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Décimo pacote

Anos 80: A volta (por cima) do Barão Fontes secundárias:

Konder, Ssó & Figueiredo

O objetivo deste tópico é fazer uma apresentação crítica das fontes secundárias específicas existentes sobre o tema Barão de Itararé, as quais são escassas e raras. O escopo geral das fontes secundárias exclusivas sobre o tema contém apenas os livros de Leandro Konder, Cláudio Figueiredo e Ernani Ssó (já citados); capítulos e trechos em manuais gerais, tais como História da Caricatura no Brasil de Herman Lima; três teses acadêmicas (uma concluída, duas em andamento), reedições, ma- térias e entrevistas publicadas na imprensa sobre Aparício Torelly, Aporelly ou Barão de Itararé; e depoimentos diversos de seus contemporâneos.

Estas fontes poderiam ser classificadas em três categorias principais:

a) Matérias e entrevistas do período “em vida” do Barão (1895-1971); b) Livros, matérias e homenagens pós-morte (1971-1989);

c) Reedições da obra, livros, matérias e homenagens póstumas, mais teses e

dissertações acadêmicas, novas matérias e novos depoimentos colhidos a partir do

Projeto Barão (1989-200X).

Boa parte das fontes contidas no item a) já foram comentadas por Cláudio Fi-

gueiredo e aproveitarei informações ali contidas para esclarecer e ilustrar minha explanação, deixando uma pesquisa mais extensa e aprofundada sobre estas para um momento mais oportuno; sem desprezá-las entretanto, pois como SALIBA (op.cit.), suspeito também que há mais material pulverizado pela imprensa do que se imagina.

Me concentrarei no item b), fundamentalmente: por se tratarem de disserta-

ções elaboradas, com um conteúdo analítico que vai além de matérias de imprensa ou simples depoimentos — além disso, os três são muito bem escritos — os leio e releio com grande prazer. E, mesmo por que, não tenho outras alternativas pertinen- tes ou disponíveis.

No item c) temos as reedições dos Almanhaques e Antologias d’A Manha pela

Studioma/Projeto Barão (1989/1996), mais as reedições de Edusp/Imesp/ Studioma (2001/2004); matérias recentes, mais voltadas para informações gerais e homena- gens. A única tese concluída é a de Maria Lídia Dias de Castro da FFLCH-USP, Depto. de Clássicos e Vernáculos, e o título é “ As articulações do Barão de Itararé”. Espero para breve mais notícias sobre outra dissertação de mestrado em andamento, de uma pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina, a Sra. Mary Stela Surdi, que trabalha na área de lingüística sob orientação do Prof. Dr. Nilson Lage. Infelizmente ambas estão à margem (literatura e lingüística) do núcleo de meu foco teórico e, por isso, também não lhas comentarei. A terceira dissertação que citei é a presente, oriunda do meu projeto de pesquisa.

No ensejo organizatório procurei pontos em comum nos três livros acima cita- dos, antes de comentá-los. O primeiro deles é que os três foram escritos nos anos 80, aproximadamente uma década, década e meia, após o falecimento do humoris- ta; que, por motivos políticos e históricos, caíra num certo “esquecimento” público: devido à censura e a repressão do arbítrio, primeiramente; certamente somaremos a isso os sinais do tempo (Aporelly publicou aproximadamente no período que vai de 1915 a 1967) e o florescimento dos novos humoristas; e, talvez principalmente, pelas próprias características intrínsecas do humor e das criações humorísticas, que são fragmentadas, circunstanciais, passageiras; portanto de duração efêmera. Apro- veitando a feliz citação trazida por SALIBA (op.cit.pp.360), a repito aqui: “Uma ane- dota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia”, como definiu Gui- marães Rosa.

Mas, tratando-se de um autor de imprensa, cuja obra está pulverizada por deze- nas de publicações ao longo de 50 anos, senti que esta dispersão dificultou e dificul- ta o trabalho de identificação, memória e resgate dos “pedaços” do autor, enquanto não se tem uma visão muito nítida do conjunto da obra e também do autor.

Mesmo sendo o Barão uma figura pública e notória, um ídolo popular na cidade do Rio de Janeiro (com projeção no cenário nacional), o sentimento daqueles que primeiro escreveram sobre ele após sua morte, era de que estava-se cometendo uma injustiça ao relegar o Barão a “este esquecimento”; enquanto, ele mesmo (Aporelly) não ligou muito para isso em vida, nunca tendo preocupações com seus arquivos ou memórias (sem contabilizar o que foi destruído pela polícia política du- rante toda a sua vida).

Sempre confundido e misturado ao personagem (Barão de Itararé, “o brando” ou “o herói da batalha que não houve”), Aporelly foi uma espécie de anti-herói popu- lar, um pândego ousado, sempre em defesa dos mais desfavorecidos. Adorado pelo público, ele era a síntese dos ridículos que desaforadamente retratava, sem perder a sua alcunha de bondade ou a alcunha de bondade do “bobo”. À maneira dos “bobos da corte”, que podiam dizer a verdade ao rei, rindo; o Barão de Itararé era uma espécie de bobo do povo, que trazia a público as “maracutaias” dos políticos, denunciava o arbítrio e o elitismo da sociedade; aguçando a consciência das pesso- as dentro de um espaço de mídia nem sempre consentido. Seus chistes ainda vi- vem na memória do povo carioca e continuam a fazer um papel de válvula de escape de tensões sociais. Sem nunca perder a autocrítica, o Barão também não acreditava muito em heróis… Na sua versão, “há dois tipos de heróis: os que a pátria chora porque morreram e os que a pátria chora porque não morreram”.

E foi neste clima de re-viver, de re-memorar, que esses três primeiros livros sobre o Barão foram escritos — sempre focados para o lado das homenagens, dos “causos”, das piadas, da pertinência histórica e do valor do cidadão enquanto patri- ota e militante das causas populares. Todos voltados basicamente para o persona- gem e para sua excêntrica personalidade — e não para a obra em si, enquanto humor brasileiro da primeira metade do século XX. Este é o segundo aspecto em comum que estas obras apresentam entre si.

Ainda notei que, além do contexto histórico e do foco no personagem e sua vida, estes três livros trazem como ponto em comum a diversidade de abordagem nas elaborações conceituais: um histórico-filosófico, outro biográfico-histórico-jor- nalístico e o terceiro pelo aspecto perceptivo, psicológico e sociológico da obra do Barão.

Nos anos 70 tivemos um grande boom de humor e quadrinhos no Brasil, iniciado em 1969 principalmente com O Pasquim e com os relançamentos de clássicos dos quadrinhos pela Rio Gráfica Editora, mais o surgimento de diversas revistas inde- pendentes, tais como o Balão, O Bicho, Grilo, etc, etc. O ambiente de ditadura e arbítrio favoreceram sobremaneira o vigor do humor deste período (o Barão sempre se aproveitou disso no seu tempo, assim como outros autores — parece que o humor alimenta-se e floresce magnificamente sob censura e repressão) e grandes autores ficaram em evidência, e outros foram revelados nesta época: Jaguar, Fortu- na, Henfil, Ziraldo, Amorim, Millôr; e, depois, Paulo e Chico Caruso, Laerte, Angeli, Glauco, etc, etc, etc. O Pasquim já tinha sido um passo e tanto em relação ao A Manha, o Pif-paf de Millôr e Péricles nos anos 50 já estava adiante do A Manha.

Esse arroubo de brasilidade dos tempos da abertura foi propício para os preocu- pados com a memória nacional. Havia o clima de redemocratização, que já se anun- ciava fortemente no governo Figueiredo, e a sociedade não tardaria a pinçar Aporelly da história para pô-lo novamente em evidência. O Pasquim anunciava que era tatara- neto d’A Manha e que funcionava na Rua Saint Roman em Copacabana, onde o

Barão morou por muito tempo. A ditadura militar tinha arrasado todo tipo de organi- zação da sociedade civil politizada e o país se ressentia, e até hoje se ressente, da falta de lideranças. O Barão é um modelo desenxabido, eclético e exótico, mas que traduz muito bem a alma e a mentalidade da “brasilidade” — um compatriota ideal em termos de coragem e arrojo, patriota convicto, inteligente, incisivo, incorruptível, persistente. Poderíamos até especular que, disfarçado de “saudosismo”, o tema “Barão de Itararé” unia o útil ao agradável naquele momento histórico: valorizava-se a história brasileira e denunciava-se a repressão ao mesmo tempo. E o foco estava no personagem, naquela personalidade ímpar.

Em relação à obra ou ao estilo de humor, como disse Leandro Konder, o tempo

do A Manha havia passado e o seu puritanismo e o seu preconceito em relação às

mulheres assim o demonstram… ou não, como também prova Ernani Ssó. Ou seja, a questão conceitual, da obra, do autor e suas implicações, ficou por ai naquele momento. Não houve uma preocupação maior com a elaboração teórica e a pesqui- sa, e sim, repito, o intuito de reviver o personagem.

Assim, o texto de Leandro Konder (um ensaio de 60 páginas), trás algu- mas afirmações tímidas e outras, distantes da realidade. Por exemplo, Sergio Porto é tido como estando adiante do Barão e com alguma influência deste: Sergio Porto começou a publicar como crítico de cinema na Folha do Povo (jornal do PCB) nos anos 60 e iniciou-se em textos de humor sob orientação estrita do Barão, que dirigia o jornal (ali também publicavam Carlos Drumonnd de Andrade, Jorge Amado, Emílio Di Cavalcanti, Alvaro Moreyra, entre outros), que lhe orientou e incentivou. Entretanto, de forma alguma isto deprecia o trabalho de KONDER, que realiza plenamente os objetivos de seu ensaio dedi- cado à juventude (Coleção Encanto Radical da Brasiliense) com perspicácia e maestria invejáveis, propondo, inclusive, uma reflexão extremamente consis- tentes sobre o tema. Em suma, uma bela contribuição!

Não há como falar da história do humor no Brasil no século XX sem citar o Barão. Na perspectiva histórica, a importância dessa manifestação é esclarecida, e enalte- cida. Não é que ele tenha que ser incluído na genealogia do humor brasileiro, ele é um autor fundamental para a explicação deste e do que ocorre nos dias hoje no humorismo brasileiro. A obra do Barão foi uma das responsáveis pela transição do comportado humor de imprensa do início do século, quase uma crônica inocente, para o desbocado estilo “nonsense” em voga na atualidade.

O A Manha também foi o grande laboratório visual de Andrés Guevara, que

mudou a cara da imprensa brasileira nos anos 40. A passagem do processo industri- al tipográfico para o processo industrial fotomecânico, tornou obrigatória a presença diária do “diagramador” ou do projetista gráfico nas redações a partir de 1950, e este também era um talento exibido pelo pioneiro “Gue”.

Por essa e outras relevâncias históricas, a obra de Aporelly enseja a pesquisa e a análise, o que continuamente tem me trazido agradáveis e frutíferas surpresas, indo muito além das minhas expectativas, contradizendo o dito do Barão: ”de onde menos se espera, daí é que não sai nada”.

* * *

Ernani Ssó penetrou na biografia do Barão, numa linguagem meio jornalística, meio coloquial — fazendo uma salada de datas com sua “máquina do tempo” e acrescentando alguns poucos dados novos (alguns até equivocados). Isso me leva a crer que o grosso das biografias do Barão são versões de “causos”, muitos deles inventados pelo próprio Aporelly e outros são estórias recriadas, reescritas ou rein- ventadas por seus narradores — enfim, parece que nunca teremos uma biografia fiel deste autor em vista da distância no tempo ter apagado a maior parte dos atores e dos vestígios; assim como, a dimensão folclórica que a vida de Aporelly assumiu, com certeza, influiu e influi nas versões existentes. Mesmo nas falas, as palavras reportadas são díspares, ao sabor de quem as conta ou de quem lhes contou.

Sei que o livro de FIGUEIREDO teve uma enorme participação de Arly Torelly, o filho mais velho do Barão, e não é de admirar que ali exista um filtro forte que foi permeado pela mentalidade de Arly, mesmo porque o trabalho de FIGUEIREDO não pretendia ser uma biografia “stricto sensu” e sim uma monografia.

Em SSÓ, a pretensão é quase jornalística, informal ou contracultural, e a diferen- ça é que é o enfoque de um gaúcho, com um discurso também irreverente, e que teve acesso, em certo grau, aos anais locais, vivos ou escritos, na terra natal do autor. Em comum, poderíamos dizer que FIGUEIREDO e SSÓ não tem uma atitude preguiçosa diante do tema e o trabalho de pesquisa de ambos é absolutamente claro durante a leitura dos textos, que, aliás, nos dois casos, são muito bem escri- tos, divertidos e inteligentes.

SSÓ cai na tentação ou na “maldição do Barão” e envereda pelos “causos” e digressões sugeridas pela vida e pela obra de Aporelly, à maneira de todos os outros que sobre ele escreveram. Trazendo-nos pertinentes observações, SSÓ também reafirma a genial frase de FORTUNA (op.cit.) que diz: “Todo depoimento sobre uma pessoa é sempre autobiografia”, e nos apresenta a sua visão sobre o Barão — o que no Barão lhe toca.

Uma destas observações é a que ele faz sobre as tentativas malogradas de se fazer uma antologia decente do Barão. “Parece haver uma maldição sobre a herança do ilustre fidalgo”…; o Edmar Morel, o Fortuna e o Jaguar tentaram (mal sabe ele, o

Projeto Barão tentou e está tentando) e ainda não conseguiram.

Outra observação interessante que SSÓ faz, é sobre a fluidez e o foco de inte- resse do Barão, que se ligava muito mais aos jogos de palavras de que ao contexto em si, e se comportava como uma criança que mergulha no brincar sem se preocu- par com o brinquedo. Parece que este exercício formal ia criando um manancial de arcabouços de piadas que apareciam quando menos se esperava, como se os acon- tecimentos estivessem aguardando a oportunidade de acontecer para que ele pu- desse usar aquela brincadeira. Esquisito ou não, esta é uma pista para se estudar o seu processo criativo, que era fervoroso e altamente produtivo.

Nesse ponto SSÓ comete uma “gafe” bastante comum naqueles que escre- vem sobre o Barão e sobre os humoristas em geral, tentando criticar ou enaltecer o seu texto oscilante entre o brilhantismo e a mediocridade, a linguagem séria inven- tada ou a muito coloquial, colhida nos botequins ou nas ruas. Essa irregularidade que reproduz a vida como ela realmente é; é desejável e perfeitamente entrosada com o trabalho principal de Aporelly, o qual demanda naturalidade, acima de tudo. Ou seja, ele não era escritor e tampouco jornalista ou cronista, Aparício Torelly é, antes de tudo, humorista. E isso não tem nada a ver com belos textos ou com coerência — afinal de contas o objetivo é arrancar uma risada do freguês e fazê-lo pensar.

No humor gráfico, o texto e o desenho são apenas os meios, mas não o fim. Poucas pessoas entendem esta sutileza do humor, que é livre porque forma e con- teúdo são sempre decorrentes — o objetivo maior é que é determinante. Em sua maioria, as criações humorísticas, em qualquer mídia, são aferidas no momento de sua recepção em sua qualidade intrínseca e fundamental. Ou seja, se funcionou: o público riu —, então é bom. E é nessa fugacidade efêmera que a vida toda do humor ocorre. Por isso ele é livre, descompromissado e parcial, quase um truque, lembran- do BERGSON(13).

E me parece que o humor tem muito a ver com as palavras, que são o núcleo da linguagem humana, mas, na essência, tem muito mais a ver com as idéias e a ima- ginação (memória e referência). Percebemos no Barão que há uma porcentagem de sua obra que é “universal e atemporal” (dentro de sua própria mentalidade e de seus contemporâneos), pois que traduzida em qualquer idioma, lido por qualquer cultura, poderia ser engraçado. Vejamos os textos abaixo, por exemplo:

“Triste não é mudar de idéia. Triste é não ter idéias para mudar”; “A forca é o pior dos instrumentos de corda”;

“ …o banco é uma instituição que empresta dinheiro para a gente, se a gente apresentar provas suficientes de que não precisa de dinheiro…”;

Nestas frases percebemos que o forte é a idéia. Poderíamos exemplificar com texto e desenho combinados ou não, com trabalhos estrangeiros, etc, etc, mas o que sempre prevalece é a idéia e sua plena realização (o riso). E mais, o fulano que tem esse dom, essa perspicácia e essa picardia, como o bobo da corte ou alguns “majnum” árabes, tem a habilidade de penetrar no âmago das verdades e fazer desse desmascaramento uma diversão que também leva as pessoas a pensarem; a refletirem; a se auto pensarem; a olharem para si mesmas, ao seu redor e para suas vidas.

Isso diferencia o humorista do comediante: um faz rir e pensar, o outro apenas faz rir ou rir e esquecer. Um visa o ser humano, o outro uma determinada platéia, é apenas um entretenimento, um passa tempo. Bernard Shaw, Chaplin, os irmãos Marx, e outros humoristas tem em comum a profunda análise da condição do ser humano de seu tempo. No Oriente, quem não ouviu falar das anedotas Zen ou das alegorias Sufis? O humor bem pode ser tido e praticado como um instrumento de desenvolvimento da consciência ou de conscientização humana.

Em qual cultura não se ri? Onde há o ser humano esta atividade autofágica de pensar sobre si e repensar o que se vive, o que se testemunha, está sempre pre- sente. Por isso o descompromisso com qualquer tipo de formalidade permeia esta forma de linguagem, pois é na informalidade real que a verdade vive, acontece. Sem nenhuma frescura, como diria SSÓ, pré-requisito ou condição.

E, segundo o Barão: “Para mim, todo mundo é humorista. Eu mesmo não me considero um humorista profissional. Sou do vale tudo… A influência do humorista? Muito levemente benéfica e bastante entorpecente. Ele mostra, apenas, a metade das verdades. Vem um e diz: quem espera sempre alcança. Vem outro: quem espe- ra, desespera. E agora?… O humorismo consiste em mostrar o outro lado das coi- sas, o lado que o povo não vê. Não vê mas sente. Além disso, o humorismo não deve ser usado apenas em assuntos fúteis. Eu quero mostrar a nossa miséria de forma leve”.

Anos 90: O Projeto Barão