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Capítulo 2 Delineamento e discussão sobre o referencial teórico: a leitura da deficiência a partir de uma perspectiva histórico-crítica

3.2 Caracterização da pesquisa

As colaboradoras da pesquisa foram duas alunas egressas da classe especial para deficientes mentais leves, Marina e Beatriz, elegíveis a partir dos seguintes critérios, a saber, escolarização de no mínimo de dois anos na classe especial para deficientes mentais leves e, de acordo com os registros em seus prontuários escolares, interrupção da escolarização na própria classe especial.

Seus prontuários escolares foram objeto de análise da pesquisa de Mestrado intitulada Recuperando a história oficial de quem já foi alunos ‘especial’ (1998), que

tinha como objetivo reconstituir a trajetória escolar oficial de ex-alunos de classe especial para deficiente mental leve, conforme explicitado na Introdução. Para o prosseguimento da pesquisa de Doutorado tornou-se imprescindível retomar os documentos de arquivo pessoal da época do Mestrado, principalmente uma lista com vinte e cinco nomes de ex-alunos e seus respectivos endereços. Também, retomamos o contato com a escola na qual freqüentaram a classe especial para uma nova análise dos documentos de seus prontuários escolares disponibilizados no arquivo morto. Todavia, era sabido que os egressos haviam se desligado da escola, na qual freqüentaram a classe especial, há mais de dez anos.

Este processo preparatório possibilitou o contato inicial para a localização dos alunos egressos, de forma que Marina e Beatriz foram selecionadas como colaboradoras da pesquisa, vale ressaltar que o contato inicial e as entrevistas serão detalhados brevemente. Sobre as colaboradoras podemos relatar que Marina tinha 34 anos, separada, uma filha. Havia retomado sua escolarização logo após a saída da classe especial e interrompido sua trajetória escolar, permeada de várias reprovações, na 6ª série, devido à gravidez e casamento, aos 29 anos. Aprendeu a ler e escrever e os cálculos básicos de matemática. Na época da realização das entrevistas estava desempregada e cuidando dos pais doentes em casa, bem como, era responsável pela organização e efetivação das tarefas cotidianas de sua casa e de seus pais. Por outro lado, Beatriz tinha 31 anos, havia interrompido sua escolarização após a saída da classe especial, em 1985. Freqüentou a escola por onze anos e não aprendeu a ler e escrever. Desde os quatro meses de idade tem convulsões e crises de ausência, característicos de seu quadro de epilepsia o que requer medicação regular para controle dos sintomas. Sua ocupação era auxiliar a mãe nos serviços domésticos, assistir TV e ir à igreja com a mãe. No transcorrer das entrevistas também foram colaboradoras as mães das egressas, Dona Margarida e Dona Regina, em virtude da intensa participação das mesmas no processo de escolarização de suas filhas.

Feita uma rápida caracterização das colaboradoras, serão colocadas algumas considerações acerca do método e desenvolvimento da presente pesquisa, de sorte que partiremos do relato de um fato ocorrido nos encontros com Beatriz.

Durante uma das entrevistas na casa de Beatriz sobre coisas que ela sabia fazer, pois o não saber ler e escrever estava muito denso na entrevista, comentou que fazia crochê. Ficamos animadas, pois reafirmava algo muito importante que era a Beatriz capaz! Dona Margarida contou que teve uma época em que a Beatriz fazia tanta bolsa e bolsinhas para moeda que não tinha nem mais para quem dar. Beatriz “crochetava”, a mãe dava o arremate e a avó colocava o zíper. Buscaram alguns exemplares e ficamos analisando o ponto, o tipo de linha, as cores, o arremate, as funções possíveis de cada uma delas...

Beatriz perguntou se queríamos uma. Dissemos que sim, pois eram bem feitas e poderiam carregar livros sem romper. Combinamos que seria uma troca, ela faria a bolsa e levaríamos um cd para ela. Conversou com a mãe e escolheu um cd do cantor Daniel que tivesse a música da novela “Esperança”.

No nosso próximo encontro tínhamos a certeza de que a bolsa estaria pronta, portanto era preciso achar o cd. Diante do desconhecimento da obra deste cantor tivemos uma certa dificuldade, ainda mais que a novela tinha acabado e as pessoas da loja não sabiam informar o nome da música. Depois de muito procurar e pensar, acabamos comprando um pacote com três cds do referido cantor, pois além de não ser possível localizar qual era a música desejada, não havia mais o cd da própria novela para servir de referência. Sendo assim a decisão foi de oferecer as opções possíveis de música daqueles cds.

Realmente a bolsa estava pronta, ou melhor, as bolsas. Os cds foram bem recebidos e logo colocados para tocar. Neste dia a entrevista foi ao som de Daniel!

Passado o tempo, as bolsas permanecem. A bolsa maior tem um lado azul escuro e outro branco. Os pontos são certeiros e harmoniosos, assim como o encontro das linhas, branca e azul. Nesta, é possível carregar livros. Há duas bolsas menores, uma azul para colocar sabonete no guarda-roupa com alças longas e finas. A branca de ponto mais fechado tem zíper e um mini bolso que se fecha com um botão.

Sabemos que Beatriz teve ajuda da mãe e da avó, mas ao observar ou usar essas bolsas saltam aos olhos que ela apesar de não saber escrever é capaz de construir algo bastante trabalhoso, que exige mais do que uma mera habilidade manual. Para chegar ao

resultado final, a bolsa, há todo um caminho de construção marcado pela presença da utilização de instrumento - agulha - e de uma técnica apurada - a escolha da linha, do tipo de ponto e a quantidade de pontos necessária para se fazer uma bolsa de um determinado formato e tamanho.

Olhando as bolsas não é possível deixar de fazer um paralelo com o presente trabalho. Para tanto iniciaremos por compreender a palavra Método, que é o cerne da discussão deste capítulo.

No Dicionário Etimológico, de Cunha (1997), a palavra método é de origem grega e significa “via, caminho”. No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) a palavra método significa, entre outros, “1. procedimento, técnica ou meio de se fazer alguma coisa, especialmente de acordo com um plano; 2. processo organizado, lógico e sistemático de pesquisa e instrução, investigação, apresentação etc.” No Novo

Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (1986) o significado da palavra método, entre

outros é “1. caminho pelo qual se atinge um fim; 2. Programa que regula previamente uma série de operações que se devem realizar, apontando erros evitáveis, em vista de um resultado determinado”.

As diferentes fontes trazem a possibilidade de encontro entre as bolsas de crochê e este trabalho. Ambos percorrem um caminho, utilizam técnicas e instrumentos para se atingir um fim. Porém, há diferenças que precisam ser ressaltadas. As bolsas são mais do que um simples objeto, são agrados carregados de sentimentos e de potencialidades.

No entanto, há uma preocupação bastante legítima que percorre esta discussão que é a não transformação da vivacidade dos encontros e das entrevistas, que pode ser representado pelas bolsas, em objetos de pesquisa no sentido de coisificação. É possível enfatizar que esta é a premissa de toda a análise dos casos sustentada pela escolha do referencial teórico.

Para Bosi (2003) a discussão sobre a metodologia de um trabalho científico precisa ser compreendia a partir de dois níveis:

1) A orientação geral da pesquisa, “tendência teórica” que guiou a hipótese inicial até a interpretação final dos dados colhidos.

Para a autora, estes dois níveis estão inter-relacionados na própria forma de pensar do pesquisador, seja na observação ou coleta dos dados, “pois a tarefa do reconhecimento não se cumpre sem a escolha do campo de significação e sem a inserção das informações obtidas nesse campo” (p. 50). Enfatiza que a mesma pessoa que coletou os dados deve ser a que faz a análise, pois a forma de encaminhar a questão é reveladora da postura teórica adotada no trabalho.

Procuramos, então, manter a coerência entre o referencial teórico e a proposta de análise do material coletado, que se configuram como uma abordagem histórico- cultural em Psicologia Escolar/Educacional, e como uma perspectiva histórico-crítica no campo da deficiência mental.

Logo, podemos afirmar que esta é uma pesquisa qualitativa que se configura como um Estudo de Caso, definido por Yin (2001) como “uma investigação empírica de um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto estão claramente definidos” (p. 32).

No estudo de caso, segundo Lüdke e André (1986) há uma preocupação em compreender o objeto como único, de modo que seja uma representação singular da realidade, compreendida como multidimensional e historicamente situada. A preocupação com a generalização dos resultados é desconsiderada, pois cada caso é tratado como possuidor de um valor intrínseco que constitui uma unidade dentro de um sistema mais amplo. Desta maneira, a unicidade da presente pesquisa está nos processos de escolarização e subjetivação da deficiência mental leve das egressas inseridas num contexto escolar historicamente marcado pela exclusão de alunos oriundos das classes trabalhadoras.

Yin (2001) explicita que as evidências para um estudo de caso podem ser originárias de diferentes fontes: documentos, registros em arquivos, entrevistas, observação participante, observação direta e artefatos físicos. A configuração da presente pesquisa como um estudo de caso envolveu a utilização de diferentes fontes, que serão descritas na recuperação do processo de estruturação da coleta dos próprios dados, sendo que a referência para a utilização das mesmas procurou respeitar os

seguintes princípios propostos pelo autor: a) diferentes fontes de evidências, ou seja, evidências provenientes de duas ou mais fontes, no entanto precisam convergir em relação ao mesmo conjunto de fatos ou descobertas; b) um banco de dados para o estudo de caso, isto é, uma reunião formal de evidências distintas a partir do relatório final do estudo de caso, c) um encadeamento de evidências, isto é, ligações explícitas entre as questões feitas, os dados coletados e as conclusões a que se chegou. (Yin, 2001, p. 105)

Na presente pesquisa, inicialmente, consultamos os registros em arquivos da pesquisa de Mestrado. Foram recuperadas as cópias das atas de final de ano, ficha com as anotações acerca dos prontuários dos alunos (Apêndice 1) e uma lista dos alunos pré- selecionados com seus respectivos endereços. Em tal lista havia o nome de vinte e cinco ex-alunos que estavam fora da escola há no mínimo dez anos. Também se fez necessário, o contato com a escola após cinco anos com o intuito de, com a devida autorização da nova direção, analisar e reproduzidos os documentos constantes nos prontuários dos alunos selecionados. A saber, de Marina havia ficha individual dos anos de 1983, 1984 e 1985, carta de encaminhamento da Diretoria de Ensino para classe especial de 1982, parecer psicológico de 1981, síntese da avaliação psicológica sem data, livro de história erótica apreendido com a aluna, o que acabou desencadeando sua saída da escola e o encaminhamento da escola para as oficinas profissionalizantes. Por outro lado, de Beatriz havia ficha cadastral com dados dos anos de 1984, 1985 e 1986, histórico escolar do ano de 1983, ficha individual dos anos de 1984 e 1985 e síntese de relatório psicológico de 1984.

De posse dos registros em arquivos, em específico os endereços dos egressos verificou-se que eram todos da mesma região da cidade de São Paulo abrangendo vários bairros. Tendo em vista a amplitude da região a ser pesquisada, o desconhecimento da mesma e o tempo para a realização da pesquisa, foi solicitada a ajuda de um morador da região que atuou estrategicamente como visitador de domicílio. Sua função era identificar os endereços, confirmar ou não o local de residência destes ex-alunos. Foram feitas orientações quanto à forma de se apresentar, bem como colocar o objetivo da visita, além disso, levava consigo uma carta de apresentação (Apêndice 2) e um gravador,

para registrar oralmente suas impressões, informações importantes e fundamentalmente se os egressos moravam ou não nos endereços.

Após três dias percorrendo casas conseguiu localizar doze ex-alunos para grata surpresa e felicidade. Nesse ensejo, Marina tomou a iniciativa e ligou para contar que havia sido contatada e que estava interessada em participar da pesquisa, logo foi a primeira colaboradora. Iniciadas as entrevistas com Marina, foi feito o contato com Beatriz. Seus pais sabiam da possibilidade de participação da filha na presente pesquisa, devido a visita de verificação de endereço, e logo combinamos a realização das mesmas.

Entre Beatriz e Marina foi viabilizado o contato com uma outra egressa de classe especial que morava num orfanato da região. No entanto, informaram-nos de que havia se mudado para outra unidade, de orfanato, para continuar auxiliando no cuidado das crianças. Vale salientar que não houve dificuldade em nenhum destes três contatos iniciais, sempre houve cordialidade e interesse em contribuir, mas diante da quantidade de dados coletados na entrevistas e da incorporação das mães como colaboradoras não foram feitos outros contatos com egressos.

Os contatos iniciais, com Beatriz e Marina, tiveram como intuito realizar uma pré- entrevista, com a finalidade de explicar o objetivo e a forma de realização da coleta dos dados, principalmente deixar claro que a participação se daria por meio de anotações em um caderno e de entrevistas gravadas, o que necessitaria de uma autorização por escrito, bem como lhes era garantida a possibilidade de não querer participar da pesquisa. Havia a preocupação de esclarecer que era conhecido o fato de terem freqüentado a classe especial, e que a fonte de informações, nome e endereço residencial, havia sido os prontuários da escola na qual haviam estudado na mesma, com a devida autorização e conhecimento da diretora.

Foram realizadas três entrevistas com Marina, duas com Beatriz, três com Dona Margarida e uma com Dona Regina, totalizando nove entrevistas47. A inclusão das mães

como fontes de informações foi decidida ao longo da pesquisa frente à imponência de suas presenças na luta pela escolarização das filhas e acompanhamento das implicações da condição de deficiente mental leve.

Para a realização das entrevistas foi feito um estudo dos documentos e do material arquivado que deram base para a elaboração de roteiros flexíveis de entrevistas (Apêndice 4), que tinham com princípio o resgate da história de escolarização das egressas, suas impressões da passagem pela escola, bem como a compreensão das mesmas da condição de vida atual. Pudemos perceber que as entrevistas fluíam e se transformaram em “conversas sobre a vida”, tanto com as ex- alunas e mães. Bosi (2003) ajuda-nos a compreender o que aconteceu, pois afirma que a preparação para as entrevistas é uma garantia de elaboração de perguntas interessantes que trazem no seu bojo o cerne da interpretação final, não obstante o respeito à liberdade de resposta é tão primordial quanto. A intimidade construída ao longo dos nossos encontros remete à qualidade do vínculo estabelecido, que de acordo com Bosi (2003) na medida em que o entrevistador consegue se desarmar de signos, de classe, de status e de instrução é possível formar laço de amizade, o qual provoca a sensação de que não deveria ser efêmero o encontro, invocando a responsabilidade dos envolvidos acerca do que é falado e registrado. Para a autora:

Narrador e ouvinte irão participar de uma aventura comum e provarão, no final, um sentimento de gratidão pelo que ocorreu: o ouvinte, pelo que aprendeu; o narrador, pelo justo orgulho de ter um passado tão digno de rememorar quanto o das pessoas ditas importantes. (p. 61)

Bosi (2003) complementa que na convivência há transformações marcadas pelo peso dos estereótipos, de uma consciência possível de classe que atravessa as entrevistas e precisa ser dominada (p. 61).

Todavia, é preciso fazer algumas considerações acerca da forma com que as entrevistas transcorreram. A preparação para as mesmas envolvia a análise dos documentos e leitura de produção acadêmico-científica e metodológica para o embasamento da entrada no campo, o que aguçou uma postura crítica que possibilitou a análise conjunta com Marina de seu parecer psicológico. Ao mesmo tempo, instigava uma postura de dúvida explícita, que fundamentalmente se manifestava nos momentos em que a incorporação da culpa pelo fracasso ou da incapacidade se evidenciava no discurso das egressas ou de suas mães. Podemos reconhecer que as entrevistas tiveram um princípio interventivo, gerador de novos significados para experiências vividas, não obstante

algumas vezes pela intensidade das histórias e de envolvimento, as intervenções se configuraram sem muita clareza da complexidade envolvida.

Por conseguinte, durante as entrevistas eram realizadas observações diretas, e as informações eram anotadas ou gravadas e transcritas após cada contato realizado. São registros importantes e relevantes que possibilitaram ao mesmo tempo, reviver sentimentos e compreender fatos depois do afastamento necessário para a reflexão e análise dos dados.

No decorrer das entrevistas, para lembrar datas e acontecimentos Dona Margarida e Beatriz recorriam a uma bolsinha de plástico em que estavam guardados vários documentos, pois possibilitaram o incremento de dados que a memória não teria condições de recuperar sem um auxílio. Estavam guardados vários laudos de eletroencefalograma de Beatriz48, receitas de remédio, cartões de acompanhamento

médico e psicológico, exames de sangue entre outros. Podemos dizer que eram registros

do arquivo da família e que pela preciosidade foram incorporados à pesquisa.

Uma quinta fonte de evidência utilizada foi solicitada por meio do registro de lembranças da escola em cadernos que foram entregue às egressas logo no início da pesquisa. O intuito de tal solicitação era verificar a qualidade da escrita de Beatriz e Marina, bem como possibilitar uma outra fonte de expressão que não fosse a falada. Yin (2001) denomina de artefatos físicos qualquer evidência física que possa contribuir para a compreensão do problema da pesquisa.

Ao finalizarmos a caracterização da pesquisa e das fontes de vidências utilizadas, podemos afirmar que a abordagem metodológica do tema da presente pesquisa, a deficiência mental leve e os processo de escolarização e de subjetivação, estão entrelaçados com a questão da memória. Recorremos a Bosi (2003) que caracteriza a memória como um “trabalho sobre o tempo” vivido que é significado pela cultura e pelo indivíduo, sem que a uniformidade temporal em cada sociedade, classe e indivíduo.(p. 53). Família ou grupo assumem a função de intérpretes ou testemunhas das experiências vivenciadas, sendo que:

O conjunto das lembranças é também uma construção social do grupo em que a pessoa vive e onde coexistem elementos da escolha e rejeição em relação ao que será lembrado. (p. 54).

Desta maneira, memória é uma forma organizadora, distante da passividade, em que a trajetória dos relatos precisa ser respeitada porque se configura como o mapa afetivo da própria experiência. (p. 56).