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Capítulo 4 – Histórias de alunos egressos de classe especial para deficientes mentais leves

4.1 A história de Marina

4.1.1 Caracterização social e familiar

Marina, antes mesmo do nosso primeiro encontro, telefonou para conversar comigo sobre a pesquisa e dizer que estava me aguardando, demonstrando interesse em participar. Marcada a data, fui até sua casa explicar a proposta da pesquisa, o que possibilitou perceber alguns elementos do seu cotidiano, que foram se reafirmando e delineando ao longo da pesquisa. Durante nossos encontros, sempre estava preocupada com a limpeza e a ordem de sua casa e a de seus pais, o que muitas vezes era difícil, pela própria circunstância de estar cuidando dos pais enfermos.

Sua casa fica nos fundos do terreno e está dividida em banheiro, quarto e cozinha/copa/sala, com móveis e eletrodomésticos bem cuidados e distribuídos de forma que deixam pouco espaço para circulação. Ao lado de sua casa, há um quarto com banheiro, onde dormiam seus irmãos; nele havia televisão, vídeo cassete e aparelho de som e, na época da entrevista, era ocupado apenas por um irmão. Durante as entrevistas, esse quarto sempre estava sendo utilizado por diferentes pessoas da família, fosse para passar roupa, vendo TV, descansar, ou pelas crianças que assistiam a desenhos. A casa da frente, e principal, onde moravam os pais de Marina, Dona Regina e Sr Jair, é dividida em quarto, banheiro, sala e copa/cozinha ampla, lavanderia; de forma geral é uma casa espaçosa, apesar dos móveis e eletrodomésticos. Durante as entrevistas, Marina passava a maior parte do tempo na casa principal, cuidando de seus pais que estavam enfermos: a

mãe, em decorrência de um acidente e da perna quebrada, e o pai, pelo agravamento do quadro clínico, fruto de seqüelas de derrames sucessivos, necessitando de internações hospitalares periódicas, o que culminou com o seu óbito, no decorrer da pesquisa. As três casas estão voltadas para um pátio interno, que tem comunicação com a rua; no mesmo fica a garagem, na qual permanentemente estava estacionado um carro modelo Uno, a casa dos cachorros, o varal de roupas, canteiros de flores. Nesse mesmo espaço, quando vivo, o Sr Jair permanecia em sua cadeira de rodas, olhando o movimento da rua e das casas, junto com as crianças que brincavam, saíam e voltavam da rua. O portão sempre esteve sem trancas, de forma que, durante nossos encontros, era comum as pessoas entrarem, sem tocar a campainha, ou chamar pelos moradores;49 até mesmo o cachorro da vizinha permaneceu deitado na soleira da porta, durante uma das entrevistas.

Nossos encontros aconteceram em diferentes espaços, de acordo com a disponibilidade das casas, conforme o critério de organização ou ocupação de Marina, que se mostrou disposta a participar e responder as perguntas, ou escrever no caderno. Na maioria das vezes, era nossa companheira de entrevista sua filha de quatro anos, Carla, que muito desejava escrever no caderno da pesquisa de sua mãe, sendo porém impedida por ela.

Na primeira entrevista, Dona Regina, mãe de Marina, conversou informalmente sobre o processo de escolarização da filha, afirmando, a cada história, que tinha memória fraca para lembrar das coisas. Logo em seguida, sofreu um atropelamento e fraturou a perna esquerda, permanecendo imobilizada durante vários meses. Diante das minhas solicitações de participação na pesquisa por meio de entrevistas, alegava estar cansada e sem vontade de lembrar das histórias; no entanto é importante ressaltar que, nesse seu período de recuperação, o estado de saúde do Sr Jair piorou e ela pouco pôde cuidar do marido. Somente após seu falecimento, Dona Regina consentiu em participar da entrevista, porém o tempo para a finalização deste trabalho era pequeno, o que impossibilitou a realização de mais entrevistas.

Iniciaremos pela história da família, contada por Dona Regina. Apesar de ser franzina, traz no seu corpo forte e resistente a história de uma vida de muito trabalho e

luta, como ela mesma relata, ao comentar com o filho mais velho: “É, meu filho, a sua mãe tem passado, altos e baixos (...) A vida, tem que passar coisas boas e coisas ruins, passei ruim, passei regular, passei mais ou menos, e tô aí com setenta e quatro anos!” Contou que nasceu em Belo Horizonte e, até os dez anos, teve uma vida que descreve como farta. Com a morte de seu pai, a situação se alterou, de forma que sua mãe e ela, filha única, precisaram trabalhar em uma pensão para doentes de tuberculose. Freqüentou até a 4ª série e saiu da escola para poder trabalhar em casas de família. Em uma delas, levava e trazia a filha da patroa, a qual chama de madrinha, para a escola preparatória e, enquanto a esperava, ficava prestando atenção nas aulas; assim, aprendeu um pouco de francês e justifica não ter aprendido o inglês, porque era muito difícil.

Com as complicações de saúde de sua mãe, mudou-se para o Rio de Janeiro, junto a uma família amiga, e começou a trabalhar na indústria têxtil. Após o falecimento de sua mãe, foi trabalhar em São Paulo, no mesmo ramo de serviço e, logo em seguida, conheceu seu marido, Sr Jair, com quem se casou aos 29 anos. Durante o relato dessa parte da história, pegou um porta-retrato com sua fotografia de casamento, guardada com muito orgulho na estante da sala. Lá estava registrada a história do início da família de Dona Regina, uma mulher negra e franzina, vestida modestamente de noiva, que, posteriormente, perde seu primeiro filho, segundo ela, de tanto trabalhar. No entanto, nasceram cinco filhos dessa união, quatro meninos e uma menina, que é Marina, e relata que “aí eu comecei a luta!”.

O filho mais velho, Lúcio, 41 anos, fez curso técnico de enfermagem, e, concomitante com seu trabalho num hospital de grande porte da capital, fez o curso de Letras, posteriormente o Mestrado e atualmente é professor universitário; é casado com uma profissional da área da saúde, e tem três filhos. Dona Regina conta que ele entrou na escola com 6 anos, e que já falou para ele : “Meu filho você morre estudando” (risos). O segundo filho, Gerson, 40 anos, que completou o ensino médio, trabalha com carro e é solteiro. O terceiro filho, Carlos, 39 anos, também com formação até o ensino médio, é casado e tem três filho pequenos. Está desempregado e, segundo D. Regina, “(...) tá sem sorte, não arruma emprego até hoje”; a situação não está muito complicada, porque a esposa de está trabalhando, temporariamente, em um programa estadual de

recolocação de trabalhadores. O filho Raul, 29 anos, também completou o ensino médio e atualmente está empregado, porque a esposa de Lucio conseguiu uma vaga para ele; não é casado e tem dois filhos “pelo mundo”, segundo sua mãe. A única filha, Marina, 34 anos, cursou até a sexta série, é separada e tem uma filha;está desempregada.

D. Regina conta que, logo após o nascimento do primeiro filho, sua saúde estava debilitada por um problema na coluna, que causava dores e inchaço, decorrente de seu trabalho na indústria têxtil. Ficou afastada pelo antigo INPS, hoje INSS, fazendo repouso e tratamento médico, até que lhe fosse concedida aposentadoria, depois de três anos.Relata que um dia foi ao INPS, para passar pelo médico, e este lhe deu alta; estava acompanhada de sua irmã e levava seu filho, que ainda amamentava, no colo; diante da notícia inesperada, passou muito mal, e teve o que ela denomina de “acesso”. Após esperar e ser avaliada pelos próprios médicos do INPS, foi encaminhada para um Hospital Psiquiátrico, transportada por ambulância. Durante sua hospitalização, afirma que seu filho mais velho quase morreu e “(...) um moço que encontrou com ele (Sr Jair) e ele tava chorando demais. Aí, ele contou o caso que aconteceu, o moço foi na farmácia e comprou uma porção de leite pra ele pro Lúcio, mas ele não se deu com leite, com nenhum leite, aí tinha uma dona aqui, Dona Geralda ainda é viva, a Dona Geralda tava dando mama ao filho dela, aí ele começou a mamar no peito dela, aí continuamo a vida”. Antes de continuar a vida, sem nunca mais ter tido nenhum “acesso”, negou-se a tomar o remédio receitado pelo médico, Gardenal, considerado um remédio para gente nervosa, e deixou o hospital, sem terminar o tratamento, pois o Sr. Jair, em uma das visitas, cedeu aos apelos da esposa e se responsabilizou por ela perante o hospital, levando-a para casa.

Dona Regina, a forte mulher franzina, depois desse episódio, enfrentou ainda outros problemas: teve um derrame, fez mastectomia, em virtude de um câncer, e quebrou a perna recentemente, no atropelamento. Acompanhou e cuidou de seu marido, durante mais de 10 anos, afetado pelas seqüelas de derrames que foram limitando-o aos poucos, cada vez mais. Mesmo aposentada, sempre trabalhou como ambulante vendendo doces, junto com o marido, no centro da cidade de São Paulo. O Sr Jair trabalhou em indústria, pagava o sindicato, o que deu durante muito tempo o direito para ele e sua família a atendimento médico, atualmente restrito à Dona Regina. Além de sua

aposentadoria de um salário mínimo, Dona Regina passou a receber, com a morte do marido, uma pensão no mesmo valor. O terreno em que está construída a casa que reside foi comprado com muito esforço, para ser pago em 20 anos, e aos poucos foram construindo os cômodos.

Dona Regina reconhece que a filha foi extremamente importante no período em que esteve imobilizada e o marido doente, sobretudo no final com sonda e soro direto. Afirma: “É, mal de mim se não fosse ela. Coitada!”. Sobre Marina, conta que seu nascimento foi complicado, pois, além de ter mais de 40 anos,sua pressão era muito alta, e precisou pedir ajuda a Nossa Senhora para resolver a situação. O médico avisou ao Sr Jair: “Eu vou salvar sua mulher, mas a sua filha nós não damos conta dela”. Precisou, então, tomar uma injeção e Marina nasceu prematura, não se lembra com quanto tempo, mas se recorda de que estava faltando tempo para completar a gestação. Logo após o nascimento, a filha precisou ficar três meses na incubadora e lembra que ela não tinha unha nem cabelo. Durante esse período, nunca foi visitá-la e dizia para o marido, que todo dia, após o trabalho, passava para ver a filha : “Ela não vai ser minha mesmo”. Quando Marina recebeu alta, o pai levou-a para casa, e Dona Regina ficou bastante agradecida a Deus por sua filha ter sobrevivido; no entanto, de tão pequena, tinha medo de dar banho nela, chegando mesmo a usar somente óleo e talco para limpá-la , durante o frio. Reconhece que, apesar de tudo, a filha tem saúde forte hoje, mas é muito agitada.

Perto dos seis meses, Marina teve uma crise que deixou a mãe bastante preocupada na época; sem saber definir o que seja, imita o quadro da filha: parada e olhando para cima. Queria levá-la para o hospital, mas sua irmã não permitiu; em substituição, Marina foi benzida, tomou uns banhos e não teve mais nada. Aos 9 anos, a pedido da escola, levou a filha ao psicólogo e ao médico que lhe receitou Gardenal; mais uma vez, sua cisma de que era um “remédio para gente nervosa” fez com que interrompesse a medicação. No dia do aniversário de 15 anos, durante os preparativos para a festa, em sua casa, Marina queixou-se de dor no braço, mas a mãe recomendou que varresse o chão. Novamente teve uma crise e, dessa vez, foi para o hospital, onde permaneceu por três horas, depois de tomar uma injeção. Nesse dia, Dona Regina conta que comemorou a volta da filha e até perdeu a vontade de comemorar seu aniversário.

Durante o acompanhamento médico, detectaram um problema que poderia mesmo causar paralisia em Marina, mas não era caso de operação. O balanço que Dona Regina faz dessa história é que sua filha não é nervosa, mas sim agitada.

Dando continuidade, por meio dos documentos e das entrevistas com Marina, é possível fazer um resgate de sua trajetória de escolarização. Foi matriculada com seis anos, para fazer o pré, na mesma escola em que seus irmãos estudavam, referindo-se a ela como uma época boa. Seus problemas começam na 1ª série, devido à dificuldade de acompanhar o conteúdo e o ritmo de aprendizagem da sala, o que a levou a repetir várias vezes. Ao ser promovida para a 2ª série, não há alterações da situação de aprendizagem e, conseqüentemente, acontecem três reprovações, o que desencadeia o encaminhamento para a classe especial. Nos seus relatos, não há uma diferenciação ou delimitação cronológica desse período, por isso os dados dos documentos auxiliam nessa reconstrução, o que possibilitou perceber insuficiência e discrepâncias entre alguns deles, a saber, o ano de seu nascimento é 1968, porém, em alguns documentos, consta como 1969, o que dificulta esse resgate do histórico de escolarização, a partir de uma única fonte. Sua trajetória escolar pode ser retratada da seguinte forma, na tabela abaixo:

Marina relata que, após a saída da classe especial, deu continuidade a seus estudos nas séries iniciais, no projeto de alfabetização de uma igreja próxima de sua casa; posteriormente fez o supletivo em outras escolas regulares até a 6ª série, quando

Ano Idade Série 1974 6 anos Pré-escola 1975 7 anos 1ª série 1976 8 anos 1ª série 1977 9 anos 1ª série 1978 10 anos 1ª série 1979 11 anos 1ª série 1980 12 anos 2ª série 1981 13 anos 2ª série 1982 14 anos 2ª série 1983 15 anos Classe Especial 1984 16 anos Classe Especial 1985 17 anos Classe Especial

parou por estar grávida de sua filha, aos 29 anos. Desse período, pós-saída da classe especial, não foram analisados documentos, o que impede maior precisão da relação ano, série e idade, mas não impossibilita, porém, que alguns dados dessa trajetória escolar se evidenciem.

Marina permaneceu na escola dos seis até aos vinte e nove anos, ou seja, foram vinte e três anos de escolarização! Entre pré-escola, 1ªsérie, 2ªsérie e classe especial foram 12 anos. Entre a retomada nas séries iniciais e a 6ª série foram 11 anos, e, mais uma vez, a marca da reprovação esteve presente. Dessa maneira, nesses 23 anos de escolarização, cursou apenas sete séries, incluindo a pré-escola.

A saída de Marina da escola está relacionada à gravidez não planejada e casamento, após dez anos de namoro com o pai de sua filha. Quando se casou, sua mãe, Dona Regina, lhe deu uma das casas do terreno para morar e, enquanto o marido esteve empregado, não houve problemas. O período difícil do casamento teve início com a demissão do marido, que fez acordo trabalhista com o empregador, e não se preocupou em arranjar outro emprego, aliando-se a isso o agravante da dependência alcoólica. Enquanto o ex-marido tinha dinheiro do acordo trabalhista, a situação ainda se mantinha, porém, quando as reservas findaram, a ponto de Marina e sua filha não terem o que comer, seus pais passaram a ajudá-la. A situação se tornou insustentável, quando seus irmãos se envolveram, e a separação se tornou inevitável. Durante o casamento, fez alguns trabalhos temporários, sendo que, na época da entrevista, estava separada e cuidando da filha de 4 anos; continuava dependendo economicamente de seus pais, pois o marido ainda estava desempregado e não contribuía com nada para o sustento da filha.

Além do casamento se complicar, Marina conta que perdeu o “paparico” de seus irmãos, quando se casou. Essa condição de “paparicada” sempre esteve presente em sua vida, fosse na relação com sua mãe, seu pai ou seus irmãos, e explica que recebia carinho e muita atenção de todos. Nas entrevistas não fica muito claro como se configura essa condição especial, porém foi possível perceber que tal condição não mais existia no atual momento de sua vida. Percebe-se a compreensão dessa perda, pelo relato de Marina, quando lembra que na época em que estudava de manhã, na classe especial, tanto seus irmãos quanto seus pais trabalhavam, mas ao chegar da escola encontrava a casa

arrumada e a comida pronta, preparada por sua mãe, que cuidava desses afazeres domésticos, antes de sair para trabalhar vendendo doces. Atualmente, diante das sucessivas situações de doença, tanto de seu pai como de sua mãe, Marina assume a responsabilidade de cuidar dos dois e ao mesmo tempo, da sua casa, da de seus pais e da casa que era de seus irmãos, todas no mesmo terreno. Quando há necessidade, acompanha sua sobrinha às aulas de balé, até o centro da cidade, deslocando-se de metrô, ônibus e lotação, quando necessário. Não é mais a menina que recebe cuidados, mas sim uma mulher que, neste momento da vida, cuida de outras pessoas, tem responsabilidades que atrapalham o seu retorno aos estudos e o ingresso no mercado de trabalho, contrariando assim sua vontade.

Apesar de sair para passear bem menos, em virtude dessas responsabilidades, Marina tem suas amigas e, sempre que pode, vai “bater um papinho” na rua. Interessante que, ao longo de nossos encontros, era chamada com freqüência por suas amigas à porta de casa e, em um dos encontros, uma delas pediu para ficar junto a nós, o que me causou um certo incômodo. Ao ser questionada sobre a presença da amiga, Marina respondeu que não tinha problema, porque ela queria saber como era uma entrevista de pesquisa. Em outros momentos, quando me acompanhava até a porta de sua casa, após as entrevistas, era bastante usual a presença, na rua, de crianças e adultos que se aproximavam com freqüência, para saber como estava sua mãe.

Ao falar de sua rotina atual, Marina escreveu que se levanta e cumpre suas obrigações de dona de casa: “É arrumar as coisa, limpar a casa, fazer obrigação, né, de dona de casa, fazer tudo no geral (...) Aí, eu corro ali, corro aqui, aí tem que fazer almoço, vou comprar remédio lá no centro”. Enfim, uma rotina que envolve cuidar de sua filha, de sua mãe lúcida e sem andar, de seu pai que não andava e não falava, e no final, até da sonda oral e urinária, que ele usava.

4.1.2 O processo de escolarização e sua contribuição para a constituição da