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A MORALIZAÇÃO EM LITERATURA: O VETO AO FICCIONAL

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 6, 2011.

O outro narrador pode ser chamado de ilustrado. Seu principal traço é a insistência em perseguir o ideal europeu, a partir de uma leitura da realidade brasileira fundada na noção de beleza ideal da nação. Embora a cor local seja encarada como um elemento necessário para a literatura manter seu timbre brasileiro, assume-se, deste ponto de vista, que é necessário operar mudanças no momento da representação literária para haver a correção dos “defeitos” do país. Trata-se de uma representação compensatória, pois estava por detrás desta visão o esforço de afinar nossa experiência social e intelectual com a Europa. O início do romance O cabeleira (1876), de Franklin Távora é exemplar nesse sentido.

Duas posições ideológicas, dois narradores: um problema único – a incompatibilidade da cor local com a estrutura romanesca, que gera por sua vez uma frincha em nosso sentimento de nacionalidade, pois essa incompatibilidade é um problema posto para a representação literária. Diante desse problema comum, pode-se dizer que esses narradores se irmanam em um aspecto: esforçam-se ambos para remendar as rachaduras da identidade.

Mais, os dois narradores acionam um discurso moralizante toda a vez que o conteúdo cria alguma frincha na forma. E a moralização transforma-se em mais uma lei para o campo poético brasileiro...

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moralização em literatura. A moralização é o mecanismo acionado entre nossos ficcionistas por conta desta incompatibilidade da cor local com a forma romance. Quanto mais se insistia na observação objetiva da realidade, mais a moralização aflorava na prosa de ficção.

A consequência direta da observação objetiva e do moralismo para os romances do período formativo inicial foi a criação de uma única interpretação toda-poderosa do objeto representado. Para o bem da identidade nacional, o romance reproduz uma realidade sem fissuras. Mais que isso: elabora uma imagem sem possibilidade de ser ambígua. Assim, essa “obsessão pela

„visibilidade‟ do literário”, que produziu em nossa literatura “uma ilusão extra- textual” (SUSSEKIND, 1984, p. 99) – ilusão extratextual, bem entendido, de uma ideal de realidade para o romance do período formativo – cortou o voo do ficcional na decolagem, isto é, já no início do romance brasileiro. Isso não quer dizer que possuíamos documentos no lugar de ficções, como nota Flora Süssekind sobre a prosa naturalista, mas que há um interdito histórico para aflorar aquela linguagem opaca e a plurissignificância do texto – que qualifica certa noção de ficcional –, pois numa prática romanesca que quer construir uma identidade nacional de uma literatura em formação não há possibilidades de mais de uma imagem.

Podemos dizer que o veto ao ficcional foi um traço de nossa prosa de ficção do período formativo inicial, mas por um condicionamento histórico- social. A literatura que aqui chegava estava perpassada da ideologia de moralizar pela literatura. Basta lermos as relações de livros à venda nos jornais da época: O honrado negociante, conto moral de Marmontel; Os sete pecados mortais, de Eugene Sue; Deus dispõe, de Alexandre Dumas; Os anjos terrestres, de Escrich. A moralização no romance surge também como critério para definir esse gênero não previsto pela Poética. Os próprios manuais de retórica oitocentista, como nota Eduardo Vieira Martins (2005), definiam o romance a partir dessa função moralizadora – o que acabou nobilitando o gênero10. Por último, destaco ainda que a instrução via ficção, era uma forma de fazer da literatura um discurso compensatório, na medida em que não havia outros campos discursivos criados em nosso sistema cultural.

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Observação objetiva, imaginação, idealização, sentimento íntimo de ser brasileiro, nacionalismo literário, moralização, veto ao ficcional – são estas as linhas de força que compõem a dinâmica de nosso campo poético ou teto

10 Antonio Candido (1987) aborda, de maneira na mais detida, esta nobilitação do romance via função moralizadora em A timidez no romance.

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simbólico da literatura oitocentista. Pintado o painel, gostaria de destacar, pondo de lado o sentimento de incompletude que as abordagens panorâmicas produzem, uma vantagem metodológica que é a de tomar o sistema literário do período formativo inicial em um movimento amplo, destacando certa homogeneidade em um período tão heterogêneo como esse. Destaco ainda que as polêmicas são formas de pensar o Brasil dentro do Brasil. O que implica uma consequência muito importante no que diz respeito à constituição de um arcabouço poético em nossa literatura: a voz que fala, por mais que se cole ideologicamente, por vezes, em uma perspectiva europeia, é a de um intelectual na periferia do sistema cultural. Assim, aqueles conceitos abordados, vistos dentro da dinâmica centro-periferia, podem ser redimensionados e combinados a partir da lógica interna que organiza nossa cultura. É o que se tentou sugerir aqui.

REFERÊNCIAS

ALENCAR, J. de. O gaúcho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951.

ASSIS, M. de. Instinto de nacionalidade. In: _____. Crítica literária. São Paulo: Mérito, 1959.

BARTHES, R. O efeito de real. In: BARTHES, R. et alii. Literatura e semiologia.

Petrópolis: Vozes, 1971.

CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987.

_____. Formação da literatura. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:

Universidade de São Paulo, 1975, v. 1 e v. 2.

CÉSAR, G. Historiadores e críticos do Romantismo. A contribuição européia:

crítica e história literária. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1978.

COUTINHO, A. A polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1965.

FARACO, C. Todos cantam sua terra/ também vou cantar a minha. In:

ALENCAR, J. de. Senhora. São Paulo: Ática, 1997.

LIRA NETO. O inimigo do rei. Porto Alegre: Globo, 2009.

MARTINS, E. A fonte subterrânea. José de Alencar e a retórica oitocentista.

Londrina: EDUEL, 2005.

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MORETTI, F. Conjecturas sobre a literatura mundial. In: SADER, E. (Org.) Contracorrente: o melhor da New left review em 2000. Rio de Janeiro:

Record, 2001.

SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas cidades; 34, 2000.

SUSSEKIND, F. Tal Brasil, qual romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.

TAVORA, F.11 Cartas a Cincinnato. Pernambuco: J.–W. de Medeiros, 1872.

11 Sob o pseudônimo de Semproneo.

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