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Nascido em 29 de janeiro de 1895 na fronteira com o Uruguai, Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly era filho de João da Silva Torelly, de descendência russa, e de uma índia Charrua uruguaia de pai norte-americano, chamada Maria Amélia Brinkerhoff Torelly. Com isso, ele costumava dizer… “sou uma autêntica liga das nações”.

A mãe suicidou-se quando ele tinha apenas dois anos de idade e ele foi criado na fazenda do avô materno Juan Brinkerhoff no Uruguai até a idade escolar (7 anos naquela época). Aparício nasceu no ano do fim da Revolução Federalista e, durante a sua infância, o Rio Grande passou pelo período mais violento de toda sua história. O pai, João Torelly, era um revolucionário fervoroso, maragata convicto. Assim, edu- cou o filho proibindo-o de se quer falar com qualquer funcionário do governo. Na família dizia-se que o primeiro Torelly chegara ao Brasil em companhia de Garibaldi para tomar parte na Guerra dos Farrapos… Se for o mesmo, há um herói da campa- nha de unificação da Itália, cuja estátua está numa praça dos arredores da estação central de trens de Milão, que é do Conde Torelly, parceiro de Garibaldi… Trata-se de indícios não confirmados, a pesquisar.

João Torelly, que tinha um sangue quente danado e havia perdido um braço no ano de 1893 lutando pela revolução, deu ao filho o nome em homenagem ao Cel. Aparício Saraiva, famoso por suas façanhas e sua bravura à frente dos maragatas (federalistas). Era um homem simples do campo, mas tinha um irmão instruído, Firmino da Silva Torelly, advogado famoso e padrinho de Aparício.

Firmino encaminhou o afilhado aos 11 anos para o Colégio Nossa Senhora da Conceição, dos Jesuítas, em São Leopoldo, perto de Porto Alegre (ingressou no dia 15/04/1906). Em 1907 e 1908 foi o primeiro da classe e em 1911 foi o segundo, com vários primeiros lugares em português, francês, alemão, inglês; e menções honro- sas em latim, religião e disciplinas ligadas à música (canto, banda e orquestra). Em 1909 publicou seu primeiro jornal, o “Capim Seco”, com tiragem de um exemplar, imediatamente apreendido! Todo manuscrito, este trazia na capa o desenho de uma cobra, em alusão ao “bruder” (brother, irmão) responsável pela germânica disciplina do colégio, o qual era apelidado não muito carinhosamente pelos alunos de “jarara- ca”. O inquieto menino não tardaria a entrar em conflito com a escola, revelando em tenra idade a irreverência e o humor que o acompanharia pelo resto da vida. Em 1911, sai do colégio no 5º ano ginasial, mesmo podendo cursar mais um ano para receber o grau de bacharel em letras.

Por influência da família, segue para Porto Alegre para estudar Medicina. Em 1916, aos 21 anos, publica seu primeiro — e último — livro: Pontas de Cigarro, um livrinho de versos diversos e poemas bem humorados. Mais ao estilo burlesco e satírico das publicações “lusitanas de alcova” dos séculos passados do que qual- quer peça de humor conhecida, o Pontas de Cigarros traz, um por página, aforismos críticos e engraçados (o acervo do IEB-USP tem um exemplar original), os quais já anunciavam alguns pontos fortes da futura temática de Aporelly: a falta de dinheiro, o casamento, os costumes e a pobreza.

Em 1918, nas férias sofre um derrame, mas se recupera com seqüelas: ficaria he- miplégico, puxando uma perna pelo resto da vida. Na versão de Cláudio Figueiredo(9),

ele abandona a Faculdade de Medicina na- quele ano. Segundo Carlos Nicolaievski (vide entrevista adiante), ele foi expulso, após conflito com o Prof. Dr. Raul Pila, que pos- teriormente migrou para a política e foi um ardente defensor do parlamentarismo. O fato é que aqueles anos em Porto Alegre foram marcados por extrema boemia e o local de estudo era a mesa em frente à um inspirador relógio sem ponteiros no Clube dos Caçadores (um misto de bar, restauran- te, bordel e cassino) que bem representava aqueles momentos de ócio extremo e va- gabundagem. As histórias do Clube dos Caçadores fazem parte do folclore portoa- legrense e envolvem personagens que fi- cariam famosos no Rio de Janeiro e no Bra- sil depois da revolução de 30 em compa- nhia de Getúlio Vargas.

Com isso Aparício inaugura uma fase de andanças pelo interior gaúcho, fazendo conferências à moda trazida por Bilac e outros parnasianos e positi- vistas contemporâneos seus; fundan- do jornais e derrubando prefeitos. Nes- tas andanças conhece sua primeira esposa, Alzira Alves, com quem teve três filhos (Arly, Ady e Ary). O casamen- to durou pouco e eles se separaram poucos anos depois.

Aos 30 anos, pobre e doente, re- solve abandonar a província e tentar a sorte no jornalismo da capital federal (1925). Vive de bicos até arrumar um emprego n’O Globo de Irineu Marinho. Pouco tempo depois ajuda Mário Rodrigues a inaugurar A Manhã, para, no ano seguinte — em 13 de maio de 1926 —, fundar A Manha, que circularia durante quase 40 anos,

divertindo várias gerações de brasileiros.

A originalidade do humor do A Manha foi sua marca dileta. As principais publica-

ções de humor daquele tempo tinham sido fundadas no início do século (O Malho/ 1902, Fon-fon/1907 e Careta/1908) e apresentavam fórmulas desgastadas, embora competentes. E A Manha os superou com facilidade naquele Brasil agrário com 34

milhões de habitantes e maioria analfabeta.

FIGUEIREDO (OP. cit.) aponta historicamente algumas publicações relevantes na área de humor, mas não situa o Barão neste contexto, nesta genealogia: não por falha, mas por pertinência temática. O Brasil tem uma longa tradição nesse campo, a qual, como dissemos, foi inaugurada ainda no período da Regência. Depois disso, esta tradição do humor crítico tem um importante desenvolvimento com o dese- nhista Angelo Agostini, considerado por muitos pioneiro e precursor das histórias em quadrinhos em suas reportagens e histórias ilustradas. Os jornais de Agostini, o Vida Fluminense e a Revista Ilustrada bem demonstram o lado ferino deste autor, que fazia o Imperador Pedro II sofrer na sua pena. Sem nos esquecer da tradição do humor escrito em todas modalidades através dos movimentos literários e das edi- ções oficiosas ou de “alcova” ou mesmo populares (cordéis), a irreverência do A Manha apenas poderia ser comparada à de Agostini. Assim o trabalho de Aporelly

tem seu lugar nesta genealogia do humor nacional como uma de suas mais signifi- cativas manifestações: primeiro como resgate e desenvolvimento de uma tradição e depois, por sua originalidade. O A Manha lança o estilo de humor chamado de

besteirol ou “nonsense” e é vanguarda mundial nesta área! Mas a originalidade do

A Manha não pára ai. O seu formato A4 (ou meio tablóide) na primeira fase (1926/

31) reafirma a “imprensa nanica” (em oposição à grande imprensa), a qual tem algumas fases de explosão através da história, conforme a situação política do país — notadamente nos anos 70 do século XX, após a morte do Barão.

Mais do que o exposto acima, e mesmo passando de maneira despercebida para o grande público, a apresentação gráfica d’A Manha é um dos grandes balões

de ensaio para a revolução plástica que ocorreria no visual da imprensa brasileira nos anos 40, a qual começa em 1941 pelas mãos de Guevara no projeto gráfico da Folha Carioca (1941/47).

FIGUEIREDO (OP.CIT) cita Martiniano, Mendez e Hilde como colaboradores d’A Manha, mas Hilde Weber colabora ali apenas a partir dos anos 40. Ou seja, não há

uma preocupação em situar os desenhistas do “Barão” em seu tempo próprio, o que definiria alguns de seus estilos, fases e momentos. Por exemplo, Nássara fre- qüentou muito aquela redação para ver Guevara trabalhar, imitando-o; mas até os anos 30 e apenas para aprender o estilo conciso inventado por Gue, exclusivamente para o A Manha e seu “querido diretor”. Para Nássara nunca houve interesse em

aprender com o Guevara cubista que deslumbrou J.Carlos nos anos 20, me confes- sou-o no lançamento do Almanhaque 1955 1º semestre (Studioma/Letra & Imagem) na Livraria Dazibao de Ipanema, Rio, em 1989. Quanto a Hilde, que nos anos 40 chegara a pouco da Alemanha e dedicava-se à cerâmica, fazer caricaturas começou como um bico para sobreviver e tornou-se, com o tempo, sua profissão principal até seus últimos dias (ela publicou por, pelo menos, três décadas — as últimas duas em O Estado de S.Paulo, mas começou n’A Manha nos anos 40). De fato, o grande e

eterno parceiro e desenhista preferido de Aporelly foi sempre o paraguaio Andrés Guevara.

Guevara chegou ao Rio em 1925, vindo da Argentina, a caminho de Paris para desfrutar de um prêmio que ganhara na Escola de Belas Artes de Buenos Aires. Através do Embaixador Paraguaio no Brasil, conheceu Aporelly — recém chegado do Rio Grande — e tornam-se amigos íntimos: juntos gastaram o prêmio de Guevara nos bares do Rio, e, em seguida, Aporelly o ajudou a arranjar trabalho por aqui, conseguindo, com facilidade, espaço nas principais publicações de desenho e hu- mor. O talento inato de Guevara foi seu cartão de visita e foi o único desenhista para quem o famoso J.Carlos tirou o chapéu e trocou influências recíprocas (vide: A His- tória da Caricatura no Brasil de Herman Lima e “Guevara & Figueroa” de Cássio Loredano, Funarte, Rio). Muitos caricaturistas, chargistas e cartunistas modernos lhe rendem tributo e reconhecem uma produtiva influência. De Nássara a Loredano…

Há uma sutileza ai, até agora não muito explorada pelos estudiosos do tema: o desenho que Guevara publica no Malho, na Careta e na Crítica em companhia de J.Carlos nos anos 20, apresenta um estilo marcadamente cubista, com formas e texturas geométricas e um certo grau de rebuscamento plástico. Antevendo o que florescia inédita e plenamente através do pincel de Pablo Picasso na mesma época, Guevara simplesmente abandona este lado vanguardista da Arte Plástica para tor- nar-se um dos esteios da modernidade no desenho impresso. N’A Manha, este

mesmo desenho, sem perder seu cunho geométrico, adquire uma simplificação crescente e anunciadora do moderno desenho de humor e quadrinhos que viria nas próximas décadas, conjugando a facilidade de execução em duas dimensões com a velocidade imposta por uma informação cada vez mais rápida e superficial, entretan- to consistente ou aparentando sê-lo.

Em suma, o espaço revolucionário e irreverente do A Manha nos trouxe novida-

des no humor e também na plástica das publicações, e até no estilo de realizá-las. Ali, a parceria com Guevara, também um gênio criador, teve asas para voar e pode- mos afirmar, sem susto, que o A Manha foi vanguarda mundial em se tratando de

publicações de humor.

Não temos dados precisos para afirmar se os três filhos de Aporelly vieram com ele para o Rio na primeira vez, mas sabemos que eles já residiam com ele, no Rio, no final dos anos 20; sem a mãe. O semanário A Manha, sempre distribuído nacio-

nalmente, era uma explosão de vendas e chegava a ter oito ou mais edições por número. O “único quintaferino que sai aos sábados” nunca foi uma publicação pontu- al. Segundo Aporelly, “ A Manha não é uma publicação que sai no dia certo, mas em

O delirante discurso mantido nas páginas d’A Manha fez o Brasil rir “à farta”,

enquanto “nosso querido diretor” acirrava suas vaidosas e fantasiosas disputas com os figurões da política e da sociedade carioca e brasileira. Entretanto, o fino tino de Aporelly sempre o preservou das opções maniqueistas e sectárias, garantindo-lhe livre trânsito por todas as camadas sociais e facções políticas, exceto em relação aos fascista. Assumidamente comunista, não deixou de manter relações com Ro- berto Marinho, Assis Chateuabriand, Arnon de Mello ou Samuel Wainer, por exem- plo.

Quatro anos antes da fundação do A Manha, em janeiro de 1922, fôra fundado

o Partido Comunista Brasileiro por um grupo de ex-anarquistas em Niterói. Um mês depois aconteceu a Semana de Arte de 22 sob a batuta de Oswald de Andrade. Os novos tempos já estavam anunciados com o término da primeira grande guerra e favoreciam o espírito libertário e desbocado trazido pelo A Manha, e, rapidamente,

a publicação vai assumindo os ares da modernidade como um dos primeiros fenô- menos de comunicação de massa no Brasil dos anos 20.

A estreita amizade com Guevara — sendo o desenhista “mais sintonizado e que melhor o compreendia” —, levou Aporelly a convidá-lo para ser seu sócio quando resolveu fundar o A Manha. O paraguaio, desconfiado daquilo, preferiu receber por

seu trabalho, não trocando o certo pelo duvidoso. Mas o A Manha foi um sucesso já

no primeiro número, e Aporelly “que perdia o amigo, mas não a piada”, não perdeu a oportunidade para cutucar o amigo: espalhou bastante dinheiro por todo o assoa- lho da redação e o convidou para ir receber o soldo. Ao entrar na sala, Guevara tomou um susto, contornado a sonoras gargalhadas…

A gênese do Barão …