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CHARTIER(18) faz uma abordagem que aqui me parece útil a esse trabalho: pro-

põe-se a analisar a realidade através de suas representações, onde estas são consi- deradas como realidade de múltiplos sentidos e não redutíveis às práticas sociais, as quais têm uma lógica autônoma, independente das representações.

Dentro do debate sobre a história cultural na França dos anos 60 e 70, CHARTIER destaca a oposição entre a história social, econômica e quantitativa, e história das mentalidades ou psicologia histórica, e afirma que este debate leva a história a inva- dir áreas de disciplinas vizinhas (antropologia, sociologia, lingüística, etc) e empres- tar técnicas delas como meio de, pelo menos provisoriamente, resolver alguns dile- mas trazidos por este debate. Imbuído dos conceitos de relações de interdependên- cia de Norbert Elias e noção de campo de Pierre Bourdier, CHARTIER propõe uma nova história cultural, que teria como principal objeto “a identificação do modo como, em diferentes lugares e momentos, uma realidade social é construída, pensada, dada a ler” (op. cit.) .

Para isso, ele indica seus caminhos ou metodologia de trabalho, que teria duas vertentes principais, a saber:

1 - Classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de aprecia- ção do real;

2 - Variáveis consonantes às classes sociais ou meios intelectuais produzi- dos por disposições estáveis ou partilhadas, próprias do grupo social. Em suma, o autor prega o estudo das representações do mundo social, a cada caso, relacionando o discurso da representação com a posição do interlocutor que o utiliza; pois as percepções do social não são nunca discursos neutros e sempre produzem estratégias e práticas para impor uma autoridade não universalmente le- gítima, o que também serve para a sua auto-justificação pessoal de escolhas e de conduta. Nesse enfoque, as representações geram um campo de concorrência e competição, cujo plano subjacente são as relações de poder e dominação.

Estas lutas de representações tem tanta importância quanto as lutas econômi- cas para a compreensão dos mecanismos de imposição, de concepção do mundo real, de seus valores e domínio; e demanda um estudo dos conflitos de classificação e delimitação, identificando os pontos de afrouxamento: a objetividade das estrutu- ras seria matéria de estudo da história sócio-cultural serial e a subjetividade das representações engendraria a microhistória ou os estudos de caso (história das mentalidades).

Na história das mentalidades, a relação entre representação e representado po- deria ser equiparada grosseiramente “à relação entre signo e significado, sendo a representação afirmada pela dissimulação e não pela força, criando formas de domi- nação simbólicas por meio de aparelhos ou aparatos”. Assim, a mentalidade de cada grupo social tem um ser apreendido constitutivo de sua identidade.

Com isso, o estudo das mentalidades tem como tarefas:

1 - Delimitação e classificação de configurações intelectuais múltiplas; 2 - Elucidação das práticas que visam reconhecer a identidade social, o

significado simbólico, o estatuto e a posição social;

3 - As formas institucionalizadas e objetivadas pelos representantes ou representações que marcam a forma de dominação.

Para isso, CHARTIER propõe um exercício de hermenêutica: como a configura- ção narrativa pode refigurar a própria experiência, conduzindo o leitor às normas de compreensão de si e do mundo. Invocando Paul Ricoeur e M. de Certeau, CHARTIER vê na leitura possibilidades semânticas, mas também de refiguração da experiência, definindo modalidades de recepção e percepção do discurso proposto, criando ou elucidando uma estética da recepção.

A História das Mentalidades é vista como e quanto disparidades das utensilha- gens mentais (a edição é portuguesa e usa o termo utensilagens, que não nos pare- ce apropriado para o português brasileiro — fica a dúvida para os lingüistas). A apro- priação dos discursos é objeto de uma história social das interpretações, remetidas à suas determinações mais fundamentais (sociais, institucionais, culturais) e inscri- tas nas práticas específicas que produzem. Ou seja, as operações de construção do sentido nos atores históricos.

Estas operações de construção do sentido demonstram que as inteligências não são desencarnadas, mas vivem e são construídas na descontinuidade das traje- tórias históricas.

A História Cultural ou História das Mentalidades deverá privilegiar a representa- ção, a prática social e a apropriação dos discursos para realizar a análise do trabalho de representação, isto é, classificações e exclusões que constituem (na sua diferen- ça radical) as configurações sociais e conceituais próprias de um tempo e de um espaço. As estruturas do mundo social e as categorias intelectuais não são objeti- vas, pois historicamente foram produzidas pelas práticas articuladas (políticas, soci- ais, discursivas) que constroem suas figuras. São estas demarcações e os esque- mas que as modelam — e que constituem o objeto de uma história cultural —, que leva a repensar a relação entre o social (identificado com um real bem real e existen- te em si próprio) e as representações (reflexo ou desvio do social).

As antigas concepções davam às representações um sentido intrínseco, absolu- to, único. Aqui, as representações dirigem-se para as práticas que dão significado ao mundo: as práticas discursivas que produzem o ordenamento, a afirmação de dis- tâncias e de divisões; o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação (levando em conta as especificidades do es- paço próprio das práticas culturais). Portanto, nos leva a compreender as práticas complexas, múltiplas, diferenciadas que constroem o mundo da representação.

É claro que este estudo esbarra fortemente nas especificidades nacionais e regi- onais e para isso CHARTIER recorre aos conceitos de Panofsky de hábitos mentais (esquemas inconscientes de princípio interiorizado, que dão unidade ao pensamen- to de uma época) e força criadora de hábitos. De Lucien Febvre empresta o conceito já citado de utensilhagem mental, que são as maneiras de pensar e sentir de irredu- tível especificidade a cada época e lugar; e restringe a questão da inteligibilidade ao tempo, a seu próprio tempo.

O que diferencia a mentalidade dos grupos sociais de uma época é o grau de utilização da utensilhagem mental disponível naquela época: isto nos dá os limites do pensável em cada época, o que faz da história das mentalidades, a história das idéias também.

A mentalidade é sempre coletiva. É o que iguala todos os membros do grupo social, é o arquétipo dos pensamentos, hábitos, maneiras de agir e de sentir. A mentalidade, é o que rege as representações e o juízo dos sujeitos sociais sem que o saibam. Revela, portanto: o conteúdo impessoal do pensamento, a relação entre consciência e pensamento, e a relação entre o sistema de representações e o siste- ma de valores.

Segundo CHARTIER, R. Manchou define como mentalidade “o que é concebido e sentido, o campo da inteligência e do afetivo” (op.cit.) e leva sua análise pelas categorias psicológicas essenciais na formação do tempo e do espaço, na produção do imaginário, na percepção coletiva das atividades humanas. O coletivo leva ao automático, que por sua vez, nos leva ao repetitivo, o que é corrente e pertence ao cotidiano.

Assim, como recursos de análise, são propostos o uso de análises seriais, fór- mulas testamentárias, motivos iconográficos e conteúdos impressos, assim como um trabalho sobre as linguagens, lexicometria, semântica histórica, descrição dos campos semânticos e análise dos enunciados.

CHARTIER ainda invoca Georg Lukacs e seu conceito de visão de mundo, que seria o conjunto de aspirações, de sentimentos e de idéias que reúne os membros de um mesmo grupo (ou classe social) e os opõe à outros grupos.

O estudo das mentalidades provoca uma substituição da busca pela determina- ção, pela busca da função no âmbito do sistema ideológico da época considerada; delimitando, desde já, duas questões relevantes:

A primeira delas é a oposição entre Alta Cultura e Cultura Popular. A segunda, diz respeito à oposição entre criação versus consumo e produção versus recepção. Nas esferas da criação e do consumo constatamos as oposições entre passividade e invenção, entre dependência e liberdade, entre alienação e consciência. Nas esfe- ras da produção e da recepção verificaremos o distanciamento, o desvio e a reinter- pretação. A frase de Michel de Certeau sobre a escrita resume o espírito deste estudo: “a escrita é a leitura de uma outra escrita”.

CHARTIER ainda cita C. Schorske, que situa o estudo de história no encontro dos eixos diacrônicos e sincrônicos, emprestado do velho ferramental da lingüística criado por Ferdinand de Saussure em seu Curso de Lingüística Geral ; e Pierre Veyne, que propõe o estudo da “gramática escondida ou imersa” que explica o objeto do historiador, o objeto do intelectual.

Para Veyne, “a história é a descrição do individual através dos universais” e CHARTIER se vale disso para esclarecer as diferenças entre narrativa e relato, que trazem um princípio de indeterminação dado pela oposição entre história e estória e define as regras para o relato verídico: o paradigma do indício, que se move entre a representação das práticas e a prática das representações. O objeto de estudo do paradigma do indício explícita os condicionamentos e modos reguladores das práti- cas discursivas da representação, estabelecendo os conceitos de vestígio represen- tante em sua relação necessária e suficiente com prática representada.

Daí, mais uma vez invocando Norbert Elias, CHARTIER contrapõe formação (ou configuração) social e “habitus” para criar a dicotomia entre vida pública e vida priva- da, e explicar as relações de interdependência e o equilíbrio de tensões no âmbito social e nas representações. Creio que já trouxe elementos suficientes para minhas pretensões, e posso, assim, seguir adiante em direção ao tema proposto.