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Escolarização na condição de não aprendiz geradora da deficiência mental leve

Capítulo 5 “Desenvolvimento cognitivo abaixo do esperado para a idade”: encontros e desencontros na história de Marina e Beatriz

5.2 Escolarização na condição de não aprendiz geradora da deficiência mental leve

Afirmamos que a questão social se evidencia frente ao pertencimento dessas famílias às classes trabalhadoras, o que é compreendido, no presente trabalho, como um fenômeno social e histórico a ser problematizado no cotidiano, para o entendimento mais

abrangente da condição de deficiência mental leve. Para Patto (1997), o fracasso escolar é uma produção cotidiana da escola, a partir de questões de ordem institucional, política, individual, estrutural, em que estão envolvidas majoritariamente crianças das classes trabalhadoras.

Podemos, então, primar pela abordagem desse complexo universo, recuperando alguns aspectos da trajetória escolar das egressas, que se inicia, precocemente, antes da 1ª série. A construção dessa trajetória é marcada pelo estigma do fracasso, independente do seu processo de aprendizagem, o que pode ser verificado pelo fato de Marina ter permanecido vinte e três anos na escola, cursado até a 6ª série, e aprendido a ler e escrever; enquanto Beatriz freqüentou a escola por onze anos, parou na classe especial, e não aprendeu a ler e escrever. É possível predizer que são histórias qualitativamente distintas, tanto de escolarização como de vivência da exclusão escolar, mas que desembocam na mesma condição de incapacidade de aprender geradora da deficiência mental leve.

Verificamos que são trajetórias escolares longas e de persistência, que Moysés (2001) compreende da seguinte forma:

Os alunos da escola brasileira não progridem, embora resistam. Eles teimam, só desistindo quando é inevitável. Ao contrário do que se afirma, o tempo médio de permanência do aluno na escola é alto: 7,6 anos em 1982 e 8,5 anos em 1988; tempo mais que suficiente, portanto, para que lhes fosse permitido o acesso ao ensino escolar. Nessa escola em que se permanece sem progredir, o tempo médio para concluir as oito séries, entre os que completam, é 11,7 anos, sendo que apenas 5% dos alunos conseguem realizar as oito séries em oitos anos. (p. 55)

Desta forma não é possível argumentar superficialmente e preconceituosamente que a escola não é valorizada pelas famílias e egressas, pois há uma força de resistência e de permanência das mesmas, conforme observa Patto (1997), em sua interpretação de que:

Em geral, as crianças são mantidas na escola durante muitos anos, até que mecanismos escolares mais ou menos sutis de expulsão acabam por se impor. Tirar da escola uma criança que ‘vai bem’ não é a regra, o que contraria a versão do senso comum, segundo a qual a desvalorização dos estudos pelos pobres seria a principal causa de evasão escolar. (p. 294)

Esses mecanismos de expulsão se estruturam por meio do endosso dos parâmetros sociais, que fundamentam a sociedade moderna industrial, segundo Bueno (1997b), de produtividade e homogeneidade dos indivíduos. A produtividade se reverte em práticas classificatórias do desenvolvimento e aprendizagem dos alunos, sendo que a homogeneidade se revela em parâmetros classificatórios referendados socialmente.

O processo de produção dos alunos tem como cadência um ritmo que é dado pela escola, enquanto instituição normatizadora dos saberes sistematizados, não se pautando pelo desenvolvimento e aprendizagem dos alunos, o que acaba por propiciar um descompasso crônico na educação brasileira, pelo número de crianças que historicamente não avança para além das séries iniciais. Esses parâmetros, ao serem incorporados ao cotidiano escolar, impulsionam a compreensão da diferença entre os alunos como um sinal de deficiência, desconfiança esta pautada pela não adaptação às exigências da escola em termos de produtividade intelectual.

Para Ferreira (1989), a escola pública produz um tipo específico de deficiência, que está vinculado com o aumento do número de vagas para os alunos das camadas populares; por não corresponderem às expectativas, estes alunos se tornam o que ele denomina de “deficientes de escola”. Nesse processo, as vagas que seriam destinadas, nas classes especiais, aos alunos portadores de deficiência, acabam sendo utilizadas para legitimar a exclusão de alunos que apresentam diferenças no desenvolvimento escolar, passíveis de serem interpretadas como características de um quadro de deficiência.

A transformação do fracasso escolar em deficiência mental leve envolve mecanismos classificatórios da escola de grande valia para a reprodução e manutenção dos princípios da produtividade e homogeneidade. Patto (1990) ressalta que esses mecanismos classificatórios envolvem práticas arbitrárias que, quanto mais vinculadas ao suposto saber científico ou técnico, mais sutis se tornam. Desta forma, identifica como práticas que se enquadram nessa condição os critérios para formação de classe, o remanejamento e as atividades de recuperação; sua justificativa é a de homogeneização das salas para o desenvolvimento de um bom trabalho pedagógico, menos custoso para os professores e em benefício dos alunos. A autora compreende que as práticas de classificação possibilitam a coisificação dos alunos, pois o princípio da homogeneização é

ao mesmo tempo falso e perigoso, por seu caráter estigmatizante, caracterizando-se muito mais como impeditivo do que benéfico para todos os envolvidos. (p. 211)

As pesquisas de Schneider (1974), Patto (1990), e Collares e Moysés (1996) revelam que a classificação dos alunos pode estar orientada pela aplicação de testes de maturidade, o que resulta no grupo dos “imaturos” e “maturos”; pelo acesso ou não à pré- escola; pelo resultado do processo de aprendizagem durante um certo período do ano letivo; pela reprovação do aluno na série; pela aplicação de provas piagetianas, que resultam nos grupos “pré-operatório” ou “operatório-concreto”; pela sondagem do nível de alfabetização, calcado na distorção dos princípios de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, que resultam em “pré-silábico” ou “silábico”, entre tantos outros. É importante ressaltar, segundo as pesquisas citadas acima, que essas salas homogeneizadas a partir de critérios tênues e classificadas como “fracas”, ou qualquer outra denominação que tenha implícita a pouca expectativa de produtividade dos alunos, são rejeitadas pelos professores e acabam sendo designadas, ou melhor, impingidas, aos professores mais novos e menos experientes. Desta forma, o potencial para se tornarem classes de aprisionamento dos desejos de professores e alunos está instigado.

O princípio da classificação é garantir, por meio de uma avaliação do potencial de produção do aluno ou da produtividade em si, a homogeneização, que gera uma delimitação de expectativas quanto às possibilidades de aprendizagem. Por isso, equívocos são cometidos em nome da necessidade de conhecer o grupo de alunos antes de formar as salas, de reavaliá-los e reagrupá-los ao longo do processo de aprendizagem, bem como de favorecer a recuperação ou reforço de conteúdos básicos, por meio da repetição em um curto período de tempo, permeado pelo suposto atendimento mais individualizado.

Podemos dizer que esses mecanismos de classificação desumanizam os alunos, pois desconsideram qualitativamente suas histórias anteriores à entrada na escola, a construção de vínculos entre os alunos do grupo, bem como com a professora, sendo que essa classificação é forte o suficiente para que a constatação de não correspondência da produtividade aprisione o aluno na condição de incapaz.