TATIANA PLATZER DO AMARAL
Deficiência mental leve: processos de escolarização
e de subjetivação
São Paulo
TATIANA PLATZER DO AMARAL
Deficiência mental leve: processos de escolarização
e de subjetivação
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Psicologia, sob a orientação da Profa Marilene Proença Rebello de Souza. Programa: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano.
Linha de Pesquisa: Psicologia Escolar/Educacional.
São Paulo
Ficha Catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca
e Documentação do Instituto de Psicologia da USP
Amaral, T. P.
Deficiência mental leve: processos de escolarização e de
subjetivação. / Tatiana Platzer do Amaral.
–
São Paulo: s.n., 2004.
–
243p.
Tese (doutorado)
–
Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo.
Departamento
de
Psicologia
da
Aprendizagem,
do
Desenvolvimento e da Personalidade.
Orientadora: Marilene Proença Rebello de Souza.
Deficiência mental leve: processos de escolarização e de
subjetivação
TATIANA PLATZER DO AMARAL
Banca Examinadora
________________________
Profa Dra Marilene Proença Rebello de Souza Presidente
________________________
Profa Dra Adriana Marcondes Machado Titular
________________________
Profa Dra Maria Aparecida Affonso Moysés Titular
________________________ Prof Dr José Geraldo Silveira Bueno
Titular
________________________ Profa Dra Marilda Goçalves Dias Facci
Titular
Dedicatória
Tão longe de mim distante! Onde irá? Onde irá? Onde irá teu pensamento!
(Tom Jobim)
Saudades.
Pai
.
Sinto sua falta. A dolorosa fragilidade da vida é sinalizada pela sua ausência.
Lígia
.
O impacto do inesperado. Ainda é muito difícil lidar com a sua ausência.
___________________________
Palavra prima Uma palavra só, a crua palavra Que quer dizer Tudo (Chico Buarque)
Desencanto. Esperança
.
AGRADECIMENTOS
Marilene Proença – Há dez anos você me apresentou a Lígia. Há quase dois anos o inesperado nos colocou o desafio de terminarmos este trabalho. Com competência e carinho, tornou possível o que parecia sem sentido.
Maria Júlia Kovács e Paulo Albertine – Em nome dos Professores do Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela delicadeza e cuidado ao compartilhar a perda da Lígia e viabilizar as condições necessárias para o término do trabalho.
Adriana Marcondes e José Geraldo S. Bueno – A atenta leitura na qualificação contribuiu significativamente para a concretização do trabalho.
J.Leon CrochiK e Sérgio Adorno – A compreensão de vocês tornou a situação menos densa.
Dona Margarida e Dona Regina – As informações possibilitaram novas compreensões acadêmicas. E boas conversas sobre a vida.
Ricardo– O teu amor é a alegria de estarmos juntos.
Juliano– Nasceu e cresce com a mãe estudando. Amor de minha vida.
Regina– Sempre disponível e compreensiva. Mãe e avó atenta.
Neto, Sheila, João e Mimi, Vinicius, Fabiana e Maria Eliza, Fernando, Isadora (em dose dupla) - A família aumentou. É mais gente para contar história e torcer para que tudo dê certo.
César e Adelaide – O primeiro presente e companheiro. A segunda presente ausente. Saudade.
Lau e Valéria– Sempre dando um jeito para sair tudo certinho.
Ana e Jamir - Atentos nos bastidores para que a pesquisa estivesse organizada.
Amigos atentos - Graziela, Flávia, Janete e muitos outros que estiveram no incentivo.
Carmen, Iara, Miriam – Em nome do grupo de docentes do curso de Pedagogia da Universidade de Mogi das Cruzes.
Familiares – Tios e tias compreensivos e na torcida para que eu fique mais tempo nas férias em Araraquara.
Grupo de orientandos da Profa Marilene – Compromissados com a pesquisa séria e com uma sociedade mais justa.
Universidade de Mogi das Cruzes– Apoio e incentivo para a realização da pesquisa.
RESUMO
AMARAL, Tatiana Platzer do. Deficiência mental leve: processos de escolarização e de subjetivação. São Paulo, 2004, p. 243. Tese (Doutorado). Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo.
ABSTRACT
AMARAL, Tatiana Platzer do.
Mild mental handicap: schooling and subjectivation
processes
. São Paulo, 2004, p. 243. Doctorate Thesis. University of São Paulo – Psychology Institute.This doctorate thesis focuses on the subjectivation process of students with mild mental handicap, as well as its production, according to the perspective of two former students of public schools from the State of São Paulo, Brazil. The schooling process is understood as a mediation element between the individual and society, between other students and students with mild mental handicap and it allows us to recognize the importance of the descriptions and the analysis of the former students in relation to their passage through the school system and the process of being classified as special students. The theoretical framework is based on authors connected to the socio-historic approach in School/Educational Psychology, as well as the socio-socio-historic discussions in the field of mental handicap. This research is a study case based on two females, aged 31 and 34, who were formerly enrolled as special students and were interviewed between 2002 and 2003. School documentation, written productions, proposed by the researcher, and interviews with the students’ mothers were used in this study. The analysis was divided into three different moments: social
characterization and characterization of the students’ family; schooling in the condition
of a non-learner, generating mild mental handicap; and living school exclusion. Based on the history of the students, it was possible to trace evidences of a classification and homogenization process, taking place during the school years of students who came from working classes, and which culminated in school exclusion of students with mild
mental handicap. This situation was marked by a general disbelief in the students’
RÉSUMÉ
AMARAL, Tatiana Platzer do. Handicap mental: processus de scolarisation et de subjectivation. São Paulo, 2004, p. 243. Thèse (Doctorat). Institut de Psychologie. Université de São Paulo.
Le thème spécifique de cette thèse de doctorat est centré sur le processus de subjectivation du handicap mental léger, ainsi que sur sa production, à partir de la perspective des exclus des classes spèciales pour handicapès mentaux légers des écoles
publiques de l’Etat de São Paulo. Le processus de scolarisation est entendu comme un
élément de médiation entre l’individu et la socièté, entre l’élève et le handicap mental léger, ce qui permet de reconnaître l’importance des descriptions et des analyses des
exclus en ce qui concerne leur passage à l’école et leur processus d’appartenance à la
condition d’élève spécial. Le référentiel théorique adopté se base sur des auteurs de l’abordage historico-culturel en Psychologie Scolaire/Educationnelle, ainsi que sur les discussions à perspective historico-critique dans le domaine du handicap mental. Cette recherche se caractérise comme une étude de cas, ayant eu comme collaboratrices deux anciennes élèves de classe spéciale pour handicapés mentaux légers, âgées de 31 et de 34 ans, interviewées pendant les années 2002 et 2003. Des carnets scolaires, ainsi que des productions écrites sollicitées par la chercheuse, ont été compilés. De plus, les
mères des interviewées ont collaboré à la recherche. L’analyse a été partagée en trois
moments, à savoir, caractérisation sociale et familiale, scolarisation en condition de
non-apprentissage génératrice du handicap mental léger et expérience de l’exclusion scolaire. Il a été possible de percevoir dans l’histoire des exclus des signes évidents du
processus de classification et d’homogénéisation ayant eu lieu au long de la scolarisation
d’élèves originaires des classes laborieuses, ayant culminé par l’exclusion scolaire en
condition de handicapé mental léger. Cette condition a été marquée par la conviction de l’incapacité d’apprentissage mais a entraîné toutefois des stratégies de résistence, aussi bien de la part des exclus que de leurs mères, dans le but de garantir la scolarisation. Il
existe un douloureux processus d’accomodation de subjectivité, imprégné par
l’imputation de la faute, dans lequel les sentiments impliqués ont pu être perçus dans des récits marqués, entre autres, par l’abandon, la tension, les pleurs, le désespoir, la révolte, la solitude, la peur. Les exclus ont vécu une histoire d’intense perte de droits
vitaux et sociaux par l’incorporation de la conviction de leur propre incapacité et de l’éternelle nécessité de la tutèle de quelqu’un de plus responsable, cette conviction étant
produite en partie par les rapports avec les éducateurs et les agents de santé.
L’efficacité du processus d’accomodation de subjectivité a lieu par l’auto
-responsabilisation de l’échec, associée à l’insistant désir de retourner à l’école, étant donné que les exclus sont en fait les victimes d’une école publique historiquement
SUMÁRIO
Resumo Abstract Resumée
Introdução 01
Breve panorama sobre a rede de ensino em Educação Especial 08
Capítulo 1 – Escolarização e Deficiência Mental Leve: apontamentos para uma análise da produção acadêmico-científica no Brasil
15
1.1 Pesquisas sobre o “estado da arte” na área de Educação Especial e suas
implicações para a Deficiência Mental
16
1.2 Pesquisas sobre a história e as concepções a respeito da Deficiência Mental
21
1.3 Discussão a respeito da produção a Deficiência Mental Leve na escola 38 1.4 Escolarização do aluno com Deficiência Mental: uma breve revisão da literatura
49
1.5 Caracterização da Deficiência Mental Leve e a questão psicodiagnóstica 61 1.6. Ouvindo as marcas da exclusão escolar a partir da ótica do indivíduo
com deficiência mental
84
Capítulo 2 – Delineamento e discussão sobre o referencial teórico: a leitura da deficiência a partir de uma perspectiva histórico-crítica
90
2.1 Normalidade, estigma e desvio 91
2.2 Deficiência, diferença e incapacidade 97
Capítulo 3 – A pesquisa 110
3.1 Objetivos 110
3.2 Caracterização da pesquisa 110
3.3 Análise dos dados 119
Capítulo 4 – Histórias de alunos egressos de classe especial para deficientes mentais leves
121
4.1 A história de Marina 121
4.1.1 Caracterização social e familiar 121
4.1.2 O processo de escolarização e sua contribuição para a constituição da condição de não aprendiz geradora da deficiência mental leve
128
mental leve
4.2 A história de Beatriz 146
4.2.1 Caracterização social e familiar 146
4.2.2 O processo de escolarização e sua contribuição para a constituição da condição de não aprendiz geradora da deficiência mental leve
152
4.2.3 Vivência da exclusão escolar decorrente da condição de deficiente mental leve
161
Capítulo 5 – “Desenvolvimento cognitivo abaixo do esperado para a idade”: encontros e desencontros na história de Marina e Beatriz
175
5.1 Caracterização social e familiar 178
5.2 O processo de escolarização e sua contribuição para a constituição da condição de não aprendiz geradora da deficiência mental leve
182
5.3 Vivência da exclusão escolar decorrente da condição de deficiente mental leve
190
Considerações Finais 203
Referências 210
Introdução
Refletir sobre a escola pública é algo complexo e gerador de grandes desafios,
seja para conhecer, entender, explicar e até mesmo intervir no seu cotidiano. É uma
dura realidade provocadora de inquietações e indignações constantes. Evidencia-se o
fato de a escola pública mostrar-se incapaz de promover, quantitativa e
qualitativamente, a escolarização mínima e o ensino médio aos seus alunos, buscando
muitas vezes, justificar, historicamente, sua incompetência nas características
individuais ou familiares da sua clientela. Durante muito tempo, fomentou-se, por meio
de pesquisas acadêmicas e do senso-comum, a idéia de que a escola pública acabava
sendo vítima de uma clientela inadequada, incapaz de usufruir as oportunidades e
vantagens por ela oferecidas. É a partir dos anos de 1970 que vem se fortalecendo o
referencial crítico de análise da relação escola e sociedade, e com ele abrem-se
possibilidades de maior compreensão da escola, visando a construção de alternativas de
superação de aspectos dessa realidade.
Considerando-se o contexto da educação pública brasileira, esta pesquisa não
tratará do ensino básico de maneira geral, mas centrará seu foco em determinado grupo
de crianças, aquelas que não obtiveram êxito no sistema regular de ensino e foram
encaminhadas a uma das modalidades de ensino especial, oferecidas na rede pública:
Classe Especial para Deficientes Mentais Leves. Para melhor compreender a escolha
desta temática no campo da pesquisa, retomamos, brevemente, o caminho percorrido
para a definição do problema de pesquisa, gerador deste trabalho.
A presente pesquisa é um desdobramento da dissertação que elaborei para o
Programa de Mestrado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, intitulada
Recuperando a história oficial de quem já foi aluno especial, defendida em abril de 1998, sob a orientação da Profa. Lígia Assumpção Amaral. Ao longo do primeiro ano de
curso, a proposta de coleta de dados previa dois momentos para a realização da
alunos egressos da classe especial, por meio de análise dos documentos disponíveis nos
prontuários dos mesmos, no arquivo morto; e, no segundo momento, haveria o contato
com alguns ex-alunos selecionados, para realizarmos entrevistas sobre a história de
escolarização anterior e posterior à classe especial, e analisarmos a compreensão dos
mesmos sobre a própria história de permanência na classe especial.
Na primeira fase da pesquisa, informações preciosas e relevantes surgiram na
análise inicial dos achados. No momento do Exame Geral de Qualificação, uma nova
possibilidade surgiu: centrar a pesquisa na primeira fase e aprofundar os achados. A
justificativa da Banca Examinadora residia na necessidade e na importância de maior
sistematização dos achados na pesquisa documental, o que não impediria a continuidade
da proposta inicial, posteriormente, no Doutorado. Assim sendo, o projeto de Mestrado
teve como preocupação delinear a história registrada nos documentos oficiais da escola.
Os achados da pesquisa referiam-se à trajetória escolar dos ex-alunos de classe
especial, o tempo de permanência na classe especial e na classe comum, os laudos de
encaminhamento, os profissionais e o tipo de avaliação que realizavam, entre outras
informações.
Uma das premissas da Dissertação de Mestrado era a de que o estudo sobre
alunos especiais só adquire real sentido, quando é possível perceber e reconhecer que a
classe especial faz parte da história da escola pública, o que acabou orientando os
pressupostos teóricos. Portanto, a discussão teórica da dissertação de Mestrado
privilegiou dois eixos: a história da construção do discurso do fracasso escolar no Brasil,
e o confronto entre a realidade e a proposta oficial da educação especial. Também
foram feitos alguns breves apontamentos de possíveis encontros entre ambos.
A premissa fundamental era a de que a classe especial configurava-se como um
espaço de preconceito, segregação e discriminação, o que desencadeou a preocupação em
se entender e pontuar o processo de construção do aluno especial, com base nas
contribuições das pesquisas citadas. A caracterização da classe especial para
deficientes mentais leves envolvia uma estrutura diferenciada dentro do ensino regular,
configurando-se como um sistema autônomo e fechado, com objetivos e conteúdos
paliativa da incompetência escolar, o que possibilitava a absorção de uma parcela dos
indesejados das classes comuns, evidenciando, assim, sua estreita relação com o
fracasso escolar.
Nos meandros das práticas escolares, marcadas pelo preconceito e
estigmatização dos alunos das camadas populares, há um número de crianças que, por não
corresponderem a um determinado padrão de aprendizagem e comportamento
considerado o ideal e correto, acabam sendo identificadas como passíveis de
necessitarem de um ensino diferenciado. É importante ressaltar que esse processo de
identificação do suposto aluno especial se inicia na classe comum e necessita do
referendo de um profissional, ou equipe multiprofissional, fora da escola, para legitimar
a condição diferenciada. É um tipo de deficiência que é detectada durante o processo de
escolarização, não negando, assim, o processo de construção dessa condição, no interior
da própria escola. Ao mesmo tempo, é preciso ponderar que não são todas as crianças
que se beneficiam da mesma maneira das condições de ensino que lhes são oferecidas; e
este dado não é específico da escola pública, mas faz parte de qualquer proposta de
ensino e aprendizagem, sem distinção de classe social.
Pode-se dizer, então, que o diagnóstico da deficiência mental leve na escola tem
íntima relação com o grande entrave da escola pública, que é o fenômeno do fracasso
escolar. Essa identificação não está referendada apenas nos critérios oficiais, mas
também em decisões pessoais/individuais, abrangendo uma ampla gama de motivos, que
têm em comum a imputação da responsabilidade e/ou culpa ao aluno. Assim, o aluno pode
ser merecedor de ensino especial por ter uma história escolar marcada pelo fracasso,
justificado por suas características pessoais e familiares, por mitos, como o da
desnutrição, e por dificuldades de aprendizagem, decorrentes do processo de
alfabetização.
Após a identificação dos supostos alunos especiais, estes são encaminhados para
uma avaliação psicológica em que o foco é o indivíduo e seu funcionamento intrapsíquico.
É possível afirmar que os psicólogos, ao privilegiarem esse tipo de avaliação, acabam
demonstrando o próprio desconhecimento da estrutura escolar, além de reforçarem
próprios preconceitos em relação às famílias pobres, referendados pelos resultados
obtidos nos testes psicológicos.
Diante do diagnóstico e da inserção dos alunos na classe especial, verifica-se uma
estagnação da vontade de aprender, que tende ao agravamento, com o passar do tempo,
pois o aluno é aprisionado na sua condição de especial: deficiente mental leve. Pode-se
afirmar que há um distanciamento efetivo entre a proposta oficial e a realidade da
classe especial, marcado por contradições significativas produtoras de um certo tipo de
excepcionalidade, que ‘aparece’ no início da alfabetização e, depois de ‘diagnosticada’,
fica impregnada no aluno.
Por intermédio dos documentos analisados, na pesquisa de Mestrado, foi possível
reafirmar as contribuições anteriores e trazer novos achados para se aprofundar o
conhecimento da realidade da classe especial. Brevemente, serão expostas algumas das
contribuições da análise dos 121 prontuários individuais de ex-alunos de classe especial,
disponíveis no arquivo morto de duas escolas pesquisadas. É importante ressaltar que a
forma de registro das informações não segue o mesmo padrão nas duas escolas
pesquisadas, por isso os dados foram coletados nas mais diversas fontes escritas
possíveis, desde que cumprissem o critério do arquivamento.
Por meio dos achados, foi possível perceber que a maioria dos alunos não
permanece o tempo mínimo de dois anos na classe comum, antes de ser encaminhada para
a classe especial, o que deveria acontecer segundo as orientações oficiais. Uma vez na
classe especial, a possibilidade desses alunos retornarem ao ensino comum novamente é
de 30%. Essa mesma informação pode ser colocada de outra maneira: 70% dos alunos
que são encaminhados para a classe especial não mais retornam ao ensino comum!
A maioria dos alunos “abandona” a escola, após uma permanência, na classe
especial, de até seis anos. Quanto aos 30% que retornam oficialmente à classe comum, a
maioria é reinserida nas séries iniciais, permanece nelas de dois a quatro anos, e
‘abandona’ a escola, sem completar a 5ª série. Quanto aos profissionais que legitimam os
encaminhamentos dos alunos, para a classe especial, percebeu-se que não são apenas os
psicólogos, pois há também médicos e assistentes sociais. O que há em comum entre eles
‘deficientes mentais leves’, bem como em considerar que o simples encaminhamento para
tais classes seja suficiente para garantir a escolaridade. O referencial de classificação
da Deficiência Mental da Organização Mundial de Saúde, considerado como o parâmetro
oficial nos documentos, não é o único a ser seguido, pois outras classificações são
adotadas, e nem sempre há menção da fonte. A compreensão classificatória da
inteligência de uma pessoa, que já em si é bastante questionável, agrava-se, na medida
em que não fica claro o parâmetro utilizado nos laudos pesquisados. Não obstante, o
efeito final, em todos os casos, é o mesmo: o aluno é identificado como deficiente
mental e necessita de um atendimento diferenciado pedagogicamente. Quanto às
informações pedagógicas, do processo de construção de conteúdo de cada aluno, nada foi
localizado, pois, nos prontuários, havia maior predominância de informações
comportamentais e poucas, quase nulas, informações sobre o desenvolvimento acadêmico
daquele aluno.
No entanto, o que mais nos chamou a atenção nesta pesquisa foram as lacunas ou
ausências presentes nos registros dos documentos analisados. Vale ressaltar que são
ausências reveladoras da história dos excluídos da escola, aquela que produz o não
aprendiz, que o destituiu da posição de agente de sua própria escolarização, em nome de
uma escola incompetente.
Inicialmente, há ausência de uma organização mínima e comum entre as escolas,
no que diz respeito à seleção e arquivamento dos documentos, o que acaba
comprometendo a qualidade e a quantidade de informações sobre a passagem dos alunos
por elas, mais especificamente, pela classe especial. Esse fato evidencia-se na análise
documental, de tal forma que é possível verificar que os alunos ‘somem’, ‘desaparecem’,
literalmente, pois repentinamente não há mais nenhum tipo de anotação sobres eles. É
como se o tempo tivesse parado naquele momento da escolarização, sem que possamos
saber se ele passou de ano, se foi transferido, se foi para a classe comum; porém, no
geral, abandonaram a escola.
Diante do que foi verificado, torna-se pertinente a inquietude frente ao destino
desses alunos; sendo assim, dando continuidade à pesquisa de Mestrado, retomamos o
especial. Por conseguinte, muitas motivações podem ser elencadas para a continuidade
da pesquisa, tais como: como vivem os ex-alunos que freqüentaram a classe especial?
Estão inseridos no mercado de trabalho? De que forma? Qual o grau de escolarização
máximo atingido pelos ex-alunos? Retornaram à escola? Quais estratégias utilizadas?
Qual o significado da passagem pelo ensino especial em suas vidas? Quais as
aprendizagens significativas que ocorreram durante a permanência na classe especial?
Recordam qual o motivo e a forma de encaminhamento para a classe especial?
Concordam? Quais os efeitos/conseqüências da escolarização nas suas vidas, submetidos
que foram a um processo de homogeneização da própria individualidade, “encaixados” na
categoria dos deficientes mentais leves? Considerando que esse processo não é vivido da
mesma maneira por todos, como aparecem as diferenças? Quais terão sido os esforços
individuais para se libertar das amarras da condição de especial, na escola pública? Qual
a lição aprendida na escola? Como extrapola os muros escolares? Quais as lembranças
dessa escola?
São perguntas que afloraram, diante da realidade excludente da escola pública e,
conseqüentemente, da classe especial. Não são as únicas perguntas viáveis, mas podem
ajudar a nortear o início da pesquisa, assim como servir de base para outras, e para a
delimitação de seu objetivo.
No entanto, é preciso fazer uma ressalva importante: a estrutura e
funcionamento da escola pública, mais especificamente a classe especial, presente na
pesquisa, sofreram alterações, pela nova política educacional, a partir de 1994,
culminando com os Parâmetros Nacionais Curriculares para alunos portadores de
necessidades especiais, em 1996. Sem o intuito de aprofundar a discussão, é pertinente
afirmar que essa política inclusiva de educação trouxe uma série de impactos, mas com
limites explícitos na garantia de uma escola democrática compromissada com seus
alunos, portadores ou não de deficiência. Nessa nova perspectiva, há uma orientação
enfática para a permanência dos alunos portadores de necessidades educativas especiais
em salas comuns, evitando-se a formação de novas classes especiais, principalmente para
deficientes mentais leves. Mesmo assim, apesar de muitas classes especiais terem sido
abertura de novas classes especiais, de acordo com os parâmetros estabelecidos
legalmente. Portanto, a importância de compreender qual o sentido da classe especial da
escola pública, a partir dos egressos, não se esvazia com essas mudanças; na verdade se
fortalece, diante da própria dificuldade de cumprir seu papel social.
Logo, uma das primeiras premissas da presente pesquisa, que pode ser delineada,
refere-se aos impactos significativos da classe especial na vida dos ex-alunos, no plano
do sujeito, da constituição da individualidade, fundamentalmente na desapropriação da
condição de aprendizes e capazes. É possível afirmar que a passagem pela classe especial
deixa a marca da anormalidade, sendo assim:
Antes de mais nada, uma constatação: o fato é que (seja da ótica de quem vive, seja da ótica de quem vê) a deficiência, do ponto de vista psicológico, jamais passa em brancas nuvens. Muito pelo contrário: ameaça, desorganiza, mobiliza. Representa aquilo que foge ao esperado, ao simétrico, ao belo, ao eficiente, ao perfeito... e, assim como quase tudo que se refere à diferença, provoca a hegemonia do emocional sobre o racional. (AMARAL, 1992, p. 60).
Desta forma, a deficiência mental leve é compreendida como um fato a ser
problematizado, o que requer o reconhecimento da contribuição de outras pesquisas
acadêmico-científicas sobre o assunto, sendo que a contribuição do presente trabalho
está na compreensão da constituição dessa condição, a partir da perspectiva dos alunos
egressos da classe especial para deficientes mentais leves.
A discussão sobre a Educação Especial pode ser feita a partir de múltiplos
olhares, a saber, orientada pela característica da deficiência; pela condição de
atendimento ao deficiente; pela análise crítica da delimitação da deficiência, entre
outras. Tal complexidade requer uma opção clara de enfoque e de delimitação do
problema.
O referencial teórico adotado pauta-se em autores da abordagem
histórico-cultural em Psicologia Escolar/Educacional, bem como nas discussões de perspectiva
histórico-crítica no campo da Educação e da Deficiência. O recorte temático
estabelecido nessa Tese de Doutorado centra-se no processo de escolarização e de
subjetivação da deficiência mental leve, a partir da perspectiva dos egressos das classes
especiais para deficientes mentais leves de escolas públicas no estado de São Paulo. O
e a sociedade, entre o aluno e a deficiência mental leve, o que permite reconhecer a
importância das descrições e análises dos egressos de sua passagem pela escola e do
processo de enquadramento na condição de aluno especial. (Oliveira, 1995)
Dadas tais considerações, a presente pesquisa tem como objetivo compreender os
processo de escolarização e subjetivação da pessoa com deficiência mental leve
1
, a partir do relato das egressas da classe especial do ensino público paulista. Duasquestões são formuladas com base em tal objetivo, a saber, a partir do relato de alunas
egressas:
* Como o processo de escolarização contribuiu para a constituição da
condição de não aprendiz geradora da deficiência mental leve?
* Como a vivência da exclusão escolar, decorrente da condição de deficiente
mental leve é significada?
Participaram da pesquisa duas ex-alunas de classe especial para deficientes
mentais leves, idade de 31 e 34 anos, entrevistadas nos anos de 2002/2003. Foram
compilados documentos de prontuários escolares, bem como produções escritas
solicitadas pela pesquisadora. Além disso, colaboraram com a pesquisa as mães das
entrevistadas.
Considerando que o objetivo deste trabalho é compreender o processo de
escolarização e de subjetivação da condição de alunos deficientes mentais leves na
classe especial, é importante introduzir alguns dados de natureza estrutural a respeito
da rede de ensino oferecida às pessoas com deficiência
.
Breve Panorama sobre a rede de ensino em Educação Especial
Neste trabalho, parte-se da definição de Educação Especial contida na Lei
nº9394, de 20/12/1996, a atual Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional.
Segundo a LDB, a Educação Especial é uma modalidade de educação escolar, oferecida
preferencialmente na rede regular de ensino, para pessoas portadoras de necessidades
1 É sabida a possibilidade de utilização de outras nomenclaturas, como, por exemplo, portador de
necessidades educativas especiais, porém há uma clara opção nesta pesquisa por utilizarmos as expressões
educacionais especiais. Assim, ela perpassa transversalmente todos os níveis de ensino,
desde a educação infantil ao ensino superior. Essa modalidade é considerada como um
conjunto de recursos educacionais e de estratégias de apoio que estejam à disposição de
todos os alunos, oferecendo diferentes alternativas de atendimento.
De acordo com as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial em Educação
Básica2 (2001), existem diferentes formas de atendimento educacional ao portador de
deficiência mental, assim como ao de outras deficiências. Preferencialmente, deve
ocorrer em instituições escolares que ofereçam os níveis, etapas e modalidades da
educação escolar previstos na LDB (1996), ou seja, nas escolas públicas e privadas da
rede regular de ensino, com base nos princípios da educação inclusiva. Em condições
extraordinárias, os serviços de Educação Especial podem ser oferecidos em classes
especiais, escolas especiais, classes hospitalares e em ambiente domiciliar.
As classes especiais são descritas como um serviço de caráter transitório, sendo
o professor um especialista em Educação Especial. Devem ser organizadas de acordo
com as necessidades especiais dos alunos, com os respectivos equipamentos e materiais
específicos, bem como adaptações curriculares necessárias. As atividades devem ser
desenvolvidas, em alguns momentos, em conjunto com os demais alunos das classes
comuns. O retorno do aluno à classe comum é uma perspectiva que sempre deve estar
presente.
As escolas especiais3 devem buscar atender alunos que apresentem necessidades
educacionais especiais e que requeiram atenção individualizada nas atividades de vida
autônoma e social, assim como flexibilização e adaptação impossíveis de acontecer nas
escolas comuns.
As classes hospitalares são oferecidas para alunos impossibilitados de freqüentar
aulas, em razão de tratamento de saúde que necessite de internação hospitalar ou
atendimento ambulatorial. Os serviços em ambiente domiciliar destinam-se a alunos em
tratamento de saúde que necessitem de permanência prolongada em domicílio.
2 Dados disponíveis no site: www.mec.gov/seesp/legislacao.sthm
3Essa modalidade vem sendo polemizada e questionada pelo isolamento e segregação vividos por crianças e
Caracterizados os serviços de atendimento ao aluno deficiente, é preciso
ressaltar que o tipo de atendimento presente nesta pesquisa é a Classe Especial que,
posteriormente, será detalhada e analisada.
Dando continuidade à caracterização dos atendimentos em Educação Especial, a
partir de 1996, o Ministério da Educação iniciou um levantamento sistemático sobre os
dados da Educação Especial no Brasil.4 Alguns dados sobre a matrícula dos alunos
portadores de necessidades especiais são apresentados neste trabalho e referem-se ao
período de 1996 a 1999.
O mapa da distribuição de matrículas na rede de ensino é o seguinte:
Com relação à matricula por modalidade de ensino a situação é:
Ao considerar o nível de ensino, a matrícula está distribuída da seguinte forma:
4 Dados disponíveis no site: www.mec.gov/seesp/dados.sthml. As consultas foram feitas nos dias 15 de maio
Finalizando os dados, a matrícula por tipo de necessidade especial está
configurada assim:
Alguns comentários podem ser feitos com base nesses dados e que denotam como
o atendimento ao aluno com necessidades especiais comparece no Ministério de
Educação - MEC. Esse atendimento é realizado principalmente pelas redes particular
(47,4%) e pública (52,6%). É interessante assinalar que o percentual de atendimento na
rede municipal (20,2%) é bastante significativo, quando comparado às demais esferas
públicas, o que, em princípio, pode ser uma conseqüência do processo de municipalização
do ensino, iniciado a partir de 1990. Entre 1996 e 1999, houve um aumento
significativamente superior do atendimento da esfera municipal, de aproximadamente
115,2%, em relação às esferas estadual e federal.
A modalidade de atendimento com maior abrangência, tanto na rede pública como
na rede particular de ensino, é a Escola Especializada. A Classe Especial é outra
modalidade de ensino bastante utilizada no Brasil (22,6%), e tem íntima relação com a
importantíssimo entre o atendimento em sala comum e o atendimento especializado para
cada uma das modalidades de deficiência, tem sido pouco utilizada (6,6%).
Nesses dados, é evidente que a maior parte dos alunos está sendo atendida no
Ensino Fundamental (52,3%), isto é, nas séries iniciais da escolarização, em que se tem o
início sistematizado do processo de alfabetização. A pré-escola refere-se a 17,9% e o
item Outros, não especificado, a 16,3%. O atendimento em Creches, Ensino Médio,
Educação de Jovens e Adultos não atinge 10%. Pode-se afirmar, pelos dados analisados,
que o momento da alfabetização é o mais valorizado e prestigiado pelas políticas públicas
de educação, principalmente na década de 1990, recebendo um montante maior de
recursos que outros níveis educacionais.
Também a partir da década de 1990, uma tentativa de maior estruturação no
atendimento às crianças de zero a seis anos tem se dado no Brasil. Porém, em
comparação com as mudanças implementadas no Ensino Fundamental, a Educação Infantil
não tem merecido dos gestores a implementação de políticas públicas educacionais que
garantam à população esse nível de Ensino, sendo o número de vagas oferecido ainda
insuficiente.
No Ensino Médio, há uma queda expressiva, 4,9%, que também tem íntima relação
com a história da escola pública, pois a luta pela sua democratização ainda está voltada
para as séries iniciais. Os índices de atendimento por tipo de necessidade especial são
inquietantes, pois 52,9% referem-se a alunos portadores de deficiência mental. Os
únicos acima de 10% são relativos à deficiência auditiva e múltipla, enquanto nas demais
deficiências, a saber, física, visual, outras necessidades, superdotados e condutas
típicas, os índices estão abaixo de 10%. Ao fazer a junção dessas quatro tabelas temos
um panorama que nos mostra a gravidade do problema a ser enfrentado na área de
Educação Especial: os alunos portadores de deficiência mental (52,9%) estão
matriculados, majoritariamente, no ensino fundamental (52,3%) da rede pública (52,5%),
em classes especiais, salas regulares, com ou sem sala de recurso, ou escolas
especializadas.
Desta breve análise dos dados, constata-se que a escola pública brasileira
deficiência mental basicamente no Ensino Fundamental. Mas há ainda uma série de
processos que impedem que grande parcela desses alunos atinja a escolarização
completa, ou no mínimo o Ensino Médio completo, compondo o que atualmente se
denomina de Ensino Básico. O alto índice de reprovação, evidenciado pelos dados
educacionais e que tem como conseqüência a defasagem série e idade, torna-se um
componente fundamental na interpretação do baixo desempenho acadêmico, enquanto
possível quadro de deficiência mental em crianças e adolescentes. Considerando as
histórias de duas crianças que participaram intensamente do sistema público de ensino,
analisadas neste trabalho, vemos que nossas colaboradoras são representantes desse
imenso grupo de alunos com deficiência, presentes nas estatísticas governamentais.
Nesta pesquisa, procuraremos transitar com essas ex-alunas pelos bastidores do
sistema regular de ensino naquilo que é reservado aos deficientes, desvelando aspectos
de um processo de aprofundamento do quadro de deficiência que não comparece nas
estatísticas do Ministério da Educação, mas que revelam os caminhos tortuosos
percorridos por aqueles que, mesmo apresentando uma deficiência considerada pelos
especialistas como leve, procuram na escolarização um sentido para a vida, um direito de
cidadania. A coragem é a marca desse trabalho, coragem para enfrentar situações de
preconceito, sofrimento, desvalorização, incapacidade... São histórias de resistência, de
sobrevivência, de abnegação.
Para realizar esta tarefa, apresentaremos esta Tese com a seguinte estrutura:
no Capítulo 1 intitulado, Escolarização e Deficiência Mental Leve: apontamentos para uma análise da produção acadêmico-científica no Brasil, selecionamos um grupo significativo de trabalhos de pesquisa na área de Educação Especial, visando tecer um
panorama do conhecimento construído sobre a questão da Deficiência Mental no Brasil.
Sabemos que não esgotamos toda a produção na área, mas consideramos que os
trabalhos escolhidos representam as principais discussões levadas a efeito, na
atualidade, no campo da Educação Especial. Daremos continuidade ao trabalho, no
deficiência a partir de sua constituição, com base nas raízes históricas, sociais e
culturais. Analisaremos com esses autores os conceitos de normalidade, desvio, estigma,
diferença e incapacidade, em perspectiva crítica, discutindo o lugar da diferença e da
diversidade humana. O passo seguinte, centrar-se-á na apresentação da pesquisa
realizada, apresentando seus objetivos, colaboradores, procedimentos e processo de
análise realizado, intitulado Capítulo 3: A pesquisa. Em seguida, no Capítulo 4, intitulado Histórias de alunos egressos de classe especial para deficientes mentais leves apresentamos os casos de duas alunas egressas de Classes Especiais para Deficientes Mentais Leves: Marina e Beatriz. Percorremos suas histórias em três direções: caracterizando-as nos aspectos social e familiar; o processo de escolarização e
sua contribuição para a constituição da condição de não aprendiz geradora da deficiência
mental leve; vivência da exclusão escolar decorrente da condição de deficiente mental
leve. No Capítulo 5 e último, denominado “Desenvolvimento cognitivo abaixo do
esperado para a idade”: encontros e desencontros na história de Marina e Beatriz
realizamos um trabalho de interlocução das histórias das egressas com autores que
pensam criticamente a deficiência. E por fim, nas Considerações Finais, faremos alguns apontamentos na direção da necessidade de reconsideramos aspectos da escolarização
que conformam aqueles que por ela passam....
Acreditamos que este trabalho possa contribuir para as áreas de Psicologia e de
Educação, colaborando na direção de ampliar o processo de humanização a ser
percorrido por todos aqueles que escolheram a educação como tarefa a ser
desempenhada socialmente. Longe de sermos pessimistas, temos como finalidade atingir
a melhoria da Educação e da educação escolar com qualidade social no país, questionando
concepções e práticas realizadas por profissionais das áreas de Saúde e de Educação
que, por quaisquer motivos, delas se distanciam.
Capítulo 1
–
Escolarização e Deficiência Mental Leve: apontamentos para uma
análise da produção acadêmico-científica no Brasil
A luta por uma escola para todos somente poderá ser conseqüente quando a escola for, além de um local de aprendizagem, um local de tomada de consciência e de luta contra as desigualdades sociais em estreita relação com os movimentos sociais emancipatórios, quando então a escola encontrará seu lugar formativo/instrutivo no nosso tempo. Além de conteúdo, a escola deve ensinar novas relações com as pessoas e com a natureza. Mais do que nunca, temos que saber ler as medidas que estão sendo propostas usando um instrumental teórico que nos permita desvelar as reais intenções e as práticas das atuais políticas públicas e armar a resistência. O neoliberalismo e suas "teorias" educacionais passarão ainda que nos reste muita luta. (Freitas, 2002) 5
A área de Educação Especial no Brasil encontra-se em um momento histórico de
grande produção acadêmica, presente no levantamento de literatura especializada
realizado para a elaboração deste trabalho de Tese.
Considerando-se o significativo número de artigos científicos, Dissertações e
Teses, bem como de livros publicados na área de Educação Especial nos últimos trinta
anos, e seu interesse para os objetivos desta pesquisa, apresentaremos uma forma de
sistematização dessa produção, organizada em seis grandes eixos temáticos, a saber:
1.1 Pesquisas sobre o “estado da arte” na área de Educação Especial e suas implicações
para a Deficiência Mental
1.2 Pesquisas sobre a história e as concepções a respeito da Deficiência Mental
1.3 Discussão a respeito da produção a Deficiência Mental Leve na escola
1.4 Escolarização do aluno com Deficiência Mental: uma breve revisão da literatura
1.5 Caracterização da Deficiência Mental Leve e a questão psicodiagnóstica
1.6. Ouvindo as marcas da exclusão escolar a partir da ótica do indivíduo com deficiência mental
Estruturamos a apresentação de cada um dos itens seguindo os seguintes passos:
a) breve descrição dos trabalhos selecionados, cronologicamente; b) levantamento dos
elementos centrais que fazem referência ao tema da deficiência/deficiência mental leve
e Educação Especial; c) síntese dos aspectos que consideramos essenciais, no que tange
as questões da escolarização e subjetivação do aluno com deficiência mental/deficiência
mental leve.
1.1 Pesquisas sobre o “estado da arte” na área de Educação Especial e suas implicações para a Deficiência Mental
Para delinear a produção acadêmico-científica na área da Educação Especial no
Brasil foram selecionados alguns relatos de pesquisas. A maioria dos trabalhos
selecionados realiza levantamentos de temas, abordagens e contribuições, sem que haja
uma preocupação de análise ou comparação dos achados das mesmas. Os relatos
selecionados são:
Título Autor Publicação Ano
A Pós-Graduação em Educação Especial no Brasil: análise crítica da produção discente
NUNES, L.; FERREIRA, J.R.; GLAT, R.; MENDES, E.
Artigo - Revista Brasileira de Educação Especial
Set.1999
O GT de Educação Especial: análise da trajetória e da produção apresentada (1991-2001)
FERRERIA, J.R. Artigo encomendado pra GT de Educação Especial – 25ªAnped6
2002
Integração/Inclusão: o que revelam as Teses e Dissertações em Educação e Psicologia
NUNES, L.; FERREIRA, J.R.; MENDES, E.
Capítulo do livro: Inclusão Educacional: pesquisa e interfaces
2003
Algumas tendências (ou modismos) recentes em Educação Especial e a Revista Brasileira de Educação Especial
OMOTE, S. Artigo - Revista Brasileira de Educação Especial
jan-jun 2003
6 Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação - As discussões sobre Educação na ANPEd
Em 1999, Nunes, Ferreira, Glat e Mendes publicaram artigo em que relatam o
resultado da análise de 197 dissertações defendidas entre 1981 e 1995, nos programas
de pós-graduação em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos e
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
7
. Ao analisar tais trabalhos, os autoresressaltam que há uma prevalência de estudos descritivos, com portadores de deficiência
mental na faixa etária entre os cinco e quatorze anos, realizados em instituições
escolares sobre o tema ensino-aprendizagem.
A Deficiência Mental foi alvo de 60% das pesquisas analisadas, sendo que na
UFSCar, esse índice atinge 70% dos trabalhos, o que pode ser entendido pela
concentração do Programa nesse tipo de deficiência, de sua fundação até recentemente.
Na UERJ, há maior diversidade de modalidades de deficiências pesquisadas. As análises
também apontam para o fato de que há uma interface com as discussões
acadêmico-científicas presentes nos trabalhos que analisam aspectos do ensino comum, bem como,
um crescimento de abordagens que enfatizam aspectos históricos e cotidianos da escola
brasileira e que discutem a necessidade especial, ou a deficiência, de maneira relacional
e contextualizada.
Finalizam a análise dos artigos afirmando que os desafios em Educação Especial
não diferem dos presentes em outras áreas do conhecimento, no entanto, pontuam as
peculiaridades dessa área do conhecimento: ser uma área relativamente recente no
Brasil, pelo menos em educação escolar, na qual os serviços em Educação Especial
aumentaram a partir dos anos de 1970; estar iniciando a formação de recursos humanos,
tanto em termos de graduação, quanto em pós-graduação e; persistir um alto grau de
indefinição no campo da Educação Especial, quanto ao objeto de conhecimento e de
atuação.
Na 25a Reunião da ANPEd-2002, em seu trabalho encomendado, Ferreira resgata
alguns aspectos históricos da consolidação desse espaço de discussão
acadêmico-científica e faz um levantamento, sem caráter analítico, dos trabalhos apresentados nas
reuniões, desde a estruturação do GT de Educação Especial. Na criação de tal GT, os
7 Vale ressaltar, como os próprios autores afirmam, que esses não são os únicos programas de pós-graduação
pesquisadores e professores compartilhavam de uma visão que reconhecia a carência de
uma atuação profissional mais adequada e comprometida com o trabalho educacional
“especial”, ao registrar o predomínio do assistencialismo, a escassez de profissionais
habilitados, assim como a necessidade de tentar conferir à educação do portador de
deficiência um caminho possível para a integração social, rompendo com a postura
segregacionista.
Na aprovação do GT de Educação Especial, o ponto prioritário da discussão foi a
identidade do próprio grupo. Podemos observar essa questão no trecho extraído do
artigo de Ferreira (2002):
A Educação Especial tem sido objeto de grandes confusões. Queremos deixar claro nosso repúdio público a interpretações equivocadas que identificam educação especial como instância simplesmente legitimadora das impropriedades do ensino regular. Educação Especial não é recurso remediativo para o fracasso escolar. Configura-se como um recurso educacional que assegura aos educandos com necessidades especiais o exercício do direito à educação. Entende-se que tais educandos são os que, por razões de ordem sensorial, mental ou física, não se beneficiam das situações comuns do ensino (p. 2 e 3).
Nesse momento da discussão do próprio GT, fica explicitado que a relação entre
Educação Especial e ensino regular distorce o próprio entendimento e conseqüentemente
o fazer em Educação, seja especial ou não; o que possibilita incrementar o entendimento
da premissa colocada anteriormente. Na análise, Ferreira (2002), após fazer uma breve
caracterização do conjunto de 138 trabalhos, comunicações e pôsteres apresentados e
discutidos nas 11 reuniões ocorridas no período, indica que há uma predominância de
trabalhos teóricos sobre o desenvolvimento e aprendizagem de pessoas com deficiência,
principalmente deficientes mentais e auditivos.
Em outro artigo, Mendes, Ferreira e Nunes (2003) têm como proposta fazer um
levantamento de teses e dissertações sobre as questões relativas à integração e
inclusão do aluno com necessidades especiais, no sistema regular de ensino. Foram
encontrados e analisados cinqüenta e nove trabalhos, cinqüenta e duas dissertações de
mestrado em Educação, cinco Teses de Doutorado em Educação e duas teses em
Psicologia sobre o tema. Os autores relatam que foi possível perceber maior
com maior destaque nas áreas de deficiência mental (28) e deficiência auditiva (13),
além do predomínio de pesquisa nas escolas comuns públicas, sendo que apenas uma
pesquisa tem como local de investigação a escola particular. Ou seja, há vários trabalhos
que apresentam questões sobre a escolarização das pessoas com deficiência mental
sendo desenvolvidos.
No último artigo a ser relatado, Omote (2003) faz uma análise comparativa das
comunicações de pesquisa apresentadas nas Reuniões Anuais de Psicologia, da Sociedade
Brasileira de Psicologia, no período de 1992 a 2001; nos Simpósios em Filosofia e Ciência,
da FFC/UNESP (1995-2001); e nos relatos de Pesquisa, publicados na Revista Brasileira
de Educação Especial, identificando, assim, algumas consonâncias entre as publicações.
O autor afirma que há uma progressiva mudança no foco de atenção dos pesquisadores,
possivelmente pela influência dos princípios de inclusão amplamente difundidos e
assumidos, o que gerou o aumento dos relatos que tratam da questão da inclusão em vez
da integração. Porém parte dos relatos trata da questão sem ampliar a discussão para
além da inserção do aluno com necessidades educacionais especiais em classes comuns,
sem implicar na adequação do meio de maneira mais acolhedora e eficaz na promoção do
convívio produtivo e da aprendizagem escolar dos alunos envolvidos. Considera que são
insuficientes os dados e alerta que é uma área que necessita de estudos mais rigorosos.
Para Omote (2003), a tradição da investigação centrada na deficiência e no
atendimento centrado na pessoa deficiente construiu um saber e uma práxis que não se
harmonizam facilmente com os pressupostos da inclusão. Argumenta que se aprendeu a
buscar o que há de distintivo no deficiente, até especificar a categoria do deficiente
por meio da avaliação de suas limitações, dificuldades e inadequações, e a intervir
visando à reparação dessas falhas. É um enfoque que prioriza a delimitação das
impossibilidades, o que se torna incompatível com a perspectiva da inclusão, que se pauta
justamente pelo oposto, as possibilidades do aluno deficiente.
Embora nos anos de 1960 e 1970 tenha sido propalada a necessidade de
aproveitar ao máximo a capacidade residual dos deficientes, o autor reconhece que havia
inclusão requer criatividade e disposição para ousar diferentes alternativas em busca de
soluções adequadas.
É preciso, então, direcionar mais atenção ao meio no qual o deficiente é visto e
tratado como tal, e olhar para esse deficiente em função do contexto no qual suas
limitações, dificuldades e inadequações se manifestam. A crescente tendência da
abordagem, considerando o meio social no qual se manifestam determinadas
necessidades especiais, contribui para o redimensionamento das principais questões
relativas à deficiência, bem como à participação e à realização de pessoas deficientes
nos mais variados setores da vida coletiva, permitindo construir conhecimentos que
fundamentem sólida e cientificamente os projetos de inclusão.
Afirma que parece estar ocorrendo uma redução nas categorias distintas de
deficiências, baseadas em áreas específicas de comprometimento. É uma redução mais
característica da categoria dos deficientes mentais. É preciso cuidado nessa nova
possibilidade de representar a deficiência mental, para que não se esteja escondendo um
mero arranjo terminológico; por exemplo, a substituição do termo deficiência mental por
necessidades educacionais especiais ou dificuldades de aprendizagem, e deficiente
mental por portador de necessidades educacionais especiais ou aluno com dificuldades
de aprendizagem.
Em síntese podemos considerar que as pesquisas do “estado da arte” em Educação
Especial enfocando a Deficiência Mental apontam para o fato de que as pesquisas atuais
têm mudado o foco das temáticas de desenvolvimento e aprendizagem centradas no
indivíduo, apresentando maior preocupação com o contexto em que a deficiência é
estudada. Para os autores que analisam tais pesquisas, é necessário fortalecer esta
abordagem contextualizada para a ampliação de conhecimentos na área, bem como uma
aproximação coerente com a perspectiva da inclusão de alunos com deficiência no ensino
regular.
Com o intuito de finalizar esta síntese podemos afirmar que a Educação Especial
é compreendida como um recurso educacional valioso e peculiar para alunos que, por
apresentarem comprometimentos sensoriais, mentais ou físicos, ficam impedidos de se
todos que se beneficiam da mesma forma do ensino regular não implica, de modo algum, a
adoção do referencial clínico/individualizante e do modelo segregacionista, que por tanto
tempo orientou o pensar e o fazer na Educação Especial.
Como afirmado anteriormente, a Educação Especial tem íntima relação com a
história da democratização da escola pública. No entanto, não será compreendida como
legitimadora da incompetência crônica da escola pública em garantir a escolarização de
seus alunos. Por conseguinte, se faz necessária a recuperação de alguns aspectos
históricos, e embasamento do atendimento ao indivíduo com deficiência, o que
acontecerá no próximo item.
1.2 Pesquisas sobre a história e as concepções a respeito da Deficiência Mental
A compreensão da especificidade da Educação Especial requer a recuperação de
alguns aspectos de sua história e da deficiência mental, evidentemente atrelada, em
alguns momentos, à história da própria escola pública. Como afirmado anteriormente, é
por meio da recuperação do contexto histórico e social de atendimento ao indivíduo com
deficiência mental que é possível estruturar a discussão sobre escolarização de
subjetivação da pessoa com deficiência mental leve. Para tanto, os trabalhos
selecionados foram:
Título Autor Publicação Ano
Deficiência mental: da superstição à ciência PESSOTTI, I. Livro 1984 1ª ed. A luta pela educação do deficiente mental no
Brasil
JANNUZZI, G. Livro 1985
1ª ed. Educação Especial Brasileira:
Integração/Segregação do aluno diferente
BUENO, J.G.S. Livro 1993
1ª ed. Práticas institucionais e exclusão social da
pessoa deficiente
BUENO, J.G.S. Artigo do livro Educação Especial em debate
1997
A produção da identidade do anormal BUENO, J.G.S. Artigo do livro História social da infância no Brasil
Parafraseando Jannuzzi, no prefácio do livro de Julio Romero Ferreira (1995),
pode-se afirmar que esses trabalhos selecionados integram um grupo que, a partir de
1970, tem como preocupação discutir a Educação Especial e seu inter-relacionamento
com a sociedade brasileira global. De forma sistematizada abordam o tema da Educação
Especial, possibilitando a construção de um conhecimento científico compromissado com
a realidade educacional e social. Considerando sua importância, a preocupação maior é
apresentá-los de forma consistente e fiel, no intuito de fundamentar de maneira clara as
premissas da presente pesquisa. Para melhor compreensão, a discussão desses trabalhos
seguirá uma ordem cronológica, pois sempre o mais recente se reporta ao anterior.
Inicia-se por Pessotti (1984) que busca compreender a evolução do conceito de
deficiência mental, desde a Antigüidade até o século XX. Discute também o
delineamento dos quadros de deficiência e sua etiologia, assim como a construção da
ação em Educação Especial. Para fundamentar seu trabalho, recorre a uma série de
publicações sobre o tema, em diferentes momentos da história. Explicita, antes de
iniciar a discussão, que a história da deficiência mental tem relação direta com a
filosofia humanista e reflete o entrechoque de eventos e idéias de diferentes campos do
saber e da vida social. Portanto, para compreender uma determinada idéia, é preciso
fazer referência aos momentos marcantes e sua relação com as determinantes de
origem teológica, econômica, política, jurídica ou outras.
O livro traz uma descrição cronológica das principais idéias e personagens que
geraram teorias e interpretações sociais sobre a deficiência mental, seja por meio de
escritos, iniciativas didáticas ou assistenciais. O autor cita obras anteriores ao próprio
conceito de deficiência mental, mas que têm uma íntima relação com certas concepções e
preconceitos presentes até hoje.
Acreditamos ser importante, para melhor compreensão, apresentar, mesmo que
superficialmente, como o livro está organizado. Ao mesmo tempo, por considerar que a
forma como o tema foi abordado possibilitou que outros trabalhos posteriores se
apropriassem de suas contribuições. Posta a explicação, partindo da Antigüidade Clássica
o autor chega até a estruturação da educação especial para deficientes mentais com
discurso hegemônico médico sobre a deficiência mental, e seus grandes nomes como
Pinel, Esquirol, Froebel..., posteriormente enfoca a obra de Seguin que, pioneiramente,
alia o conhecimento médico ao enfoque pedagógico. Preocupa-se com a involução,
pessimismo e retrocesso das teorias, nas últimas décadas do século XIX; e, finalmente,
discute duas grandes contribuições do século XX, que são a educação especial para
deficientes mentais e o avanço científico na compreensão da deficiência mental ou
retardo mental.
O autor enfatiza que o enfoque organicista, fortemente presente na história da
evolução do conceito de deficiência mental, é lamentável, denominando-o de ditadura
médica. Ressalta que os experimentos de Itard e Seguin conseguiram se libertar dessa
ditadura, porém foram considerados na época à margem do processo científico, por não
abandonarem os aspectos filosóficos do que ele denomina naturalismo pedagógico.
Finaliza explicitando que, no início do século XX, os dilemas complementares eram
para a:
Medicina: como tratar os débeis mentais não confináveis;
Pedagogia Científica: como estender aos deficientes mentais o ensino vigente;
Psicologia Científica: como medir as diferenças de capacidade mental dos normais
e dos débeis mentais.
Desta forma, a história da deficiência é marcada pela demolição do argumento
demográfico e da exterminação, bem como do apelo à esterilização do deficiente. Porém
é uma história ainda aprisionada pela marca de maldição ou castigo divino, e do fatalismo
clínico da hereditariedade inevitável. O autor enfatiza que é preciso se libertar da
postura organicista no que ela tem de fatalismo e unitarismo etiológico.
Jannuzzi (1985) tem como referência, o trabalho exposto anteriormente, entre
outros, para realizar pesquisa com a proposta de estudar a concepção de deficiência
mental na criança, e a teoria e prática escolar proposta para essas crianças no contexto
sócio-econômico-político brasileiro de 1874 até 1935. Sua preocupação voltou-se para o possível inter-relacionamento do conceito e da educação dessas crianças com o contexto
implicações genéticas, neurológicas, psiquiátricas dentre outras, porém, como a autora
deixa claro, não foram o ponto de reflexão de sua obra.
No prefácio escrito pelo Professor Pedro Georgen é ressaltada a originalidade do
trabalho, pela sua preocupação em recuperar sistematicamente a história da educação
do deficiente mental no Brasil, bem como estabelecer um enfoque que evidencia o
inter-relacionamento entre a educação do deficiente mental e a sociedade, nos diversos
períodos estudados, evidenciando a educação como um processo integrado ao modo pelo
qual a sociedade se organizou, ao reproduzir sua própria subsistência.
O enfoque pioneiro do trabalho de Jannuzzi (1985) busca compreender o
relacionamento entre a sociedade e a educação do deficiente mental, dentro de um
processo ativo de segregação, mais ou menos consciente, de uma parcela da população
portadora de comportamentos dissonantes das expectativas dominantes. Esse trabalho
constitui-se em um dos primeiros passos para a recuperação da história do deficiente
mental no Brasil e na demonstração do relacionamento que se estabelece entre o
diagnóstico da deficiência e os valores, as normas do comportamento, enfim ,o ideal de
homem que está inserido nos diversos momentos da evolução cultural.
A autora explica, a partir das contribuições de Erving Goffman8, que a deficiência
é compreendida de forma situada historicamente, com as marcas das expectativas
sociais, do modelo de ser humano baseado principalmente em atributos valorizados pelas
relações sociais surgidas em determinado modo de produção. Sendo assim, essa visão
impossibilita a compreensão da educação como redentora do deficiente, pois é claro o
limite do tempo histórico para o pedagogo, desde a conceituação da deficiência de seus
alunos, até as exigências e as angústias das famílias e da comunidade em geral em torno
de seu trabalho na escola.
O próprio conceito de deficiência, segundo Jannuzzi (1985), deve ser
questionado, a partir de um ideal de normalidade que não corresponde a algo
naturalmente estabelecido, mas às contingências e expectativas de determinado
momento social. Enfatiza que não se trata da negação da patologia, mas do convite para
refletir sobre o grau de responsabilidade social no surgimento da própria patologia, bem