personagem contemporâneo: o jogo que se estabelece com o ator e com a condição da própria linguagem teatral. Portanto, ao mesmo tempo em que acompanhamos a memória e o delírio do personagem Sônia, estamos localizados num palco, num espaço teatral. Essa escolha nos remete a alguns conceitos da performance, que, na atualidade, vem ditando alguns preceitos teatrais.

Sabemos bem que o cerne da performance – a inexistência de um ato ficcional e a exaltação de um discurso real, sem a interferência de máscaras – não está presente na obra de Nelson. Sua dramaturgia é pautada pelo percurso de um personagem, mesmo que construído numa narrativa fragmentada.

Porém, o que gostaríamos de chamar a atenção para este tópico é a localização espacial dessa trama: o palco teatral. É esse fato que gostaríamos de perceber como um avanço ao entendimento de que o teatro é o compartilhamento de espaço e tempo entre atores e público. O que o texto nos oferece, ao apresentar essa descrição de cenário, é que o status de assembleia se instaura nessa dramaturgia. Público e atores dividem o mesmo espaço, isso é o que importa.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 6, 2011.

É a partir desse “mergulho no desconhecido” que podemos perceber o cerne da conceituação da alienação de si mesmo, recorrendo ao filósofo italiano Giorgio Agamben, que em seu estudo O que é o contemporâneo nos ajuda a fazer o link entre a alienação de si mesmo que encontramos na obra de Nelson e seu salto para o que acreditamos ser um personagem e uma arte contemporânea.

O italiano inicia a proposição colocando o propósito de se perceber o contemporâneo como um movimento de aproximação e afastamento da nossa própria época. A aproximação se dá no fato de entendermos o nosso tempo e os seus acontecimentos no cotidiano e o afastamento se dá na percepção por trás, ou melhor, no escuro da nossa própria época, e, nesse afastamento, algo de perene e ao mesmo tempo incerto e intocável nos é declarado.

Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo. Por isso os contemporâneos são raros. E por isso ser contemporâneo, é antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida a nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar. (AGAMBEN, 1989, p. 65)

Essa pequena e rápida citação do estudo de Agamben nos aproxima do que Abreu apresenta quando se refere ao “mergulho no desconhecido”.

Portanto, quando o texto revela esse personagem alienado de si mesmo, outras verdades, que não se relacionam com o conceito de indivíduo responsável por suas atitudes e consciente de sua condição, vêm à tona. É então que podemos nos deparar com outra acepção da realidade, uma ideia distinta de individuo, que nos parece ser o centro de tantas obras teatrais contemporâneas.

É basicamente sobre esse individuo contemporâneo fora da definição cotidiana de realidade, fora da concepção de ser cultural, que é apegada aos valores e conceitos arraigados pela sociedade, que se percebe a construção do personagem na Valsa n. 6.

Como já mencionamos, Sônia é, em si, um misto de memória e delírio que se desenvolve no plano da morte, fato que, logicamente, foge da nossa alçada cotidiana. Conforme o estudo de Mariana Oliveira, “a personagem morreu. Sônia, a rigor, não existe. A construção do personagem, completo em sua profundidade psicológica, já não nos parece viável, não

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 6, 2011.

corresponde mais à verdade cênica de nossos tempos” (OLIVEIRA, 2010, p.

81-82). Portanto não podemos analisar esse personagem com base no nosso entendimento do que seja um individuo, pois os planos da memória, do delírio e da morte não podem ser povoados através de percepções do funcionamento da realidade.

O trecho abaixo ilustra bem a alienação de si mesmo. Ao evidenciar a experiência com o espelho, ressalta-se a incompreensão de sua condição, essa que se constrói no campo da especulação, da subjetividade e das suposições:

(...) e naquele dia, te inclinaste, Paulo... Para um beijo rápido. Mas Paulo! Não beijaste a mim! A mim, não... beijaste alguém, que não era eu, que sou tua namorada ou noiva! A mulher a quem beijaste, ainda ficou de boca entreaberta... eu vi pelo espelho tudo! Mas quem foi, Paulo, quem foi? Sonia! Beijaste Sônia! (RODRIGUES, 1981, p. 194)

Essa acepção de um personagem múltiplo nos aproxima desse entendimento artaudiano de alienação. Povoa-se neste texto sobre um patamar do desconhecido, de verdades insuportáveis e incompreensíveis ao nosso ser cultural, unívoco e cotidiano.

Essa alienação de si mesmo nos instiga a acompanhar o percurso de Sônia por dois motivos. No primeiro, obviamente identificamos neste personagem um desconhecimento de sua própria condição de delírio e morte.

Este fato ocorre do início ao fim do espetáculo que, em sua última fala evidencia: “(...) quem fica chora... E o defunto? O defunto nem sabe que morreu.” (RODRIGUES, 1981, p. 194). E num segundo momento, podemos perceber que esta dramaturgia instaura um mergulho no desconhecido, quando propõe um personagem morto que congruentemente se multiplica em outras tantas vozes, localiza-se em um tempo e espaço indefinido e apresenta um enredo sem uma acepção unívoca dos acontecimentos.

CONCLUSÃO

Debruçar-se sobre a obra de Nelson Rodrigues não é uma tarefa das fáceis. Certamente o dramaturgo mais importante da bibliografia teatral brasileira, Nelson nos apresenta ferramentas, questionamentos e personagens

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 6, 2011.

que são um avanço para a produção de sua época e que, por isso, nos falam até hoje.

A Valsa n. 6 sobressai-se por seu cuidado com a palavra, por sua subjetividade materializada, mas principalmente por seus desdobramentos em torno do ser ficcional. Sônia – personagem central de Valsa n. 6 - é criada com base em solo extremamente instável e seu jogo textual nos encoraja a percorrê-lo e desvendá-lo.

Nelson, ao fundar na dramaturgia brasileira essa nova percepção sobre o personagem, instaura, consequentemente, uma maneira distinta de se compreender o sujeito na contemporaneidade. E essa outra forma nos revela, então, uma maneira distinta de se relacionar com o status teatral. O ator deve ser um atento leitor para que possa entender o jogo teatral que se instaura a partir das palavras, para então poder corporificar, habitar de forma subjetiva e sensível os formatos psicológicos de seus personagens.

REFERÊNCIAS

ABREU, L. Personagem contemporâneo: uma hipótese. In: Sala Preta.

Universidade de São Paulo, n. 01, p. 61-67, jun. 2001.

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? In: _____. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

MAGALDI, S. Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações. São Paulo:

Perspectiva, 1992.

_____. Introdução. In: RODRIGUES, N. Valsa n. 6. Disponível em:

http://pt.scribd.com/doc/28370759/Nelson-Rodrigues-Valsa-N%C2%BA-6.

Acesso em: 14 mai. 2011.

OLIVEIRA, M. O movimento da valsa: entre a fábula e a estrutura. In:

Folhetim Especial Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Pequeno Gesto, 2010/2011.

RODRIGUES, N. Teatro completo I: peças psicológicas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

_____. Valsa n. 6. Disponível em:

http://pt.scribd.com/doc/28370759/Nelson-Rodrigues-Valsa-N%C2%BA-6.

Acesso em: 14 mai. 2011.

ROSENFELD, A. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2000.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 6, 2011.