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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 6, 2011.

A segunda espécie de primata descrita é o saguim que, de acordo com o cronista “tem o tamanho e o pêlo do esquilo, mas o focinho e a cara parecidos com os do leão; apesar de bravio é o mais lindo animalzinho que já vi” (LÉRY, 1980, p. 144).

Léry descreve um ser híbrido, combinação de animais e homem, o qual ele identifica como hay e que possuiria, entre outras características, um rosto humano. Além disso, sua alimentação não consistia em nada mais, além de vento. Em uma tentativa de conferir credibilidade a uma história que teria sido apenas ouvida, e não experienciada, o autor se vale não somente do testemunho dos nativos, mas também de estrangeiros.

O (...) chamado hay pelos selvagens é do tamanho de um cão-d‘água grande e sua cara de bugio assemelha a um rosto humano; tem o ventre pendurado como o da porca prenhe, o pêlo pardo-escuro como a lã do carneiro preto, a cauda curtíssima, as pernas cabeludas como as do urso e as unhas muito longas. Embora seja muito feroz, no mato, facilmente se amansa. Mas é verdade que, por causa das unhas, nossos tupinambás, que andam sempre nus não gostam de folgar com ele. O que parece fabuloso, mas é referido não só por moradores da terra mas ainda por adventícios com longa residência no país, é não ter jamais ninguém visto esse bicho comer, nem do campo nem em casa e julgam muitos que ele vive de vento. (LÉRY, 1980, p. 144)

Há, nos bestiários medievais, um ser que sobrevive apenas se alimentando de ar, e que poderia corresponder ao que é descrito por Léry, conforme destaca Acosta: “o camaleão (...) se alimenta somente de ar, aspirando-o (...) a ideia de que o camaleão vive do ar provém de Ovídio e de Plínio” (ACOSTA, citado em FRANCA, 2005).

Dessa perspectiva, pode-se confirmar a influência do imaginário medieval nas descrições de animais desconhecidos do autor, quando esse recorre a imagens e figuras míticas ou monstruosas a fim de comparação.

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conhecimento, não apenas do outro, mas de si mesmo, mediante a descoberta de uma nova dimensão para sua própria existência.

Por meio da análise das crônicas de viagens do século XVI, é possível perceber uma constante preocupação de que a narrativa seja recebida como verdade pelo leitor, associada ao testemunho biográfico e à fidelidade histórica. Essa proposta de escrita da verdade é uma atitude que irá caracterizar esse tipo de produção literária durante a época do Renascimento, em oposição ao privilégio do “ouvir” medieval.

A transcrição da verdade pura torna-se possível, nesse caso, em vista da efetiva participação do narrador nos fatos narrados, que contribui para que o seu próprio testemunho lhe proporcione o conhecimento dos fatos que serão transmitidos com a máxima fidelidade, como se pode perceber na narrativa de Léry.

Assim, será o olhar e a experiência vivida pelo viajante que o diferenciará daqueles que contam apenas de ouvir falar, e que atribuirá à sua vida um valor definido, também, pelo saber conquistado mediante o contato com outras culturas e espaços à medida que ele pode confirmar, ou não, suas expectativas e pré-conceitos.

Nesse sentido, como foi visto, a noção de verdade está relacionada ao conjunto de valores que norteiam a época dos grandes descobrimentos, momento em que a conformação precisa do mundo é considerada indispensável às navegações.

Em Léry a interpretação do que é visto ou ouvido será alvo de reflexão tomando como base aquilo que foi experienciado pelo autor, o que fica evidente já no início da sua obra, quando esse declara ter sido testemunha ocular de tudo que será narrado. Nesse sentido, é possível afirmar que há um avanço em relação ao modo medieval de pensamento, à medida que se substitui o “ouvir falar” pela vivência, tornando a experiência um elemento essencial para garantir a verdade de um texto, principalmente no que se refere às narrativas de viagens no século XVI.

Cristóvão Colombo parte em viagem rumo às Américas pretendendo comprovar e confirmar todos os elementos maravilhosos, ou diabólicos, descritos nos relatos de Marco Pólo, em uma atitude característica da mentalidade medieval (TODOROV, 1982, p. 16). Léry, ainda que carregue consigo toda a influência desse imaginário carregado de monstros e bestas, seres míticos e assombrosos, o aplica apenas como parâmetro de comparação para descrever o desconhecido.

Levando-se em conta que os bestiários pretendiam reunir todo o conhecimento medieval acerca de seres míticos ou monstruosos e que essas criaturas podem, de certo ponto de vista, ser associadas ao diabólico, ao

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assombroso, para determinada cultura e uma época específica, é possível afirmar que a narrativa de Léry é marcada pela presença do Maligno.

Pode-se afirmar, ainda, que Léry faz parte de um mundo de transição, marcado pelas imprecisões de sua cosmovisão e pelos problemas em entender o novo e o desconhecido.

Existem, no modo de pensar de Léry, muitos elementos que fazem parte do modo de pensar medieval, mas sua interpretação desses elementos não pode mais ser considerada medieval, visto que tem por base a vivência do fato narrado.

Seu retrato da natureza ameríndia é marcado por elementos típicos da época moderna, e relatos fantásticos de peixes dourados. Essa combinação de elementos na narrativa do viajante francês revela uma transição entre o que, de acordo com Pires (2003), “poderíamos chamar de mentalidade medieval e [a mentalidade] moderna”.

Nesse sentido, é possível concluir que nas narrativas de viagens do século XVI, mais especificamente em Viagem à terra do Brasil, de Jean de Léry, percebe-se a presença do diabólico e do maravilhoso relacionados à mentalidade medieval. Isso tornava possível a crença no bizarro e no estranho e, sobretudo, permitia descrevê-lo a um público que comungava do mesmo imaginário, no qual ainda cabia o deslumbramento.

REFERÊNCIAS

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COUSTÉ, A. Biografia do diabo: o diabo como a sombra de Deus na História.

Tradução: Lucas de Albuquerque. 2 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.

FONSECA, P. C. L. Identidades bestiárias na colônia: monstruosidade, gender e ordem política na cronística portuguesa sobre o Brasil dos séculos XVI e XVII.

2003. Disponível em:

http://200.137.221.132/index.php/sig/article/viewPDFInterstitial/3767/3532.

Acesso em: 04 fev. 2011.

FLUSSER, V. A história do diabo. São Paulo: Annablume, 2005.

FRANCA, V. G. O imaginário medieval bestiário em “Viagem à terra do Brasil”

de Jean de Léry. Disponível em: http://www.ucm.es.html. Acesso em: 02 fev.

2011.

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GIMENEZ, J. C. A presença do imaginário medieval no Brasil colonial: descrição dos viajantes. Disponível em: http://periodicos.uem.br. Acesso em: 04 fev.

2011.

LÉRY, J. de. Viagem à terra do Brasil. Tradução e notas de Sérgio Millet. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1980.

MEISTER, G. S. Depois da Idade Média o diabólico invade a “Idade Mídia” – Conceitos e representações. Disponível em: http://tede.utp.br. Acesso em: 25 set. 2010.

MUCHEMBLED, R. Uma história do Diabo: séculos XII-XX. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001.

PALAZZO, C. L. Permanências e mudanças no imaginário francês sobre o Brasil (séculos XVI a XVIII). Disponível em:

http://www.revistasusp.sibi.usp.br. Acesso em: 06 fev. 2011.

PIRES, F. P. Jean de Léry: Entre a medievalidade e a modernidade. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas. Acesso em: 05 fev. 2011.

SOUZA, L. de M. e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

TODOROV, T. A conquista da América. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo:

Martins Fontes, 1982.

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ORGULHO E PRECONCEITO E ZUMBIS: O DIÁLOGO ENTRE O