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Capítulo 2 Delineamento e discussão sobre o referencial teórico: a leitura da deficiência a partir de uma perspectiva histórico-crítica

2.1 Normalidade, estigma e desvio

Desta forma, iniciaremos o delineamento do referencial teórico, pela contribuição de Gilberto Velho (1985), em seu livro: Desvio e divergência – uma crítica da patologia

social, publicado, pela primeira vez em 1974.

O autor explicita que, no senso-comum e dentro da perspectiva médica, o indivíduo desviante é compreendido a partir da dualidade “são” e “insano”. Como decorrência, os indivíduos com comportamentos considerados “anormais” e/ou desviantes precisam de tratamento médico, sendo que a intensidade e a expectativa do tratamento estão relacionadas com a gravidade do desvio. Para Velho (1985), focaliza-se o indivíduo, e as causas são consideradas a partir de uma origem endógena ou hereditária.

Uma outra forma de pensar a situação de desvio é proposta pelo autor, com o intuito de flexibilizar o preconceito e a intolerância impregnados nessa visão patologizante. O ponto de partida para tal superação seria compreender como a vida social é representada, sem a ilusão de que, ao considerar o social e a cultura, as dificuldades estariam resolvidas, evitando um simples deslocamento do indivíduo para o social. Justifica que a noção de ser humano não pode estar desvinculada da vida sócio- cultural. Não é a descaracterização de fenômenos sociais, biológicos ou culturais, mas sim uma ênfase na inter-relação constante entre eles.

Velho (1985) enfatiza que a flexibilização da noção de cultura e de sociedade possibilita romper com a compreensão de que o “inadaptado” não tem uma visão de mundo ou que possui uma visão de mundo sem significado. Na verdade, é reconhecido possuidor de uma visão diferente da dos denominados “ajustados” e, na medida em que se reconhece a existência da diferença, é possível discutir um código sócio-cultural diversificado, dinâmico e até mesmo ambíguo. O autor enfatiza que é somente a partir de uma visão estanque e simplista que se pode pensar em “desviante” ou “inadaptado”. Portanto, a superação viria a partir da compreensão de que o desviante não tem uma outra cultura, ou está fora da cultura, mas é um indivíduo que tem uma leitura diferenciada, portanto divergente.

Sendo assim, uma vez desviante, não o será sempre, pois, de acordo com o contexto de inserção, poderá ser entendido como “normal”. Para o autor, somente haverá divergência, quando seu comportamento for entendido em desencontro com os valores

dominantes, que podem ser aceitos pela maioria das pessoas ou impostos por grupos dominantes. Desta forma, a leitura desses valores por determinados grupos sociais está relacionada com a posição que ocupam, com suas experiências, seus interesses...

Dando continuidade à compreensão da condição de normalidade e anormalidade, Canguilhem, com seu livro: O normal e o patológico36 (2002), defende a importante perspectiva de que os problemas das estruturas e dos comportamentos patológicos humanos são mais facilmente compreendidos como um todo, e não isoladamente. Ao discutir a relação entre o normal e o patológico, rechaça a idéia de que os fenômenos patológicos seriam idênticos aos fenômenos normais correspondentes, compreendidos como variações de ordem unicamente quantitativa.

O autor analisa a busca da norma única, recorrendo aos dois paradigmas que dão suporte a diferentes concepções de normalidade e de saúde/doença. A partir desses paradigmas predominantes de saúde/doença, são desencadeados significados diferentes, a saber, o primeiro afirma que saúde e doença são normas distintas, enquanto o segundo, dentro do referencial positivista, coloca que são momentos distintos quantitativamente de uma mesma norma, ou seja, que saúde e doença são iguais em essência, pertencendo à mesma norma. (Decorrente desse segundo paradigma, afirma que saúde e doença se diferenciam apenas em termos de quantidade, pois pertencem a uma mesma norma.) ? Portanto, estudando a doença, se entende de saúde, assim como estudando a saúde, se entende de doença.

Em seus escritos, o autor cita um estudo clássico sobre o metabolismo normal de açúcares e o diabetes, do fisiologista Claude Bernard, que explicita, em sua teoria, a identidade e continuidade dos fenômenos fisiológicos e patológicos. A diferença entre uma pessoa diabética e uma não-diabética se resumiria pela quantidade de açúcar na urina. Partindo dessas explicações, Broussais, um outro médico citado por Canguilhem, percorre o caminho inverso, ao se debruçar sobre os estados patológicos, considerando que os estados fisiológicos ou patológicos, saúde ou doença, seriam variações quantitativas do mesmo processo. Desta forma, amplia a discussão, ao reconhecer que é

possível uma teoria fisiológica das faculdades intelectuais, sendo a distinção quantitativa válida também para fenômenos mentais e intelectuais37.

Derivando da teoria de Broussais, considerada precária, Auguste Conte encontra os fundamentos para cientificizar sua teoria, o que resulta no princípio ideológico de que o progresso é o desenvolvimento da ordem. Portanto, Comte afirma que biológica e sociologicamente os seres humanos são todos iguais, com apenas algumas diferenças quantitativas.

Canguilhem (2002) enfatiza que o enquadramento dos fenômenos sociais e biológicos em uma única e mesma norma desempenha importante papel no cumprimento da justificativa da organização social. As diferenças possíveis ficam restritas aos momentos distintos dessa norma, em que a quantidade é capaz de explicar, simultaneamente, a homogeneização e a variação. Dentro dessa perspectiva, saúde e doença passam a ser definidas a partir de medidas, preferencialmente escalas métricas. Há uma transformação da escala estatística em normalidade individual, sendo que média e norma se confundem e, conseqüentemente, a abordagem é sempre direcionada à falta ou ao que excede a norma estabelecida. Geralmente, analisa o autor, é um modelo, fruto de cálculos estatísticos determinantes da média em que será analisado o quanto os indivíduos se aproximam ou se afastam da norma, possibilitando, assim, determinar a individualidade.

Há uma tentativa, por parte de Canguilhem (2002), de construir uma concepção vinculada ao paradigma dialético em que saúde e doença pertencem a normas distintas, isto é, existem diferenças quantitativas, mas o que realmente as distingue são as qualidades. A capacidade de ser normativo está relacionada à capacidade de se adaptar a qualquer ambiente, de forma que a adaptação é entendida como o domínio do ambiente e exercício de condições para impor suas próprias normas, e não a submissão a normas externas.

Saúde e doença pertencem a normas distintas e diferem entre si em essência, dentro desse paradigma, segundo Canguilhem (2002). A principal conseqüência é que, compreendendo a saúde, não se conseguirá entender a doença, como se adoece, o que

sente uma pessoa, quando perde sua normatividade. O inverso também é válido; estudando as doenças, não se saberá sobre a saúde, sobre a vida normal das pessoas. Finalizando essa referência, Canguilhem (2002), é importante frisar que o normal não é um conceito estatístico ou pacífico, e sim, um conceito dinâmico e polêmico.

Clareadas algumas contribuições dessa teoria, podemos afirmar que a problemática da deficiência mental leve envolve a abordagem qualitativa da relação entre normalidade e anormalidade, dentro de um determinado contexto social e histórico, produtor de explicações variadas sobre um mesmo fenômeno.

Ampliando a discussão acerca da questão do social, e tentando enfocar a subjetivação da condição de deficiente mental, recorreremos à obra de E. Goffman,

Estigma – notas sobre a manipulação da Identidade deteriorada (1988), que perpassa

a Psicologia Social e a Sociologia38, com o intuito de, concomitantemente, incrementar o

referencial teórico. Para o autor, o conceito de estigma envolve uma situação relacional, um encontro entre pessoas, pautado pela não possibilidade de aceitação social plena, sendo que os atributos desencadeadores da não aceitação são estabelecidos socialmente, e acabam categorizando as pessoas. Nessas categorias há atributos estabelecidos como naturais, comuns e normais, havendo, nos ambientes sociais, a definição do tipo de pessoa com maior probabilidade de ser encontrado; portanto, estrutura-se uma pré-concepção em relação a alguns indivíduos, pautada por expectativas normativas e determinantes de exigências rigorosas, denotando, então, a situação relacional que se torna inerente.

O autor explica que, na medida em que essas exigências não são preenchidas, há um descompasso entre a realidade e o esperado, o que denomina de identidade social virtual, sendo que se refere à demanda efetiva, ou seja, àquilo que é exigido do outro, baseado num retrospecto em potencial. Em contrapartida, denomina de identidade social

38 Outro importante livro é Manicômios, Prisões e Conventos, de 1961, cujo título original em inglês Asylums

– Essays on the social situation of mental patientes and others inmates.É o relato de uma pesquisa etnográfica, desenvolvida em um Hospital Psiquiátrico. A discussão central é sobre o processo de segregação, que ocorre nas instituições fechadas, e seus efeitos no indivíduo. Considera que a comportamento do indivíduo institucionalizado diz muito mais a respeito da sua internação na instituição do que da própria patologia. Traz contribuições significativas ao analisar o processo de diagnóstico da patologia e a incorporação por parte do indivíduo. É um livro referência, quando se discute o atendimento em escolas especiais, e o próprio processo de diagnóstico.

real os atributos e categorias que aquele indivíduo realmente possui. Goffman (1988) explica que a condição de indivíduo não apreciável é originária da evidência de que um determinado atributo é diferente do possuído por outros indivíduos da mesma categoria; a partir do momento em que o atributo assume um caráter de descrédito, seja na forma de fraqueza, defeito, desvantagem, passa a acontecer uma discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social real. Faz a ressalva de que não são todos os atributos negativos ou indesejáveis que são considerados, pois o critério definidor é a não compatibilidade com o estereótipo dos indivíduos de determinada categoria.

Goffman (1988) argumenta que o indivíduo pode estar numa condição de desacreditado, por ter seu atributo negativo imediatamente perceptível ou conhecido pelos outros indivíduos. Uma outra condição de desacreditável acontece, quando não é possível perceber imediatamente o atributo negativo, ou não é conhecido, o que dá a possibilidade do indivíduo escondê-lo. Enfatiza que essas condições não são excludentes numa mesma pessoa, sendo que o determinante da condição está no tipo de relação estabelecida com as outras pessoas.

Dando continuidade às suas análises, o autor afirma que, sendo possuidor de um estigma, o indivíduo pode sofrer como efeito ficar reduzido ao seu atributo que não é aceito; sendo assim, a condição primordial de ser estigmatizado é o não respeito e consideração dos outros, porque há uma contaminação dos aspectos não estigmatizáveis. Há um processo de desumanização do indivíduo, que acaba contaminando, algumas vezes, aqueles que também vivem com ele. Essa situação, segundo Goffman (1988), pode gerar, no estigmatizado, diferentes reações, desde a tentativa de correção direta ou indireta, até a busca de ganhos secundários, como justificar o que não dá certo em sua vida, não pela circunstância, mas como decorrência de seu atributo, ou até mesmo acreditar que vive numa condição de maior enobrecimento que os outros, porque sofre mais.

No entanto, na relação entre estigmatizado e não-estigmatizado há um enfrentamento das causas e dos efeitos do estigma, em que o estigmatizado pode se sentir inseguro, por não saber como os outros o compreendem, ou pode se sentir em exposição. São contatos mistos, geradores de uma tensão capaz de resultar em retraimento, desconfiança e agressividade.

Com base nas idéias expostas, Goffman (1988) apresenta o conceito de Carreira Moral, que contribui, neste trabalho, para a compreensão do processo de incorporação da condição de deficiente mental. Por meio desses contatos mistos é que se desenvolve o processo denominado por ele de Carreira Moral, em que há a aprendizagem, pelo estigmatizado, de sua condição, desencadeando, assim, mudanças na concepção do eu estigmatizado. No processo de Carreira Moral, o indivíduo estigmatizado acaba aprendendo e incorporando a forma com que a sociedade o compreende, assim como a particularidade de seu estigma e as conseqüências dele. Os momentos definidores das bases do desenvolvimento da Carreira Moral estão vinculados à história de vida e às possibilidades de revisão da mesma, por meio da experiência.