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Elementos para uma leitura da obra de Aparício Torelly, o Barão de Itararé: humor,...

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Academic year: 2017

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Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Estruturas Ambientais Urbanas, sob orientação do Professor Doutor Rafael Antonio da Cunha Perrone.

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humor, projeto & design gráfico

José Mendes André

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o Barão de

Itararé

José Mendes André

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Elementos para uma leitura da obra de

Aparício Torelly, o Barão de Itararé:

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lementos para uma

leitura da obra de Aparício

Torelly,

o Barão de Itararé:

humor, projeto & design gráfico

José Mendes André

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Resumo Esta dissertação é uma monografia sobre a obra do humorista Aparício Torelly, o Barão de Itararé. A idéia principal foi levantar um escopo de elementos analíticos: históricos, documentais, metodológicos e teóricos, necessários à formulação de hipóteses futuras.

A dissertação foi concebida em três partes distintas. A primeira é dedicada aos antecedentes: aspectos da História do Brasil relevantes para o tema; sumário biográfico de autor e obra; levantamentos, inventário e comentário das fontes de pesquisa, e futuros desdobramentos.

A segunda parte é dedicada às questões metodológicas e aponta para discussões: da Filosofia da Ciência e da Epistemologia; sobre as contribuições da nova historiografia relacionadas aos aspectos formais do discurso das artes visuais e, por último, sobre o debate a respeito do Humor .

A terceira parte é dedicada à questão do processo criativo e produtivo nas Artes Gráficas vis-a-vis o resumo da história destas artes; apresentação de novos dados inéditos coletados a partir da pesquisa de campo; e descrição e comentário analítico sobre os elementos formais do discurso da obra estudada.

Summary This essay is a monograph about the work of the humorist Aparício Torelly, nicknamed Barão de Itararé. The main idea was to report a set of analytical elements: historical, documental, methodological and theoretical, essentials to formulate future hypothesis.

The essay was conceived in three different parts. The first one is dedicated to the antecedents: aspects of Brazilian History important to the theme; biographic and work briefing; searches, inventory and comments on the research sources and future unfolding.

The second part is dedicated to the methodological questions and point to discussions about: Philosophy of Science and Epistemology; the contribution of the new history related to the structural aspects of the visual arts speech and, at last, the discussion on humour.

(7)

À memória de

Aparício Torelly, o Barão de Itararé

Ao meu avô, Manuel António Mendes André Aos meus pais, Carlos e Idalma

À minha esposa, Maria Silvia

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Sumário

Prefácio 9

Agradecimentos 13

Apresentação 14

Primeira Parte

Antecedentes

AparícioTorelly: Da República Velha ao Regime Militar de 1964

Introdução

Aspectos históricos da representação cômica e humorística

das vidas pública e privada brasileira através dos tempos 19 Dos Pampas à Capital Federal 34 A gênese do Barão …

e a sociedade com Assis Chateuabriand 40 Os anos 30 e o Estado Novo 43 O fim da ditadura e o Partido Comunista 45 Anos 50: a década Paulista 47 A volta ao Rio em 1960 e seus últimos dias 50 Receitas de sabedoria de um velhinho supimpa 51

Fontes primárias

O legado de Aparício Torelly, o Barão de Itararé 53 Legado do Barão de Itararé (primeiro lote de documentos)

Inventário Geral depositado no IEB-USP 54 Legado do Barão de Itararé (segundo lote de documentos)

Inventário Geral depositado no IEB-USP 55

Anos 80: A volta (por cima) do Barão

Fontes secundárias: Konder, Ssó & Figueiredo 66

Anos 90: O Projeto Barão e o resgate dos despojos literários 73 Os Projetos de recuperação da memória

de autores nacionais e o Barão 85 Perspectivas para o futuro 87

Segunda Parte

Conceitos & Preconceitos:

Considerações Metodológicas

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Terceira Parte

Eixos de leitura para análise do discurso

humorístico do jornal A Manha

(1926-1964)

Preliminares

Autores auspiciosos: proposta para uma genealogia

do humor gráfico brasileiro 122 O processo gráfico-industrial no Brasil

da primeira metade do séc.XX e A Manha 126 O Design e o Designer Gráfico 128 Tipographia & layout: Os processos de impressão e o jornal A Manha 133 O Design Gráfico através dos tempos 138 O Design Gráfico no Renascimento 142 O século dezessete 147 A Era dos Gênios Tipográficos 148 Tipologia para a era industrial 149 O Poster Tipográfico 151 A Revolução na impressão 152 O Design Gráfico na primeira metade do século XX 155 O jornal A Manha 161 A entrevista com o Sr. Carlos Nicolaievski 166

Elementos do Projeto Gráfico e A Manha

Tipologia & textos: Níveis de leitura e formatação dos textos Cabeçalhos, manchetes, títulos, subtítulos:

A hierarquia de leituras e A Manha 192 O Design de Página d’A Manha:

Os anúncios de uma nova arte gráfica 196 Fios, iluminuras, ornamentos repetitivos

Clichés de uso permanente & Identidade Visual:

Os cabeçahos do jornal A Manha 200

A primeira fase d’A Manha (1926-1929) 201

Segunda fase d’A Manha

Os quatro meses em parceria com Chateaubriand

no jornal Diário da Noite em 1929/30 204

Terceira fase d’A Manha (1930-1937)

(10)

Quarta fase d’A Manha (1945-1948) A volta (por cima) d’A Manha:

Pós-guerra, candidatura a Vereador & o Partido Comunista

E surge a quinta coluna 215

Quinta e sexta fase d’A Manha

1949-1959 - Os Almanhaques e a Edição São Paulo-Rio

1960-1964 - A Manha no Última Hora 221

Ilustração, Caricatura, Charge & Cartum

234

A Fotografia no A Manha

Mais um pouco de História 268 Fotografia, imagem e linguagem visual 269 Visões da Fotografia 273 A fotografia no jornalismo impresso 276 A Manha e a fotografia:resenha introdutória 283 A fotografia n’A Manha 286

Ao Humor, apenas interessa o fim e não as mídias

Inferências & Conclusões:

resultados esperados & inesperados 295

Notas e Citações

307

Fontes de Pesquisa

Fontes primárias 311 Fontes secundárias 312 Reedições fac-similares com textos inéditos 313 Depoimentos de amigos, admiradores, estudiosos e contemporâneos 314 Fontes de interesse para o tema 315

Bibliografia

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Prefácio

A motivação primordial para desenvolver o presente trabalho vem de uma pes-quisa anterior, iniciada por motivos profissionais e pessoais, quase ideológicos. Num primeiro impulso, para preencher as lacunas entre a formação acadêmica e o exercí-cio profissional, resolvi seguir o caminho do amigo Beto Borges, e procurar a pós-graduação da FAU-USP, em 1996. Cursei diversas disciplinas como aluno especial para solidificar minhas aspirações, até que em 1999, ingressei como aluno regular, após ter sido aprovado no exame de admissão; depois de mais de 15 anos afastado da vida acadêmica.

Com um nível de exigência incomum, depois de passar pelo Colégio Equipe e pela Unicamp, me surpreendi deveras com a seriedade e a acuidade do que presen-ciei aqui na FAU: pelos professores, pelos colegas, pelas instalações, e, principal-mente, pela filosofia da instituição. Na expectativa de ter um curso eminentemente técnico, “cai de pára-quedas” num dos debates mais interessantes da atualidade, que é a visão multidisciplinar da Arquitetura, vista muito mais como uma Ciência Humana e holística, do que como sua velha qualificação de Engenheiro Arquiteto; o que sempre me remetia à técnica pura: a prancheta, o esquadro e a régua. Isso contou como um estímulo extra, já que combinava e casava com a minha formação pregressa, me deixando à vontade para desenvolver minhas idéias.

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Resgatando a frase de Robert Lynd, que Darcy Ribeiro utiliza para a introdução de seu livro As Américas e a civilização: “Este é um tempo crítico para as ciências sociais, não é um tempo para cortesias” e, relacionando-a com a velha concepção aristotélica da doutrina da moderação como uma virtude conforme à razão, percebi que a moderação, cada vez mais, tornou-se aparência e covardia: mais um embuste para encobrir a brutalidade do dissimulado e manipulador discurso da dominação; o que não tem nada de racional, nem de razoável. Contudo, a saída pela radicalização implica em “nadar contra a corrente” num caudaloso rio de águas pútridas; o que, além de ser anti-higiênico (para a razão) e de consumir grandes quantidades de energia, não despoluirá este Rio Tietê da racionalidade, correndo ainda o risco de descambar em insensata violência.

Mas a consciência das pessoas não está nem um pouco perturbada com a dou-trinação subliminar que as escraviza na perpetuação do trabalho alienado, se iludin-do na infelicidade iludin-do ansioso consumismo. Dominadas pelo vazio da ausência de individuação na cultura da racionalidade; e pela morte velada, de quem é para si e nunca em si, tão bem traduzida pelo sentimentalismo; muitas apelam para uma alienação auto-entorpecente, outras se consomem nas doenças provocadas pela neurose coletiva, sumamente expressa no caos urbano, anti-ético e imoral, que tes-temunhamos cotidianamente.

Esta alienação globalizada, que inverte tudo o que existe para mais facilmente dominar, exige dos que pensam, uma atitude de denúncia permanente; embora esse tipo de conduta apregoe estar ciente, a cada momento, da acuidade demanda-da por esta perigosa postura, pois, na falta de discernimento, facilmente seremos arrastados para o moralismo — o histórico motor da perversão. Por outro lado, e pelo mesmo motivo, temos que ter atenção redobrada com a ignorância das postu-ras levianas, que levarão à infâmia e à calúnia — veículos do cinismo e inimigas da verdade.

Tendo isso em vista e, também, toda dramaticidade que envolve as questões ideológicas contemporâneas, como cientista, me toca aplicar a coerência. E, preci-puamente, redefinir conceitos sociais básicos, tais como educação e civilidade. Pa-rece que, nesta seara, a cultura Ocidental tem muito pouco a ofePa-recer de proveitoso no atual momento histórico; pois, a ausência de moral e ética no âmbito social nos colocou em extrema inferioridade em relação àquilo que julgamos ser primitivo por muitos séculos.

Mas, render-se à evidências não é o forte da egóica cultura Ocidental. Marcada pela cegueira da arrogância e da vaidade, característica principal da visão que prioriza a aparência em detrimento da essência, criou uma realidade sem honra, completa-mente esquisofrênica e hipócrita; incompatível, incongruente e contraditória com o prodigioso progresso das Ciências. E, contrariamente ao progresso científico, vem dando à humanidade exemplos hediondos de uma involução crescente em direção à selvageria absoluta, pontuada por uma falta de inteligência assustadora.

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Enquanto isso, lá no Irã, o “malvado” Aiatolá vê seu povo produzir o melhor cinema do mundo, a milhares de quilômetros de Hollywood, sendo vencedor de inúmeros festivais, todos os anos, há bastante tempo. Honestamente, num lugar onde a cultura vive e prospera brilhantemente, o povo vive mal? Não tenho dúvidas quanto à resposta: primitivos e tirânicos somos nós, os ocidentais, que não respeita-mos as diferenças e, arrogantemente, nos arvorarespeita-mos a julgar e a interferir na cultura alheia. Este etnocentrismo sinistro, marcadamente racista, vive folgadamente em nossa academia, na nossa cultura, na nossa economia. E o pior, sem o mais leve questionamento. Vive dentro do marxismo sem que cientistas, tidos como de alto nível, se dêem conta de sua escandalosa ignorância; degenera-se o próprio proces-so cognitivo por falta de discernimento antropológico.

(14)

Relembrando o saudoso Orlando Vilas Boas: “Vivi 50 anos no meio dos Índios. Nunca vi dois Índios, sequer, discutir”. Entendo que precisamos reavaliar e reciclar urgentemente nossas noções a respeito de educação e civilidade: os povos da flo-resta nos mostram muito mais racionalidade, educação e civilidade do que o povo que vemos cotidianamente nas ruas de nossas cidades. E com mais inteligência também, pois deixam que a competição ocorra em seu próprio meio, ou seja, na cadeia alimentar da natureza, onde animais irracionais competem e disputam sua sobrevivência cotidiana matando e comendo outros animais, igualmente irracionais. Entre os índios brasileiros, a mentalidade dominante (para aqueles que ainda não foram aculturados), é dada pela cooperação e não pela competição: paradoxos à parte, nossa cultura ocidental busca por isso desde que Hegel formulou sua filosofia dialética, há mais de duzentos anos; sem sucesso. Nesse caminho bisecular, per-deu-se o substrato metafísico da estabilidade social, instaurando-se uma liberdade aparente, que redunda em angustiante indefinição ética e moral, gerando o caos que afere e denuncia o estado de decadência da nossa civilização. E como ficamos nós?

Não sei, mas prego muita atenção e discernimento para os colegas da acade-mia. Eu fico com o Barão de Itararé mesmo. Por acaso, por revolta, por patriotismo e, depois de muito tempo descobri, por uma relevância histórica notável. Este prato quente e engraçado me abriu as portas para um questionamento muito saudável e engajado; e, espero, que este cardápio também sirva lautos banquetes de estímulo para colegas dedicados à busca da verdade com seriedade e isenção. Sempre com o Barão em mente, humildemente, apreciei os frutos que este trabalho me trouxe: um chacoalhão no calmo e sereno lago do conformismo consumista, que nos mas-sacra e nos domina a todo momento. Viva o Barão de Itararé!

Santana de Parnaíba, fevereiro de 2004

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Agradecimentos

Devo agradecer a tantas pessoas que influíram, ajudaram e apoiaram este trabalho de maneira proveitosa e decisiva, que, antecipadamente, me desculpo pelas omissões e esquecimentos.

Na FAU, cabe agradecer as contribuições prestadas por vários colegas e professores, alguns dos quais nem aluno fui; mas, que foram fundamentais para que o trabalho fosse reformulado, repensado e realizado. Me refiro, especialmente, a Ana Maria de Moraes Belluzzo; e, também, a Maria Cecília França Lourenço, Luciano Migliaccio, Carlos Egídio Alonso e Issao Minami. Aos colegas de trabalho e “mestres” da USP, rendo meus tributos aos Professores Murillo Marx, István Jancsó e Plínio Martins — pelo incentivo e pela seriedade que impuseram ao meu esforço —; no IEB, a Mayra Laudano, Ana Paula, Bianca, Lucia Thomé e Cecilinha; na Edusp, a João Bandeira e Marilena Vizentin; no Laboratório de Informática da FAU-Maranhão, à Profª. Élide Monseglio e ao Silvio; e nas secretarias do campus e da FAU Maranhão, assim como nas respectivas bibliotecas, devo agradecer o carinho, o interesse e a paciência dos funcionários.

Ainda no campo acadêmico, grandes agradecimentos, vão para a Profª. Dra. Marlene Yurgel e para o Prof. Dr. Fernando Antonio Novais: mestres, mentores e amigos, que, com incrível zêlo e propriedade, “salvaram” meu trabalho da insignificância, e, com enorme caridade, fizeram generosas apreciações. Gostaria de manisfestar-lhes aqui, a minha mais profunda gratidão.

No âmbito do Projeto Barão, mote de tudo o que foi empreendido, devo agradecer, primeiramente, ao meu fiel parceiro e irmão Sergio Papi, assim como a: Beto Borges, Mouzar Benedito, Fortuna, Jaguar, Carlos Nicolaiesvski, Heloisa Pontes, Júlio Artigas, Humberto Orduz Maldonado, Simão Zygband, Elia Pereiras e muitos outros que serão citados nas páginas que virão.

Agradeço à minha família, que, com apoio incondicional nos momentos mais delicados, não me deixou esmorecer: para meu avô, meus pais, meu primo Robert Steed, minha esposa e meus filhos, o meu muito obrigado, acrescido do pedido de desculpas pelas horas subtraídas de nossa convivência, para que este trabalho pudesse ser concluído.

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Apresentação

Não fiz deste trabalho uma monografia stricto sensu, pois nunca tive a intenção de esgotar o assunto neste esforço. Mais adequadamente, me propus a realizar uma dissertação monográfica, já criando o ambiente necessário para possíveis des-dobramentos. Ao início, estive um pouco assustado a respeito da pertinência em buscar, num autor “quase maldito” aos olhos da historiografia existente (pela falta de pesquisas), a fonte inspiradora para uma dissertação acadêmica. Com o tempo, fui percebendo que dois motivos principais me davam esta sensação. E, através da compreensão destes motivos, brotaram algumas das soluções que adotei.

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O segundo motivo é que a história sempre é escrita pelos vencedores ou pelos dominadores; e nunca pelos dominados, o que é compreensível. Autores de “es-querda” ou do povo somente serão valorados pela alta cultura, a qual é recorrente-mente conservadora e reacionária, quando sua influência já estiver completarecorrente-mente dissolvida pelo tempo — fora do campo competitivo das representações —; o que não é caso de Aparício Torelly; pois, “as mazelas que denunciou estão em pleno auge, sem signos premonitórios de superação”, como argutamente observou Anto-nio Houaiss na apresentação de As duas vidas de Aparício Torelly, o Barão de Itararé, de Cláudio Figueiredo (à frente, repetidamente citado).

Contemporaneamente ao Barão, aconteceu o movimento modernista. Podere-mos verificar extensos trabalhos acadêmicos sobre o modernismo brasileiro, que ocorreu sob o patrocínio da aristocracia e foi regido por influências externas, desliga-das da vida cotidiana do Brasil dos anos 20. Este fenômeno, “inventado e importa-do”, cumpria a função de atualizar e modernizar as representações artísticas e cultu-rais brasileiras, mas somente para uma ínfima parcela da população — especialmen-te para aqueles jovens que puderam cruzar o Atlântico e conviver com o movimen-tado modernismo europeu. Mais do que o elitismo denomovimen-tado, a maioria da popula-ção brasileira daquele momento não tinha as mínimas condições de entender aqui-lo, toda aquela avalanche de “lunáticas novidades”: tais inovações passavam ao largo da mentalidade corrente, sendo, praticamente, incompreensíveis.

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Assim, a perplexidade inicial foi ampliada com o aprofunda-mento das pesquisas: como um autor tão significativo, ainda não havia sido completamente esmiuçado, pesquisado, debu-lhado? Nesse momento senti o prazer e a angústia do historia-dor: por mais distante e longínquo que seja o fenômeno históri-co, este sempre nos oferecerá uma oportunidade de realizar um trabalho “arqueológico”, trazendo a público novas desco-bertas. Pelo outro lado, e por mais extensas que sejam as pes-quisas, as lacunas serão inevitáveis: com as mudanças no perfil epistemológico da própria historiografia, com o sepultamento completo dos vestígi-os dvestígi-os fenômenvestígi-os pelo tempo, e também por outrvestígi-os fatores, que aqui não vem ao caso. Portanto, foi em boa hora que resolvi penetrar neste universo, quase virgem e parcamente explorado, e, plenamente consciente das dificuldades que encontraria — o que me motivou sobremaneira pelo desafio de cumprir tão delicada tarefa.

Sem ter muita clareza em relação à obra e ao autor que pretendia estudar, e também na forma adequada de fazer a abordagem, me refugiei na modéstia reduti-va dos métodos para tocar esta empreitada. As primeiras idéias, de estudar o pro-cesso industrial da Arte Gráfica (através das inovações tecnológicas) e a metodolo-gia do projeto na criação do produto gráfico, não satisfazia as minhas necessidades e muito menos as de um trabalho consistente em termos acadêmicos; e percebi, que deste ponto, não haveria partida. Assim, dali retornei aos pontos mais simples e diretos, dentro de um encadeamento lógico sempre pautado pelo método científico. Assim, planejei o trabalho em três partes. A primeira é dedicada ao levantamen-to dos antecedentes, providência imprescindível para definir o tema e os materiais de trabalho. Ali compilei alguns aspectos da História do Brasil sob a visão da nova historiografia; a biografia do autor e sua obra; as fontes primárias e as secundárias. Na segunda parte procurei sistematizar os debates que envolvem a Filosofia da Ciência e suas seqüelas epistemológicas, para esboçar as possíveis abordagens do material levantado na primeira parte. Pelo que foi dito acima, não é difícil de perce-ber que tive que buscar mais dados sobre a teoria da “Psicologia Histórica” e fiz um passeio pela obra de Roger Chartier com essa finalidade; assim como, por alguns aspectos das abordagens estruturalistas na análise dos discursos e na teoria da comunicação, enfatizando os trabalhos de Roland Barthes, Roman Jacobson e Umberto Eco. Ainda ali, busquei esclarecer alguns traços das teorias sobre o Riso e o Humor, nas diversas concepções e nas diversas disciplinas que abordam o fenô-meno, tentando sublinhar o que poderia ser útil ao presente trabalho.

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Primeiro dissertei sobre os cabeçalhos do jornal, e agreguei alguns outros ele-mentos tipicamente gráficos, ou seja, eleele-mentos pertencentes ao vocabulário esté-tico exclusivo das Artes Gráficas. Na medida em que a análise do texto do Barão foge das especificidades temáticas do trabalho, fui dando raras pinceladas nesse assunto, conforme o desenvolvimento da dissertação o requeria. Dos elementos tipicamente gráficos, passei para os elementos visuais ecléticos, os que povoam tanto o discurso gráfico, como o discurso plástico: me refiro aos desenhos e às fotografias publicadas no jornal A Manha e nos Almanhaques.

Os desenhos incluem a ilustração, mas têm ocorrência principal dentro do gêne-ro humorístico: a caricatura, a charge, o cartum e a tira. Definindo e comentando superficialmente cada modalidade, tratei de exemplificá-las com material iconográfi-co original. A Fotografia, por sua importância no discurso gráfiiconográfi-co da atualidade, na-quele momento de gênese e implantação, me pareceu solicitar uma atenção maior. Compilei as diversas teorias da Fotografia, sob diversas óticas e concepções atra-vés da História; e, especialmente, atraatra-vés das teorias de Arlindo Machado, cujo perfil, creio eu, melhor se adapta ao presente trabalho. Depois, na mesma linha da análise descritiva anterior, expus as técnicas utilizadas no A Manha e nos Almanha-ques, para a recriação dos significados dos referentes fatuais das fotografias com objetivos humorísticos.

Ainda devo confessar que minha esfera de preocupações também incluiu a uti-lidade didática e acadêmica deste trabalho, em vista da carência de estudos temáti-cos específitemáti-cos nesse momento. Essa apreensão, além de engendrar um discurso às vezes dispersivo, às vezes digressivo, também deu ao trabalho um pouco da “cara” ou do cunho de um manual; o que sempre nos remeterá à uma obrigatória superficialidade. As ilustrações que são aplicadas acompanhando todo o texto, de ponta a ponta, são da primeira e segunda fase do A Manha (1926-31) e dos Alma-nhaques; e foram legendadas pontualmente, pois cumprem a função de divertir o leitor e de saciar a sua curiosidade enquanto a narrativa se desenrola. Esta conduta foi premeditada e, juntando com o que disse acima, cumpriu os objetivos mais es-senciais desta dissertação; qual seja, o estabelecimento dos campos teóricos e em-píricos para a formulação e o desenvolvimento de uma tese sobre a obra de Aparício Torelly, o Barão de Itararé.

Ilustração de Guevara para o calendário da Empresa

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Primeira Parte

Antecedentes

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Introdução

Aspectos históricos da representação

cômica e humorística das vidas pública e

privada brasileira através dos tempos

Na medida em que vou tratar de aspectos característicos da linguagem escrita e visual — design, projeto e humor —, me parece que a abordagem social, cultural, antropológica e histórica que o tema solicita será mais produtiva se vista sob a ótica da nova historiografia: primeiro, por seu cunho multidisciplinarista; o que enriquece e multiplica o poder explicativo da análise. Depois, pela questão do estudo da vida privada, o que nos levará aos estudos de caso em formato descritivo e — muito bem observado por Fernando Novais(1) — como procedimento recorrente,

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Este exercício hermenêutico encaminha ao estudo da mentalidade (daquela classe social, na-quele momento histórico) nos atores históricos e na sociedade de seu tempo. A relação entre as representações e as práticas sociais, entre dis-cursos e cotidiano, trará os indícios necessários para penetrar nas questões que mais me inte-ressam: o processo criativo, as técnicas expres-sivas subjacentes e a apropriação social do dis-curso estudado, assim como sua postura frente ao discurso da dominação. Assim, adiante farei uma breve explanação sobre a formação e a his-tória do povo brasileiro, suas características e peculiaridades históricas em relação às questões da vida pública e privada, para chegar ao momen-to histórico estudado com, pelo menos, o con-torno geral do arquétipo e do imaginário cultural brasileiro, especialmente nos aspectos que ex-plicitam o automatismo dos julgamentos sociais naquele momento histórico e, especificamente, em relação às manifestações culturais cômicas e humorísticas. Em suma, desejo verificar breve e esquematicamente “como funciona” a menta-lidade brasileira na primeira metade do século XX, para dai compreender a história fatual de maneira mais focada, específica e direta em relação ao tema e aos inte-resses da pesquisa. Mais adiante, ao tratar das questões metodológicas, voltarei à este assunto com mais vagar.

Terra à vista

Voltando a NOVAIS(2), durante o descobrimento e nos séculos seguintes, na

Eu-ropa, ocorria a transição do feudalismo ao capitalismo, sendo este processo, o mer-cantilismo, marcado por alguns aspectos fundamentais para a compreensão do que ocorria no Novo Mundo em relação à vida pública e privada:

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2 - As formações pré-capitalistas primeiramente configuradas como estados nacionais iniciam a expansão colonial como mecanismo de acumulação primitiva de capitais, os quais financiarão a revolução industrial no final séc. XVIII. Ali, as manifes-tações da intimidade vão se definindo em relação à formação do Estado. No Brasil, as esferas públicas e privadas apresentam-se invertidas, gerando práticas sociais ilegítimas, contraditórias e paradoxais, as quais ocorrem tanto na esfera pública, como na esfera privada (intimidade e cotidianidade);

3 - Os processos de unificação nacional europeus, de constituição do estado moderno, passam por um sistema político absolutista, legitimado pelo iluminismo religioso. Com a estabilização dos estados nacionais e o desenvolvimento da econo-mia mercantil, ocorre a laicização do estado (Revolução Francesa) para a implanta-ção plena dos valores burgueses e racionais, contrapondo religião e estado, e tam-bém estabelecendo e delimitando o território público e o espaço privado na socieda-de. Nas Colônias, extensões das metrópoles, além da questão da formação do esta-do, também apresenta-se o processo de gestação da nacionalidade. No Brasil, essa contradição, às vezes aproximadora, às vezes conflituosa, embaralha ainda mais as esferas públicas e privadas, gerando uma sensação de perplexidade e insegurança nos atores históricos por sua falta de coerência lógica e moral;

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Em face desta situação, o humor sempre foi um ponto alto da cultura brasileira. Segundo Leandro Konder(3), nos tempos da Colônia as ordens de Sua Majestade

eram acatadas, mas nem sempre era possível praticá-las na situação brasileira. Um estado inépto para controlar tamanho território, dissolvia-se entre a indiferença e a corrupção — onde a pirataria na costa e a ocupação territorial comandada por cruéis degredados e mercenários davam a tônica da colonização: massacre de índios e trabalho compulsório nas plantations e nas minas. O resto do país ia à reboque, e vivia no isolamento da exploração predatória itinerante e das atividades de subsis-tência, nas vastas florestas e campos, e nos raros e incipientes povoados e núcleos urbanos. O poder da coroa nunca foi levado muito a sério, sendo desafiado continu-amente por abusos, farsas, roubos, negociatas e desmandos, e, por isso, sempre foi motivo de chacota e zombaria; o que divertia a população.

A natureza indomável e liberta do nativo brasileiro, fruto de sua estrutura social igualitária, associada à presença cruel e perversa do invasor — não apenas em astú-cia e violênastú-cia, mas principalmente pela introdução das doenças contagiosas do além-mar — custaram à humanidade a extinção de alguns tesouros antropológicos e, muitos deles, desapareceram sem deixar vestígios ou traços. Na versão de Darcy Ribeiro(4), o início da ocupação portuguesa contou com grande apoio dos

aboríge-nes, os quais, majoritariamente, pertenciam à matriz Tupi-Guarani, e estavam pre-sentes do Rio da Prata até os afluentes do Amazonas.

Um século antes da chegada do europeu os povos do tronco Tupi-Guarani já estavam realizando a revolução agrícola ao domesticar diversas plantas, e apresen-tavam um nível evolutivo superior ao dos outros povos indígenas brasileiros. Nas primeiras décadas da ocupação, o convívio entre nativos e europeus foi cooperativo e pacífico, estabelecendo relações simbióticas: “…estes novos núcleos humanos só puderam surgir, sobreviver e crescer em condições tão inviáveis e em meio tão diverso do europeu, porque aprenderam com o índio a dominar a natureza tropical; fazendo deles seus mestres, seus guias, seus remeiros, seus lenhadores, seus ca-çadores, pescadores, artesões e, sobretudo, fazendo das índias suas mulheres, em quem geraram uma vasta prole mestiça que viria a ser, depois, a gente da terra.” (op. cit. pp. 245). É deste contato que surge o primeiro “povo-novo” do Brasil, o mameluco, fruto da miscigenação do índio com o europeu, antes da chegada do negro africano.

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A colonização moderna envolvia todas as esferas da existência, modificando completamente a paisagem nativa com seus amplos deslocamentos populacionais. Pelos imigrantes, a Colônia também sempre foi vista como um prolongamento da Metrópole e ao mesmo tempo a sua negação: pelo confronto de culturas; pela con-tínua chegada de novos contingentes populacionais e por esta intensa mobilidade populacional na Colônia em oposição à uma relativa estabilidade na Metrópole.

Na casa grande tentava-se praticar a cultura portuguesa, onde os senhores não desejavam esquecer suas raízes européias: estes faziam questão de não ser brasi-leiros, era como se tivessem nascido aqui por acaso. Na senzala, predominava a cultura africana: banzo e revolta denotavam as aspirações de quem não escolheu estar por aqui. Nas vilas, a mistura de tudo isso num caldo eclético e não elaborado, costurado pelo poder e influência social da Igreja Católica a serviço de Sua Majesta-de, dominava a cena brasileira. Ninguém gostava muito deste lugar, exceto a desi-dentificada gente da terra, que, a esta altura, já pretendia saber quem era, de onde vinha e para onde ia. O “continente” brasileiro havia sido loteado em enormes capi-tanias de extração e exploração, e nunca houve uma colonização nos moldes da América do Norte. Com escolas, universidades e gráficas banidas e proibidas, os sinhozinhos tinham que cruzar o Atlântico para adquirir o conhecimento pessoal, a educação e a civilidade européia. E, também, já tinham que enfrentar o complexo de inferioridade e, a elitista e preconceituosa, discriminação social por ser natural da Colônia.

A intensa mobilidade populacional, expressa de forma horizontal e em contínuo deslocamento no espaço, propiciou ao Brasil um rápido crescimento demográfico nos três primeiros séculos pós-descobrimento, caracterizando uma população mó-vel, instável e dispersa. No plano das relações íntimas havia uma necessidade cons-tante de integrar novas pessoas no meio social, gerando relações e formas de con-vívio rasas, superficiais.

O fator demográfico tem relação direta com a economia baseada no sistema de plantation, a qual visava a exploração para o desenvolvimento da Metrópole. Sendo uma economia predatória, ao esgotarem-se os recursos da natureza, esta tendia à itinerância. Em suma, a economia colonial tinha um baixo grau de reinvestimento; era puramente extensiva e dispersava suas populações. Esse sistema também oti-mizava a expansão territorial da dominação colonial para garantir espaços de explo-ração monopólica na ardente competição entre as Metrópoles européias por novos territórios (o Tratado de Tordesilhas é um exemplo).

Este estado de coisas criou na Colônia uma sensação de descontinuidade popu-lacional, que primeiro era marcada pela diversidade das populações (negros, índios, europeus e mestiços), para dai tornarem-se colonos regionais (mineiros, paulistas, pernambucanos, etc) e, depois, brasileiros. Dois “mundos” econômicos distintos conviviam e engendravam sociedades de cunho diverso: a economia para exporta-ção, instalada na costa na rota dos Tupis era mais enraizada e estável, enquanto nas minas sobrevivia um economia de subsistência em permanente mobilidade, sem implantação.

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Esta sociedade, marcada pela ligação entre diversidade, fluidez e dispersão com a compulsão ao trabalho (no limite a escravidão, como quer NOVAIS, op.cit.), revela-va uma estrutura de classes estamental com uma clirevela-vagem intransponível entre senhores e escravos, onde uma camada intermediária era formada por homens li-vres pobres, pequenos produtores, etc; determinando a organização familial e as formas de moradia destes estamentos. A miscigenação criava outro paradoxo, pois o mestiço nascia escravo: enquanto abria um canal de aproximação, um espaço de amaciamento (NOVAIS citando Gilberto Freire in Casa Grande & Senzala), também reafirmava as formas de dominação e provocava um enrijecimento do sistema. Na camada intermediária das sensações constatávamos o distanciamento, a desconti-nuidade e a clivagem, sendo a mentalidade colonial permeada por uma fugidia iden-tidade nacional em gestação.

A escavidão como relação social dominante, embora não exclusiva, na esfera do cotidiano e da intimidade era delineada por três tipos básicos de relações primárias (cotidianidade, intimidade, individualidade): relações interclasse senhorial; relações internas no universo dos escravos; e, relações intermediárias entre senhores e es-cravos. No cotidiano, estas relações tinham situações e momentos de aproximação, distanciamento e conflito, onde a clivagem básica era irredutível.

Em relação à mentalidade, esta situação funda o estigma de que o trabalho está ligado à servidão e o lazer à dominação nessa sociedade colonial de estamentos e com grande mobilidade. Aqui outro paradoxo é revelado pela sensação de ambigüi-dade construída nessa aproximação e distanciamento simultâneo. E isso acirra-se com a mentalidade senhorial contraditória, que requisita um comportamento burgu-ês no dia-a-dia do mercado, entretanto era ali mesmo, no mercado, que adquiria-se o escravo que lhe conferia a condição senhorial.

Essas sensações confusas e contraditórias estão fundadas na estrutura básica da colonização e na camada intermediária de enquadramento do cotidiano e do ínti-mo do “viver em colônias”. A camada social dominante, lastreada na economia colonial, tinha o caráter de extroversão e realizava a acumulação externa de capitais. Essa externalidade da acumulação, que freava e atrasava o desenvolvimento e a modernização da Colônia, na camada de sensações trazia os sentimentos dominan-tes de instabilidade, precariedade e provisoriedade. Ou seja, esdominan-tes vínculos entre as estruturas fundantes do sistema colonial e o modo de vida íntimo e cotidiano gera-vam sensações de desterro, ambigüidade, desconforto.

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A manipulação doutrinária da dominação aliada às contradições e paradoxos aci-ma descritos privilegiavam, no brasileiro, um enfoque cômico de sua intimidade e de seu cotidiano. Na continuidade do fluxo temporal da história brasileira, o episódio da Independência em 1822 apresenta-se com um cunho farsesco e parece uma peça cômica, onde o príncipe herdeiro da Metrópole, um português, abre mão do trono para ser Imperador na Colônia, que já lhe pertencia. À maneira de um capadó-cio, esse Imperador ilegítimo, golpista, epilético e mulherengo opta pelo Novo Mun-do “antes que um aventureiro lance mão”, apoiaMun-do pelas elites nacionais temero-sas da perda de seus privilégios e de seu poder de dominação.

Nem morreu, nem ficou independente!

As tensões para a formação do estado e para a gestação da nacionalidade brasi-leira foram docemente costurados para transpor o país do domínio colonialista por-tuguês para o domínio do imperialismo inglês sem alterar demasiadamente as es-truturas sociais, sem introduzir completamente a mentalidade burguesa, e manten-do o trabalho escravo durante quase tomanten-do século XIX; e continuanmanten-do a realizar, em grande medida, a acumulação externa de capitais.

Nas ruas, o folclórico brasileiro de todos os tempos, sempre entorpecido pela dúvida e pela cachaça, criava versões de botequim para o momento da Independên-cia, repetidas exaustivamente por humoristas de auditório; uma das quais transcre-vemos abaixo para exemplificar as conseqüências deste estado de coisas sobre a mentalidade do povo do brasileiro: “Pedro I retornava da casa de sua amante, a Marquesa de Santos, quando, às margens do Ipiranga, este teve um desarranjo intestinal. Depois de obrar, seus guarda-costas constataram que os lencinhos de cambraia belga que Sua Alteza costumava usar para se limpar haviam terminado, ao que, um deles (depois rebatisados pomposamente de Dragões da Independência) ofereceu-lhe o papel que a tropa usava para esta finalidade. Ao utilizar o dito papel, o Príncipe não se conteve e berrou:

— Este papel é de morte! Ao que, os futuros dragões, que estavam à uma certa distância e não ouviram perfeitamente os gritos do amo, exclamaram:

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Não ficou independente, não correu uma gota de sangue e estava preservado todo o poder das oligarquias implantado durante o sistema colonial… E é portanto natural essa crise de identidade do brasileiro, onde a pátria continua a ser vista como uma coisa externa e ilegítima, que não pode ser apropriada ou mesmo amada — enfim, que não lhe pertence. E esse sentimento brota vigorosamente através do comportamento hostil, distante e vândalo em relação ao que é público, coletivo: talvez seja a herança funesta da ilegitimidade política e da inversão das esferas pú-blicas e privadas. Nunca houve no brasileiro uma consciência clara de que o que é de todos também é seu, tampouco civilidade e educação para respeitar o que não lhe pertence, já que assim o vê. A vingança do povo brasileiro dirige-se contra a coisa pública e não contra quem, de fato, lhe agride e lhe expropria no cotidiano: há uma transferência deste ódio ao senhorio (onde relações ambíguas expressam con-flito e, ao mesmo tempo, emotividade e fidelidade pelo caráter populista, paternalis-ta, personalista e protecionista das relações sociais escravistas) para o estado, o poder público e o patrimônio coletivo, que são identificados como assunto externo e alheio, e também como o veículo da opressão e da coerção.

A desesperada expressão cultural dos artistas e intelectuais brasileiros, em bus-ca de uma identidade própria no começo do séc. XIX, inventava suas raízes no ro-mântico e ufano nativismo, o que era um grande imbróglio depois de três séculos dizimando e escravizando os aborígenes. Mas já explicitava um desejo expresso de ser brasileiro, coisa, até então, inviável e distante. Herói nacional, só o Tiradentes mesmo. Os outros foram invenções, manipulações, sonho, delírio e/ou literatura: ou seja, risíveis heróis.

Essa relação esquisofrênica entre a realidade cotidiana e o discurso social prati-cado enseja reiteradamente esse aspecto de manipulação e troça ao mesmo tem-po, e seus reflexos e vestígios sobre a prática das representações na vida social são notáveis. As representações nunca puderam expressar diretamente o que se vivia de fato, mesmo por que o brasileiro daquele momento não sabia muito bem quem ele era, nem para onde ia ou o que queria; sem contar, é claro, com a violenta e subliminar repressão dos que “podem mais”. Assim, a representação paródica, desde sempre, esteve presente nas manifestações brasileiras expressas através de lin-guagem escrita, visual ou oral(5).

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Um pouco depois, em 1859, o Brasil recebe e adota o italiano Angelo Agostini; o qual chega por aqui aos 16 anos de idade, depois de estudar pintura em Paris. Agostini é considerado uma das maiores figuras do jornalismo brasileiro de todos os tempos. Desenhista gráfico, caricaturista, chargista e ilustrador de mão cheia, surpreendeu com seu desenho de estilo marcadamente pessoal e superior ao dos colegas con-temporâneos, com seus traços contundentes e ásperos. Foi um ardente defensor da Abolição e da República, e grande comentarista da história política brasileira até a última década do séc. XIX. Primeiro instala-se em S.Paulo: funda o Diabo Coxo (1864) e trabalha no Cabrião (1866) com Américo de Campos e outros. Suas charges provo-cam grande agitação na capital paulista, o que o leva, espontaneamente, a transferir-se para o Rio de Janeiro, onde colaborou em O Arlequim (1867) e Vida Fluminentransferir-se (1868).

Funda e mantém a Revista Ilustrada de1876 a1891, publicação de desenho hu-morístico de grande prestígio e popularidade durante duas décadas. Suas reporta-gens meticulosamente ilustradas com um excepcional desenho litográfico anteci-pam a presença da fotografia na imprensa. Foi também pioneiro das histórias em quadrinhos, contemporâneo do alemão Hans & Fritz e três décadas à frente do Litle Nemon, com As Aventuras do Zé Caipora. Esse personagem, o Zé Caipora, é prede-cessor do popularíssimo Jeca Tatu de Monteiro Lobato, e sobrevive, em essência, até os anos 70 do séc. XX nas criações de Amácio Mazzaropi. No Rio, funda ainda o Dom Quixote (1898) e está entre os criadores de O Tico-Tico (1905), a primeira revis-ta infantil brasileira. Seus últimos trabalhos estão publicados em O Malho. Faleceu em 1910.

Na esteira da ré pública chegamos ao século XX

No período da Abolição e da proclamação da República a mentalidade parnasia-na e positivista domiparnasia-nam a sociedade brasileira parnasia-na Belle Époque com o lema, extra-ído da Ars poetica de Horácio,“ tirar a luz da fumaça”, e o sentimento nativista do início do século foi substituído pelo repúdio à vida rotineira e aos arcaísmos, aos modos provincianos e as sociabilidades causadas pela sociedade escravista. A ansi-edade pelo cosmopolitanismo, num desejo sôfrego pela europeização e moderniza-ção percorre o país, agora num quase “desejo de ser estrangeiro”.

O expediente paródico se multiplica nessa difusa busca por uma identidade na-cional, onde a farsa e a ilegitimidade predominam, e, como perpicazmente observa SALIBA (op.cit.), as manifestações críticas aparecem com insistente redundância paródica, o que sempre produz uma relação tensa entre representação paródica e o real parodiado. Enfim, o recurso da paródia humorística é uma atitude legítima fren-te à ambiguidade das esferas públicas e privadas, e torna-se marcanfren-te nas manifes-tações culturais brasileiras.

Essa ambigüidade entre a vida pública e privada numa sociedade escravista, com uma elite corroída pelo complexo de inferioridade em relação ao europeu e permeada por ilógicos e inexplicáveis paradoxos, sempre teve no Brasil, como tôni-ca, a dificuldade de representação direta da realidade ou de auto-representação. Esse país, onde as sociabilidades privadas apresentavam-se como possibilidades(6),

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Como esclarece SALIBA(op.cit.pp.291) : “… do ponto de vista dos atores histó-ricos, …, era difícil pensar numa representação da vida privada brasileira que não fosse pela via da constatação da falta de sentido ou da imperiosa necessidade de recriar os significados — que sempre foram as características intrínsecas de uma representação cômica ou humorística do mundo e da vida”. Isso não quer dizer que todas as representações fossem humorísticas, mas estas ficavam sobremaneira favorecidas por estes fatores. E, com certeza, esta é a mais profunda raiz da apropri-ação humorística das representações como uma característica marcante da cultura brasileira.

O humor paródico, no caso brasileiro, com suas estratégias efêmeras de auto-representação e de legitimidade, descompromisso com o todo, ausência de siste-matização e fragmentação, provoca a realimentação do sentimento de desenraiza-mento e a sensação geral de desterro em sua própria terra.

O movimento modernista incorpora o humor paródico coibindo alguns de seus exageros, mesmo acontecendo (o modernismo) como projeto, sem a modernização efetiva do país. A República Velha continuava a produzir “heróis” paródicos em dis-ponibilidade, como o Zé do Pato, Gonzaga de Sá, Zé Povo, Jeca Tatu, Xique-xique ou o Barão de Itararé, sem contar a vasta galeria de personagens, anti-heróis ou heróis da terra, criados pela literatura (Policarpo Quaresma, Macunaíma, etc, etc). E a des-concertante falta de significação, entrementes, ia sendo preenchida com represen-tações de caráter humorístico.

A realidade da vida privada brasileira ainda estava distante do individualismo e dos ideais modernizadores e liberais que colocam o viver cotidiano em convívio permanente com a coisa pública. Assim, a representação da vida cotidiana pela rei-teração do cômico é uma decorrência desse imaginário, cujo núcleo é a ambiguida-de, a contradição e o paradoxo.

Neste fio condutor dos autores brasileiros de humor, nas primeiras décadas do século XX, Bastos Tigre botaria sua verve humorística a serviço da publicidade com seus reclames geniais; e artistas e desenhistas de grande talento, tais como Kalixto, Belmonte, J.Carlos, Voltolino, Martiniano, Figueroa, Guevara, Nássara, Mendez, etc, etc, publicavam seus trabalhos em revistas humorísticas de ótimo nível: O Malho, Fon-fon, Careta, Crítica, etc. Sempre baseado no traço clássico do humor inglês do fin de siècle, herança das técnicas litográficas na imprensa, a criação humorística gráfica adquiria um requinte a altura de europeus e norte-americanos. E também expressava aquele “desejo de quase ser estrangeiro”, na ânsia pela modernização do Brasil.

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Juó Bananere, que colaborou com Aporelly desde o primeiro número do A Ma-nha em 1926, firma o seu idioma peculiar, o estapafúrdio macarrônico(7), no Diário

do Abax’o Piques em 1931; onde a reprodução do som dos fonemas é transcrita em palavras coloquiais literais que imitam o sotaque trazido pelo imigrantes italianos, aproveitando a oportunidade para dizer, de forma quase direta, suas críticas conci-sas e bem humoradas. Esta fórmula já vinha sendo burilada n’A Manha com os Sublementos de Zirya & Beiruth, do Alemagna, e o Lusitano, ficando o italiano a cargo de Basguale Giurnalista e Juó Bananere (e, atentem, essa colaboração durou décadas!). Não sabemos precisamente se Aporelly e Bananere tinham idéias em comum ou influenciaram-se mutuamente, como Guevara e J.Carlos.

O fato marcante é a fórmula e a redundância da auto-representação paródica do brasileiro, voltando inevitavelmente aos mesmos personagens sob diferentes alcu-nhas. No A Manha não foi diferente, e os três tipos populares mais conhecidos e reconhecidos: o capadócio, o carcamano e o caipira são mote constante para os trocadilhos nonsense, as piadas e as delirantes matérias ali publicadas. No rol dos assuntos não poderiam faltar os políticos, as damas da sociedade, os tubarões e o futebol.

Nas manifestações humorísticas brasileiras, todos os aspectos e assuntos da vida pública e privada brasileira vão passando por este crivo repetitivo e redundante, sempre circundado e se firmando no arquiconhecido — até como justificação das características próprias do humor, que é fragmentário, circunstancial e passageiro, repito —; assim, as representações iam denunciando as incoerências e falsidades da trama social frente ao discurso da dominação e às efetivas práticas sociais, públi-cas e privadas. E isto acontece em toda criação humorística brasileira e se transpõe para as novas mídias também, onde o A Manha tem grande peso e destaque até os anos 40, enquanto prevalece e predomina a mídia impressa como veículo de maior penetração, num país de maioria analfabeta. Contudo, o estilo nonsense introduzido pelo A Manha sobreviveu e adaptou-se aos novos tempos e, até hoje, faz incrível sucesso. A Turma do Casseta & Planeta que o diga, pois exagera no uso das cria-ções de Aporelly sem dar o devido crédito, constantemente!

O rádio invadiu os domicílios brasileiros de maneira cabal, rompendo a exclusão do analfabetismo e do elitismo sócio-cultural, intervindo diretamente sobre o con-junto de hábitos e práticas cotidianas da sociedade brasileira. Esse impacto inicial do rádio ainda trazia os cacoetes das criações literária, gráfica, musical e teatral pre-gressa, que com o tempo vai coibindo os excessos consentidos naqueles espaços controlados e excludentes (mas que valorizava, por isso mesmo, a oralidade e o boca-a-boca), e vai abrindo uma ampla avenida para a televisão instalar-se no final dos anos 50, e tornar-se o maior veículo de aculturação massiva e doutrinária jamais visto; infelizmente, de maneira indiscriminada, reacionária e caótica… o “grande monstro” que arrasa e extingue as culturas e diferenças regionais, sempre nivelan-do por baixo a mentalidade popular ao embasar-se na manipulação perversa de infor-mações, no sentimentalismo apelativo e na idolatria fetichista. Na versão do próprio Aporelly, “a televisão é a maior maravilha da ciência, a serviço da imbecilidade”.

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A expressão máxima dessa ambigüidade paradoxal a que o brasileiro estava submetido naquele momento histórico traduz-se integralmente no personagem Ba-rão de Itararé: é o único nobre desta República pouco séria (plano político); é o Aporelly ou o Sr. Barão? (plano pessoal e social); é sério ou é brincadeira, piada? (plano da criação humorística). Como afirmou Fortuna(8), este personagem paródico,

que invade e confunde-se com a vida pessoal de seu autor, pois era “a síntese de tudo que ele criticava”, divertia à beça o público, que esperava ansiosamente nas bancas por aquela publicação que saia “em certos dias e não no dia certo”.

No plano plástico, Aporelly contou com o parceria de Andrés Guevara (por qua-tro décadas), que arrancava elogios do vaidoso J. Carlos e ao mesmo tempo abria a redação do A Manha nos anos 20 para o jovem Nássara copiar e aprender aquele desenho cada vez mais simplificado que dominaria a imprensa e o humor por muito tempo. Sem lançar mão daquele arrojo brilhante e espetaculoso de Kalixto, Guevara conseguiu fazer do A Manha seu grande laboratório da linguagem gráfica e jornalís-tica, introduzindo a idéia de projeto gráfico e de diagramação das páginas; utilizando sempre grandes áreas em branco; usando o texto como imagem (décadas antes dos concretistas); re-inventando e introduzindo a colagem e o retoque de fotografias à guache (criando a caricatura, a charge ou o cartum) na imprensa humorística. Quando publicava na grande imprensa, Gue não se utilizava destes expedientes, apesar de publicar quase que cotidianamente. Acentuando a simplicidade de traços figurativos geométricos e perfeitos (porém com resultado deformado, caricaturado), nos con-tornos e nas texturas (preenchimentos), concomitantemente e em harmonia com o cubismo de Picasso e a linguagem telegráfica dos modernistas, este artista demons-trou seu engajamento estético com os movimentos artísticos de seu tempo e tradu-ziu sua vidência profética em criações precoces e premonitórias do que seria o Hu-mor e as Artes Gráficas décadas à frente.

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Em outubro de 1930, o Brasil vivia um clima de messianismo coletivo e a batalha de Itararé estava agendada entre as lideranças militares e populares, e divulgada na imprensa: Getúlio Vargas viria do sul contra Washington Luis que estava no Rio, e se encontrariam na fronteira de S.Paulo com o Paraná, na cidade de Itararé, para a anunciada batalha. E teria acontecido, se Washington Luis não tivesse sido deposto por seus próprios auxiliares. Aporelly, que já esfolava Washington Luis há alguns anos na figura paródica cognominada de Váz Antão Luis, colaborador e articulista d’A Manha e Presidente do Brasil nas horas vagas, não perdeu a oportunidade e auto-proclamou-se “Duque de Itararé”, o herói da batalha que não houve. Mas a brincadeira com o patrono do exército o fez refletir… em tempos de revolução — achou melhor dar uma prova de modéstia e, uma semana depois, optou pelo baro-nato.

O Barão, apesar de gaúcho, foi um fenômeno tipicamente carioca, portanto de forte expressão nacional. A explicação de SALIBA (op.cit. pp.362-365), comentando a obra de Sergio Porto, é precisa e preciosa — também serve para o nosso Barão-de-araque — e é digna de menção e elogios pela acuidade e perspicácia:

“Ponte Preta exemplificou a maneira como o registro cômico brasileiro foi marca-do pelo Rio de Janeiro. Como tão bem diagnosticaram, em diferentes épocas, Raul Pederneiras, Orestes Barbosa e Alberto Lamego. Eles argumentavam que, no uni-verso da anedota, o carioca é indiscutivelmente soberano em toda política nacional; suas sentenças, pela via das anedotas que reclamam nosso riso despreocupado, tornam-se inapeláveis pela irreverência do ridículo. Quase instantaneamente esfuzi-am por todos os recantos do Brasil, que com elas assimila o sorriso carioca, a bono-mia carioca, a gargalhada carioca. E Alberto Lamego, escrevendo em 1948, con-cluiu: “À irradiação cultural do Rio de Janeiro sobre os destinos do Brasil, enfeixa-se numa poderosa projeção de contínua alegria que o transforma, e dirige aos poucos para uma hilaridade irresistível o romântico espírito brasileiro”.

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O mecânico calcado no vivo — essa defini-ção que Bergson nos forneceu da comicidade, limitada à época da revolução tecnológica, aju-dou-nos a entender o trânsito constante da paró-dia brasileira entre o privado e o público. Mas o filósofo da Evolução Criadora deu-nos uma con-ceituação excessivamente intelectualista do cô-mico: “o riso nasce de uma anestesia momentâ-nea do coração”, escreveu Bergson, referindo-se ao humorista — “este moralista disfarçado de sábio” — e à sua falta de compaixão pelas vítimas da piada. Bergson omitiu, assim, na sua famosa definição, a dimensão emocional conti-da na comiciconti-dade humana. Porque o cômico tam-bém sempre constituiu, no caso brasileiro em especial, uma forma de sublimar emoções. Como investimento emocional, a paródia cômica, arti-culou uma dimensão de representação do país, uma comunidade de representação extremamen-te disseminada no imaginário coletivo. Tão dis-seminada quanto raras vezes percebida de ma-neira explícita, talvez, mais no plano do agir do que no de conceber. Mais do que o deslocamento entre o privado e o público, ou a singular conexão entre os dois domí-nios, a dimensão da paródia cômica e a saída pelo riso pareciam compensar aquilo que um notável historiador chamou de “horror às distâncias que parecia constituir o traço mais específico da sociedade brasileira — aquela atitude que não suporta os trâmites e abstrações sociais, desconhecendo qualquer forma de convívio que não fosse ditada por uma ética de fundo emotivo” (Sergio Buarque de Hollanda in Raízes do Brasil - N.A.).

A representação da sociedade brasileira pela dimensão cômica mostrava que o privado não apenas se confundia com o público, diluindo-o, mas também criava um espaço para o indivíduo afirmar-se perante aquela espécie de vazio moral, que se criava cada vez que a aceleração da história reforçava, por estruturas mais gerais e vastas temporalidades, os redutos da racionalidade. O humor permitia, tanto na vida cotidiana quanto nas situações coletivas, livrar-se, pela irreverência, de autoridades e gestos incômodos, de si mesmo ou de outros — dando ao indivíduo, por efême-ros momentos, a sensação de pertencimento que o nível público lhe subtraíra e que, lentamente, ele tentava conquistar. Quanto mais reveses ele sofre (e ainda sofreria muitos), na busca dessa cidadania e desse lugar no espaço público, na tentativa de ver o mundo pela ótica da boa e reta razão, mais ele regride às suas emoções e ao cômico, porque, afinal, se o riso, essa epifania da emoção, não nos dá nada de duradouro, pelo menos nos humaniza e nos faz parte daquela integridade inacabada da existência cotidiana.

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O Barão se preocupava muito com o Brasil, com o elitismo e o autoritarismo da sociedade brasileira. E nunca desanimava! Era contra qualquer forma de opressão, tanto na esfera política como no âmbito da existência privada: nos anos 50 admitia “a guerra fria somente contra o calor excessivo, e, assim, apresentou suas patentes de Marechal-Almirante e Brigadeiro do ar-condicionado”. Em suas aventuras pela crítica musical, publicou: “a forca é o pior dos instrumentos de corda!”. Mesmo nos piores momentos não perdeu sua verve e seu emotivo humanismo, sempre dispa-rando sua metralhadora de risos. Ou seja, “sabendo levá-la, a vida é bem melhor que a morte”!

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Dos Pampas a Capital Federal

Nascido em 29 de janeiro de 1895 na fronteira com o Uruguai, Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly era filho de João da Silva Torelly, de descendência russa, e de uma índia Charrua uruguaia de pai norte-americano, chamada Maria Amélia Brinkerhoff Torelly. Com isso, ele costumava dizer… “sou uma autêntica liga das nações”.

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João Torelly, que tinha um sangue quente danado e havia perdido um braço no ano de 1893 lutando pela revolução, deu ao filho o nome em homenagem ao Cel. Aparício Saraiva, famoso por suas façanhas e sua bravura à frente dos maragatas (federalistas). Era um homem simples do campo, mas tinha um irmão instruído, Firmino da Silva Torelly, advogado famoso e padrinho de Aparício.

Firmino encaminhou o afilhado aos 11 anos para o Colégio Nossa Senhora da Conceição, dos Jesuítas, em São Leopoldo, perto de Porto Alegre (ingressou no dia 15/04/1906). Em 1907 e 1908 foi o primeiro da classe e em 1911 foi o segundo, com vários primeiros lugares em português, francês, alemão, inglês; e menções honro-sas em latim, religião e disciplinas ligadas à música (canto, banda e orquestra). Em 1909 publicou seu primeiro jornal, o “Capim Seco”, com tiragem de um exemplar, imediatamente apreendido! Todo manuscrito, este trazia na capa o desenho de uma cobra, em alusão ao “bruder” (brother, irmão) responsável pela germânica disciplina do colégio, o qual era apelidado não muito carinhosamente pelos alunos de “jarara-ca”. O inquieto menino não tardaria a entrar em conflito com a escola, revelando em tenra idade a irreverência e o humor que o acompanharia pelo resto da vida. Em 1911, sai do colégio no 5º ano ginasial, mesmo podendo cursar mais um ano para receber o grau de bacharel em letras.

Por influência da família, segue para Porto Alegre para estudar Medicina. Em 1916, aos 21 anos, publica seu primeiro — e último — livro: Pontas de Cigarro, um livrinho de versos diversos e poemas bem humorados. Mais ao estilo burlesco e satírico das publicações “lusitanas de alcova” dos séculos passados do que qual-quer peça de humor conhecida, o Pontas de Cigarros traz, um por página, aforismos críticos e engraçados (o acervo do IEB-USP tem um exemplar original), os quais já anunciavam alguns pontos fortes da futura temática de Aporelly: a falta de dinheiro, o casamento, os costumes e a pobreza.

Em 1918, nas férias sofre um derrame, mas se recupera com seqüelas: ficaria he-miplégico, puxando uma perna pelo resto da vida. Na versão de Cláudio Figueiredo(9),

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Com isso Aparício inaugura uma fase de andanças pelo interior gaúcho, fazendo conferências à moda trazida por Bilac e outros parnasianos e positi-vistas contemporâneos seus; fundan-do jornais e derrubanfundan-do prefeitos. Nes-tas andanças conhece sua primeira esposa, Alzira Alves, com quem teve três filhos (Arly, Ady e Ary). O casamen-to durou pouco e eles se separaram poucos anos depois.

Aos 30 anos, pobre e doente, re-solve abandonar a província e tentar a sorte no jornalismo da capital federal (1925). Vive de bicos até arrumar um emprego n’O Globo de Irineu Marinho. Pouco tempo depois ajuda Mário Rodrigues a inaugurar A Manhã, para, no ano seguinte — em 13 de maio de 1926 —, fundar A Manha, que circularia durante quase 40 anos, divertindo várias gerações de brasileiros.

A originalidade do humor do A Manha foi sua marca dileta. As principais publica-ções de humor daquele tempo tinham sido fundadas no início do século (O Malho/ 1902, Fon-fon/1907 e Careta/1908) e apresentavam fórmulas desgastadas, embora competentes. E A Manha os superou com facilidade naquele Brasil agrário com 34 milhões de habitantes e maioria analfabeta.

FIGUEIREDO (OP. cit.) aponta historicamente algumas publicações relevantes na área de humor, mas não situa o Barão neste contexto, nesta genealogia: não por falha, mas por pertinência temática. O Brasil tem uma longa tradição nesse campo, a qual, como dissemos, foi inaugurada ainda no período da Regência. Depois disso, esta tradição do humor crítico tem um importante desenvolvimento com o dese-nhista Angelo Agostini, considerado por muitos pioneiro e precursor das histórias em quadrinhos em suas reportagens e histórias ilustradas. Os jornais de Agostini, o Vida Fluminense e a Revista Ilustrada bem demonstram o lado ferino deste autor, que fazia o Imperador Pedro II sofrer na sua pena. Sem nos esquecer da tradição do humor escrito em todas modalidades através dos movimentos literários e das edi-ções oficiosas ou de “alcova” ou mesmo populares (cordéis), a irreverência do A Manha apenas poderia ser comparada à de Agostini. Assim o trabalho de Aporelly tem seu lugar nesta genealogia do humor nacional como uma de suas mais signifi-cativas manifestações: primeiro como resgate e desenvolvimento de uma tradição e depois, por sua originalidade. O A Manha lança o estilo de humor chamado de besteirol ou “nonsense” e é vanguarda mundial nesta área! Mas a originalidade do

A Manha não pára ai. O seu formato A4 (ou meio tablóide) na primeira fase (1926/ 31) reafirma a “imprensa nanica” (em oposição à grande imprensa), a qual tem algumas fases de explosão através da história, conforme a situação política do país — notadamente nos anos 70 do século XX, após a morte do Barão.

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FIGUEIREDO (OP.CIT) cita Martiniano, Mendez e Hilde como colaboradores d’A Manha, mas Hilde Weber colabora ali apenas a partir dos anos 40. Ou seja, não há uma preocupação em situar os desenhistas do “Barão” em seu tempo próprio, o que definiria alguns de seus estilos, fases e momentos. Por exemplo, Nássara fre-qüentou muito aquela redação para ver Guevara trabalhar, imitando-o; mas até os anos 30 e apenas para aprender o estilo conciso inventado por Gue, exclusivamente para o A Manha e seu “querido diretor”. Para Nássara nunca houve interesse em aprender com o Guevara cubista que deslumbrou J.Carlos nos anos 20, me confes-sou-o no lançamento do Almanhaque 1955 1º semestre (Studioma/Letra & Imagem) na Livraria Dazibao de Ipanema, Rio, em 1989. Quanto a Hilde, que nos anos 40 chegara a pouco da Alemanha e dedicava-se à cerâmica, fazer caricaturas começou como um bico para sobreviver e tornou-se, com o tempo, sua profissão principal até seus últimos dias (ela publicou por, pelo menos, três décadas — as últimas duas em O Estado de S.Paulo, mas começou n’A Manha nos anos 40). De fato, o grande e eterno parceiro e desenhista preferido de Aporelly foi sempre o paraguaio Andrés Guevara.

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Há uma sutileza ai, até agora não muito explorada pelos estudiosos do tema: o desenho que Guevara publica no Malho, na Careta e na Crítica em companhia de J.Carlos nos anos 20, apresenta um estilo marcadamente cubista, com formas e texturas geométricas e um certo grau de rebuscamento plástico. Antevendo o que florescia inédita e plenamente através do pincel de Pablo Picasso na mesma época, Guevara simplesmente abandona este lado vanguardista da Arte Plástica para tor-nar-se um dos esteios da modernidade no desenho impresso. N’A Manha, este mesmo desenho, sem perder seu cunho geométrico, adquire uma simplificação crescente e anunciadora do moderno desenho de humor e quadrinhos que viria nas próximas décadas, conjugando a facilidade de execução em duas dimensões com a velocidade imposta por uma informação cada vez mais rápida e superficial, entretan-to consistente ou aparentando sê-lo.

Em suma, o espaço revolucionário e irreverente do A Manha nos trouxe novida-des no humor e também na plástica das publicações, e até no estilo de realizá-las. Ali, a parceria com Guevara, também um gênio criador, teve asas para voar e pode-mos afirmar, sem susto, que o A Manha foi vanguarda mundial em se tratando de publicações de humor.

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O delirante discurso mantido nas páginas d’A Manha fez o Brasil rir “à farta”, enquanto “nosso querido diretor” acirrava suas vaidosas e fantasiosas disputas com os figurões da política e da sociedade carioca e brasileira. Entretanto, o fino tino de Aporelly sempre o preservou das opções maniqueistas e sectárias, garantindo-lhe livre trânsito por todas as camadas sociais e facções políticas, exceto em relação aos fascista. Assumidamente comunista, não deixou de manter relações com Ro-berto Marinho, Assis Chateuabriand, Arnon de Mello ou Samuel Wainer, por exem-plo.

Quatro anos antes da fundação do A Manha, em janeiro de 1922, fôra fundado o Partido Comunista Brasileiro por um grupo de ex-anarquistas em Niterói. Um mês depois aconteceu a Semana de Arte de 22 sob a batuta de Oswald de Andrade. Os novos tempos já estavam anunciados com o término da primeira grande guerra e favoreciam o espírito libertário e desbocado trazido pelo A Manha, e, rapidamente, a publicação vai assumindo os ares da modernidade como um dos primeiros fenô-menos de comunicação de massa no Brasil dos anos 20.

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A gênese do Barão …

e a sociedade com Assis Chateuabriand

Três fatos principais marcam este período em relação ao caminho de Aporelly: 1 - A sociedade com Assis Chateaubriand nos Diários Associados (out/1929 a fev/1930);

2 - O aparecimento do Barão de Itararé: sai de cena o “nosso querido diretor” para dar lugar ao Barão de Itararé;

3 - A Manha muda de formato: de A4 para tablóide, que o acompanharia até o final dos anos 50.

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A estratégia deu certo e já na primeira semana a tiragem dos “Diários” dobrou (de 7 para 14 mil exemplares), na segunda semana triplicou (21.000 exemplares), para atingir a incrível marca de 125 mil exemplares na publicação do programa da Aliança Liberal. Mas a sociedade não durou e apenas quatro meses depois o A Manha publicava: “desde quinta-feira passada, o Diário da Noite, que vinha sendo publicado diariamente como suplemento de A Manha, passou a ter vida autônoma, continuando, entretanto, com a mesma orientação humorística que tanto o popula-rizou…”.

Neste período, a presença constante de Guevara na redação melhorou a apre-sentação do A Manha e o “nosso querido diretor” aparece ali, pela primeira vez, como garoto propaganda. A proximidade do amigo também aguçou as estrepolias… contam as estórias que os dois mandaram afixar uma placa do A Manha no topo do prédio da redação dos “Diários” (onde estava funcionando o A Manha também) maior que a própria placa destes, sendo motivo de chacota constante no Rio de Janeiro naqueles quatro meses.

Em dezembro de 1930, ali, no meio da Av. Rio Branco e em plena revolução de 30, assim — “sem mesmo consultar o povo” —, Aporelly auto-proclama-se Duque de Itararé, para, em apenas uma semana, numa carreira fulminante, chegar ao baro-nato.

O aparecimento do Barão de Itararé, “herói da batalha que não houve”, aumen-taria ainda mais a transloucada megalomania presente no “nosso querido diretor”, colocando o A Manha nas mais sórdidas e hilárias disputas com tubarões, políticos e figurões da capital federal.

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Nesse arroubo de fantasias, invenções e crítica mordaz, o instigante discurso mantido nas páginas d’A Manha vai colocando o Barão de Itararé no coração do público, mesmo sendo ele a síntese de tudo que criticava. Esta revelação autocrítica e autofágica que a burla trás no personagem o faz adorado pelos leitores, que se identificam na crítica aos maus e atrasados costumes das elites brasileiras. Esta ambiguidade se estende para o plano pessoal e o Barão se vale disso em suas aparições públicas; pessoais e profissionais.

Em algum momento neste período A Manha passa a ser editada em formato tablóide. Pesquisas adicionais se fazem necessárias para precisar a data exata. Con-tudo, a prosperidade d’A Manha aliada ao furor revolucionário das ideologias de esquerda — em plena revolução de 30 — favoreceriam ainda mais a projeção do jornal no cenário nacional, enraizando o personagem no imaginário popular daquele tempo.

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Os anos 30 e o Estado Novo

Em 1934, o Barão seria vítima da extrema direita ao ser seqüestrado e espanca-do por oficiais da Marinha alinhaespanca-dos com os integralistas. O motivo foi uma série de entrevistas com João Cândido — marinheiro negro, vítima de torturas e outros abu-sos na Revolta da Chibata em 1908 — para o Jornal do Povo (publicação do Partido Comunista). Ali, o Barão dirigiu uma equipe de jovens e ainda desconhecidos valo-res: os escritores Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado, e os desenhistas Emílio Di Cavalcanti e Cândido Portinari. Após episódios de covarde violência, o jornal fecha com apenas 10 dias de vida. Para a posteridade, ficou a frase do Barão para as portas de suas redações: “Entre sem bater”. Neste ano faleceu de câncer a sua terceira esposa, com quem teve o filho Amy Torelly.

Referências

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