• Nenhum resultado encontrado

ADAPTAÇÃO FÍLMICA DE FRANCO ZEFFIRELLI

Em A megera domada (Productions Verona/Columbia Pictures, 1967), Franco Zeffirelli criou um filme que realçou os elementos de farsa, enaltecendo as regras desse jogo, a tal ponto, que o filme vai além de uma discussão a respeito do texto e de um possível questionamento sobre uma política sexual e comportamentos sociais. O filme não se propõe a resolver questões da família e do casamento de forma a ser útil ou interessante para um público feminista ou machista. Chama a atenção aos valores vigentes de Pádua, declarando guerra à respeitabilidade, ao direito e à religião. As

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 6, 2011.

caracterizações de Petrucchio e Catarina, Senhor e Senhora de um desgoverno, são exageradas pela questão da autenticidade e artificialidade que se estende para além do conjunto e no próprio comportamento dos personagens retratados em Pádua.

O filme não só acentua as mudanças de comportamento de Catarina e Petrucchio, como amplia a visão do jogo inerente à peça. A narrativa fílmica mostra que não só Catarina e Petrucchio não são o que parecem ser, mas que a comunidade de Pádua, como um todo, é hábil no manejo de máscaras.

Zeffirelli substitui a indução da peça de Shakespeare por um prólogo para manter a atmosfera de dissimulação e jogo. O prólogo inicia com a chegada de Lucentio e Tranio, dois homens a cavalo se aproximando da cidade. Eles andam em direção à câmera, mas não olham para ela. Querem chegar à Pádua, a cidade do conhecimento e dos homens cultos. Na perspectiva da cena vê-se um cenário, como se fosse uma paisagem pintada. Na tese Not for an age, but for all time: Shakespeare's romantic comedies on film, Kelly Rivers menciona um artigo de Michael Purcell em que esse dado é observado, reiterando a dissimulação do que vai ser retratado: "(...) ao permitir que a cena pintada domine a cena de abertura, Zeffirelli assegura que estamos ao mesmo tempo intrigados com a sua realidade aparente ainda consciente de sua artificialidade.” (PURCEL, citado em RIVERS, 2010, p. 135).

Zeffirelli elimina a indução conhecida em Shakespeare; a presença de Sly é sugerida na adaptação de Zeffirelli por meio de um bêbado dentro de uma gaiola. Mas esse início de filme, como na peça, prepara o espectador para um jogo no qual se dará um desdobramento de narrativas, sendo possível vislumbrar a mistura de realismo e artificialidade.

Segundo Patrice Pavis, o termo adaptação pode ter vários sentidos, como o de “transposição ou transformação de uma obra, de um gênero em outro” (PAVIS, 2005, p. 10). Quando se trata da transposição de uma mídia para a outra o produto é denominado de transescritura. Pavis aponta diversas manobras que podem ser utilizadas tanto pelo dramaturgo como pelo encenador: essas manobras também são permitidas nas transescrituras:

Cortes, reorganização da narrativa, ―abrandamentos‖ estilísticos, redução do número de personagens ou dos lugares, concentração dramática em alguns momentos fortes, acréscimos e textos externos, montagem e colagem de elementos alheios, modificação da conclusão, modificação da fábula em função do discurso da encenação (...). A adaptação goza de grande liberdade: ela não receia modificar o sentido da obra original, de fazê-la dizer o contrário (cf. as adaptações brechtianas (Bearbeitungen) de Shakespeare, Molière e Sófocles e as ―traduções‖ de Heiner Müller como a de Prometeu.).

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 6, 2011.

Adaptar é recriar inteiramente o texto considerado como simples matéria (...). (PAVIS, 2005, p. 10)

Zeffirelli vê com um novo olhar a cena introdutória de Shakespeare, mas reitera a mesma ironia ao deflagrar a ilusão e a fantasia. Isso é enfatizado à medida que Lucentio e Trânio adentram a cidade. Lucêntio vai tomando consciência que seu paraíso idílico universitário não é tão sereno quanto parece. Após a sua entrada, passa pela gaiola com o bêbado, sendo atormentado por crianças, percebe um homem preso à parede, com uma espécie de cabresto, em que está escrito “Wife Stealer”, recebendo seu castigo por ter roubado esposas.

Ao cavalgar pela cidade, Lucentio fala de todos os conhecimentos que vai ganhar e os assuntos que ele vai estudar, mas não disfarça sua indignação com os habitantes da cidade, diferentemente de seu amigo Trânio, que parece não se importar com o que vê. Trânio lhe chama a atenção para uma prostituta local, uma mulher de estatura baixa, mas que se faz enorme por calçar sapatos com grandes saltos de madeira.

A aparência da mulher é a nossa primeira visualização do papel das mulheres em Pádua. Não se trata somente de uma mulher, consciente de seus amplos dotes físicos, mas ela está segura que sua presença é notada pelos homens e mulheres ao seu redor. Seria uma ilustração de que as mulheres que desafiam a sociedade tradicional são igualmente aceitas por ela.

Uma característica interessante dessa prostituta é que ela "joga com suas forças" através de roupas soltas, cabelos desgrenhados, e saltos de madeira em seus pés. Ela está consciente de que tem uma figura notável e, como tal, envolve o que for preciso para definir-se entre as outras mulheres da cidade.

A natureza enganosa do resto da cidade é talvez melhor ilustrada pela cena na Universidade de Pádua. A sala está lotada com o que parecem ser os estudiosos e professores, acompanhando uma música em coro proferida pelos doutores da Igreja. A entrada de Lucentio nesse local conduz à reflexão do que ele espera encontrar em um lugar tão ilustre e formal de aprendizagem.

Com a abertura dos créditos de rolagem na tela, o acadêmico espetáculo continua. No entanto, o título do filme é introduzido com um tiro de canhão. À medida que o título aparece, a multidão reservada explode em comemoração, as pessoas, outrora reservadas e comportadas por ocasião do ritual de abertura do ano letivo na abadia, abrem mão de convenções e do eruditismo. Segundo Kelly Rivers, a festa que se segue é alusão a um

"charivari", espetáculo público destinado à vergonha de um homem quando esse é controlado por sua esposa:

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 6, 2011.

Em muitos casos, um charivari (ou ―skimmington‖, como o ritual também é chamado) é uma forma pública de reforçar a visão convencional do casamento. A sociedade julga publicamente um homem (e, portanto, sua esposa) ao ir contra as regras e ousar derrubar as noções tradicionais de casamento. (RIVERS, 2010, p.

139)

Os elementos acima dão pistas para o espectador em relação à temática a ser encontrada na peça, funcionando, também, como uma moldura ao introduzir um jogo de ilusões. Pressupõe-se, portanto, que adaptações também constituem transformações em novos contextos.

Na Inglaterra elisabetana/jaimesca, a apropriação/adaptação de textos era também um processo bastante comum. Shakespeare, por exemplo, era mestre na arte de transcriar histórias populares para o palco, tornando-as acessíveis para novas plateias.

As peças do bardo, por sua vez, sofreram sucessivas adaptações ao longo dos séculos em um processo de renovação contínua.

Shakespeare é um dos autores com mais obras adaptadas nas diferentes mídias na contemporaneidade, como cinema, teatro, televisão, entre outras. (SANDERS, 2006, p. 46)

Kelly A. Rivers menciona que Zeffirelli, em sua autobiografia, relata que queria refazer "um clássico" de Hollywood, a primeira adaptação para cinema de A megera domada, apresentada em 1929, por Sam Taylor, mas escolhendo conscientemente atingir um público novo e diferente de muitas adaptações shakespearianas anteriores. Ele não queria um filme que seria limitado a “puristas shakespearianos”; Zeffirelli objetivava o apelo popular, atingir um público mais jovem (RIVERS, 2010, p. 138).

A cena de abertura foi idealizada para atingir esses objetivos. O turbulento festival, em que estudantes comemoram o início das aulas, demonstra, também, a alegria e irreverência dos jovens em uma espécie de

“trote de vestibular". Essa cena carnavalesca é a que melhor representa a alusão à fantasia e à ilusão que Zeffirelli pretendeu manter. A festa desmistifica a igreja, ao representar um pontífice usando mitra e, ao mesmo tempo, uma máscara de porco ou, ao incorporar rituais de bruxaria, representados por homens encapuzados, carregando um doente em uma maca. Freiras e homens vestidos de freiras, caveiras e esqueletos remetem a

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 6, 2011.

um ritual de vida e de morte, compondo um festival alegre de mentiras e ilusões. Trata-se da “Festa da desordem”, um festival carnavalizado, orgiástico, que permitia a subversão da ordem e a inversão das hierarquias.

Nos estudos de Mikhail Bakhtin, em Cultura popular na Idade Média:

O contexto de François Rabelais, esses aspectos poderiam ser considerados reminiscências saturnalescas em que o novo dá lugar ao velho. O poder é questionado e transgredido, sendo a juventude a responsável pela renovação dos velhos hábitos:

As injúrias põem a nu a outra face do injuriado, sua verdadeira face:

elas despojam-no das suas vestimentas e da sua máscara: as injúrias e os golpes destronam o soberano.

As injúrias representam a morte, a passada juventude que se tornou velhice, o corpo vivo transformado em cadáver. Elas são o ―espelho da comédia‖ colocado diante da face da vida que se afasta, diante da face daquele que deve sofrer a morte histórica. Mas nesse sistema, a morte é seguida pela ressurreição do ano-novo, a nova juventude, a nova primavera. (BAKHTIN, 1987, p. 172)

Bakhtin coloca que quase todos os ritos “da festa dos loucos são degradações grotescas dos ritos e símbolos religiosos transpostos para o plano material e corporal: glutoneria e embriaguez sobre o próprio altar, gestos obscenos, desnudamento, etc.” (BAKHTIN, 1987, p. 64).

A festa de rua apresentada por Zeffirelli reitera o que Bakhtin reflete em Rabelais sobre o caráter saturnalesco de suas obras:

As grosserias-destronamento, a verdade dita sobre o velho poder, sobre o mundo agonizante, entram organicamente no sistema rabelaisiano das imagens, aliando-se às pauladas carnavalescas e aos mascaramentos e travestis. Essas imagens, Rabelais procura-as na tradição viva da festa popular do seu tempo, embora conheça perfeitamente a tradição livresca dos saturnais, com seus ritos, disfarces, destronamentos e pauladas. (BAKHTIN, 1987, p. 172)

É imprescindível observar, nesse sentido, que Zeffirelli substituiu o texto da indução shakespeareana, recriando sua obra com base nas alterações decorrentes dos intervalos e diferenças de tempo, espaço e cultura que separam os momentos de produção do texto fonte e da adaptação. Em outras palavras, a adaptação evidencia a constante metamorfose cultural.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 6, 2011.