PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Iara Pereira Ribeiro
Direito à imagem: conceito jurídico pleno da própria imagem
DOUTORADO EM DIREITO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Iara Pereira Ribeiro
Direito à imagem: conceito jurídico pleno da própria imagem
DOUTORADO EM DIREITO
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito sob a orientação da Profa. Dra. Rosa Maria de Andrade Nery.
Banca Examinadora
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Ao meu pai, Elias Profeta Ribeiro,
porque se orgulhava de mim.
À minha mãe, Vera Augusta Pereira
AGRADECIMENTOS
Muito obrigada:
À querida orientadora Profa. Rosa Maria de Andrade Nery,
Às companheiras de doutorado Tarcisa Marques Porto, Mariana Mencio e Thais Novais Cavalcanti.
Às amigas Clarice von Oertzen de Araujo e Eloísa Aragão.
Ao Centro Universitário FIEO (UNIFIEO), de maneira especial à bibliotecária Andreia Máximo.
A todos os colaboradores da Escola Villas-Bôas, especialmente, na pessoa de Clarice Stenke.
Às amigas de sempre Ana Elisa Nonato, Márcia Assis, Patrícia Mauro Diez, Renata Aguiar e Valéria Immediato.
Friné em frente ao Areópago
O Juízo Final (Michelangelo – afresco pintado na parede do altar da Capela Sistina,13,7 m por 12,2 m - 1536 a 1541).
RESUMO
A tese pretende demonstrar que para a Ciência Jurídica a imagem da pessoa compreende o original e a reprodução e que essa imagem é um todo constituído de matéria e forma, que abrange as características físicas, o corpo, a voz, os gestos, os modos, etc. Considerando esse conceito pleno de imagem se examinou as várias teorias sobre o direito à imagem para defini-lo como um direito autônomo e suas características, analisando seus elementos: o sujeito de direito (imagem do nascituro e da pessoa jurídica), o objeto (imagem científica e imagem das coisas) e o conteúdo que consiste no direito de dispor, limites do uso do direito à imagem e sua extinção. E por fim, tratou-se o tema da responsabilidade civil sob a ótica do direito à imagem, para demonstrar que os denominados danos estético e institucional são simplesmente: dano à imagem. O dano à imagem é distinto do material e do moral, permitindo cumulação.
ABSTRACT
The thesis aims to show that the image of person for Juridical Science understands the original and the reproduction and that this image is a whole composed of matter and form, which encompasses the physic, body, voice, gestures, moods, etc. Considering the full image concept is examined various theories about the right of the image to define it as an autonomous right and its characteristics the legal concept fully developed in this thesis, examined the various theories on the image to the law to define it as an autonomous right and their characteristics, analyze its elements: the subject of law (image of unborn and legal entity image), the object (scientific image and picture of things) and the content that is the right to dispose, the limits of the right to use his image and extinction. And finally, it was the subject of tort law from the perspective of the image, to show that the so called institutional and aesthetic damage are simply: damage to the image. And this damage is distinct from the material and moral, allowing overlapping.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ... 12
1. CONCEITO DE PESSOA, PERSONALIDADE E NATUREZA HUMANA ... 15
1.1. Conceito filosófico de pessoa ... 15
1.2. Conceito jurídico de pessoa ... 22
1.2.1. Características da personalidade ... 27
1.2.1.1. Capacidade ... 27
1.2.1.2. Estado individual, familiar e político ... 28
1.2.1.3. Nome ... 31
1.2.1.4. Domicílio ... 33
1.2.1.5. Fama ... 35
1.3. Natureza humana ... 36
2. DIREITOS DA PERSONALIDADE ... 41
2.1. Considerações sobre direitos da personalidade, direitos humanos e direitos fundamentais ... 41
2.2. Da dignidade da pessoa humana ... 43
2.3. Eficácia do princípio da dignidade humana no âmbito do direito privado ... 49
2.4. Noções de sistema dos direitos da personalidade ... 52
2.5. Rol aberto dos direitos da personalidade ... 55
2.6. Os direitos da personalidade no Código Civil de 2002 ... 61
2.7. Da denominação “Direitos da Personalidade” ... 63
3. DIREITO À IMAGEM ... 66
3.1. Contextualização histórica ... 66
3.2. O direito à imagem na legislação brasileira ... 71
3.3. A palavra “imagem” ... 75
3.4. A imagem e o direito ... 78
3.4.1. Imagem original ... 83
3.5. A imagem e a Constituição Federal de 1988 ... 85
4. DA AUTONOMIA DO DIREITO À IMAGEM ... 95
4.1. Teorias sobre a natureza jurídica do direito à imagem ... 95
4.1.1. Teoria negativista ... 95
4.1.2. Teoria do direito à imagem como direito à honra ... 97
4.1.3. Teoria do direito à imagem como expressão do direito à intimidade ... 102
4.1.4. Teoria do direito à imagem como manifestação do direito ao próprio corpo ... 106
4.1.5. Teoria do direito à imagem como direito relacionado com a liberdade 107 4.1.6. Teoria do direito à imagem como patrimônio moral da pessoa ... 108
4.1.7. Teoria do direito à imagem como manifestação do direito à identidade pessoal ... 109
4.1.8. Teoria da autonomia do direito à imagem ... 113
4.2. Características do direito à imagem ... 115
4.3. Proteção jurídica da imagem ... 119
4.4. Sujeitos do direito à imagem ... 124
4.4.1. Imagem do nascituro ... 125
4.4.2. Imagem da Pessoa Jurídica ... 127
4.5. Objeto do Direito à Imagem ... 135
4.5.1. Imagem-científica ... 143
4.5.2. A imagem das coisas ... 144
4.6. Conteúdo do direito de imagem ... 147
5. RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO À IMAGEM ... 166
CONCLUSÃO ... 180
INTRODUÇÃO
Em razão dos tempos midiáticos da atualidade, pode-se afirmar que a sociedade nunca foi tão visual. A vida de uma pessoa é captada por lentes e câmeras em numerosas ocasiões.
Os bebês ainda no ventre materno são fotografados e filmados. Alguns em seus primeiros instantes de vida se tornam protagonistas do
primeiro dos muitos filmes de que irão participar ao longo da vida ― o filme de
seu nascimento. E, assim, carinhosamente serão constrangidos a rever aquela cena em suas festas de aniversário e na de seu casamento na presença de muitos convidados. Um recém-nascido de poucas horas possivelmente será visto e conhecido por um inimaginável número de pessoas, antes mesmo que ele tenha oportunidade de conhecer a própria mãe.
Tal qual como o início da vida, as lentes das câmeras também podem captar a morte. Quase diariamente divulgam-se imagens de brigas, assaltos ou acidentes em que o resultado é a morte de uma, várias ou de todas as pessoas que figuram na filmagem.
O desenvolvimento tecnológico transformou o modo como a sociedade transmite sua memória para as gerações futuras. Até bem pouco tempo, os feitos dos antepassados eram conhecidos, em grande proporção, por meio da transmissão oral ou escrita, ao passo que na atualidade essa
memória é construída, quase de modo exclusivo, visualmente1.
Por serem corriqueiros o registro e a utilização da imagem da pessoa humana, deixa-se de dar a devida atenção para a complexidade jurídica da imagem. O presente trabalho tem como objetivo elucidar o conceito de imagem no âmbito da ciência do direito. Para tanto pretende responder o
que é a imagem da pessoa humana e em que consiste o seu direito a essa imagem?
Com o fim de responder a essa questão inicial, buscou-se no Capítulo 1 definir os conceitos de pessoa e natureza humana, distinguindo do conceito de sujeito de direito, personalidade jurídica e suas características.
No Capítulo 2, desenvolveu-se o estudo dos direitos da personalidade, a fim de embasar a inserção do bem jurídico da imagem dentre esses direitos.
A imagem como objeto do direito foi analisado no Capítulo 3, reportando a sua contextualização histórica e a maneira pela qual a legislação brasileira tratou o tema. A partir daí expusemos o significado do que é imagem, a amplitude de seu conceito, como se insere no Direito e na Constituição Federal de 1988 e considerações sobre a denominação imagem-retrato e imagem-atributo. Respondendo, desse modo, à questão inicial proposta, explicitamos que imagem é uma percepção de um ser ou objeto que
compreende o original (exemplar) e sua reprodução (reflexo). Denominamos ―
apenas para elucidação ― a primeira de imagem original (matriz) e a segunda de imagem decorrente (retrato).
Demonstramos, igualmente, que tal percepção não se limita apenas ao aspecto físico da pessoa humana, mas ao conjunto de elementos que a torna digna de humanidade.
No Capítulo 4, examinamos as várias teorias que buscaram explicar o direito à imagem na perspectiva de reflexo de outro bem jurídico, até a teoria prevalecente da autonomia do direito à imagem, apresentando as características do direito à imagem, a proteção jurídica desse direito e seus elementos.
e a científica. E a respeito do conteúdo, fundamentado no Art. 20 do Código Civil de 2002, ponderamos sobre o direito de dispor da própria imagem, o limite desse direito e a sua extinção.
1. CONCEITO DE PESSOA, PERSONALIDADE E NATUREZA
HUMANA
Para a elaboração deste trabalho o ponto de partida é a determinação do conceito de pessoa, pois é conceito fundamental para a teoria
geral do direito privado, já que é valor-fonte2 de todo o Direito. Desse modo, se
todo o sistema jurídico é centrado na pessoa, imprescindível então que antes de tudo seja fixado o seu conceito.
1.1. Conceito filosófico de pessoa
O conceito de pessoa é relevante para a filosofia, a ética, a dramaturgia, a psicologia e especialmente para o Direito. Em cada uma dessas áreas do pensamento humano, o conceito possui uma acepção própria. No
sentido comum do termo, pessoa refere-se ao “homem em suas relações com
o mundo e consigo mesmo”e em sentido específico a “um sujeito de relações”
3.
Antônio HOUAISS cita em relação à origem etimológica do verbete “pessoa” a palavra latina persona,no sentido de “máscara de teatro”, de “papel
atribuído a essa máscara, caráter, personagem” 4. Também DE PLÁCIDO E
SILVA ao explicar o verbete “pessoa” afirma: “Persona, de per (por, através) e
sono (som), exprime, primitivamente, a máscara usada pelos atores nas
2 Miguel REALE, Teoria tridimensional do Direito, p. 95.
representações teatrais5” (e também São Tomás de Aquino faz uma referência
ao termo6).
Da etimologia da palavra se deduz que pessoa é aquele que representa um papel. A máscara cênica dos gregos (persona) indica os papéis representados pelo homem no decorrer da vida. Pessoa, portanto, delimita uma individualidade e expressa a relação dessa individualidade com o meio e os demais.
Na Antiguidade, nem todos os homens eram tidos como pessoas, porque para os gregos e os romanos a condição de pessoa era vinculada à situação de ser cidadão. Naquelas sociedades os escravos, por exemplo, não eram considerados pessoas.
O pensamento cristão transformou essa distinção com a personificação do homem, para a qual encontramos a afirmação de que “com a expressão pessoa obteve-se a extensão moral do caráter de ser humano a todos os homens, considerados iguais perante Deus7”.
Sobre a importância do pensamento cristão no estudo sobre pessoa explica Edvino A. RABUSKE: “Para o desenvolvimento do conceito de pessoa contribuiu decisivamente a Teologia Cristã. (...) a relação única de Jesus Cristo com Deus tinha que ser expressa de tal modo que, dum lado, se pudesse falar duma divindade real de Cristo, sem pôr em perigo a unidade de Deus e, doutro lado, se pudesse aceitar uma humanidade irrestrita em Cristo, sem o separar
5 DE PLÁCIDO E SILVA, Vocabulário jurídico, p. 1039.
6 Acrescente-se, a título de curiosidade, que a referência a essa origem grega da palavra encontra-se na Suma teológica de São Tomás de Aquino na questão 29, artigo 3, objeção 2, p. 528: “ALÉM DISSO, Boécio diz: ‘O termo pessoa parece derivar das máscaras que representavam personagens humanas nas comédias ou tragédias: pessoa, com efeito, vem de per-sonare ressoar, porque necessitava-se de uma concavidade para que o som se tornasse mais forte. Os gregos chamam estas máscaras prósopa, porque colocam-nas sobre a face e diante dos olhos para esconder o rosto’. (...)”. Boécio viveu entre os anos de 480 a 524.
de Deus e introduzir nele uma separação interna. (...)” 8. Entre os filósofos
cristãos que se debruçaram sobre o tema pessoa para explicar os mistérios da fé católica está Tomás de Aquino (1225 a 1274).
Para o tema, vale-se da importância de Tomás de Aquino, pois nele
se encontra o resgate do pensamento de Aristóteles (ao qual chamava de “o
Filósofo”), juntamente com as reflexões e os ensinamentos da fé cristã. Na história da filosofia, os estudos tomistas pertencem à chamada Escolástica, desenvolvida do século XI ao século XV na Europa por meio de um trabalho coletivo em que colaboraram diversos pensadores. A sua inspiração inicial é platônico-agostiniana, mas à medida que a obra de Aristóteles é traduzida para o latim, primeiro do árabe e depois diretamente do grego, novos horizontes ao pensamento medieval se avistaram, e entre aqueles que se puseram a
estudá-lo estão Alberto Magno e seu discípuestudá-lo Tomás de Aquino9.
Na construção de seu pensamento10, Tomás de Aquino, enquanto
estudioso e homem de seu tempo, exerceu seu ofício (professor e teólogo) recorrendo às Escrituras bíblicas e aos filósofos que lhe precederam, a exemplo de Platão, Aristóteles e Santo Agostinho. E, embora não tivesse a pretensão de ser original, Tomás de Aquino inovou as teses que defendeu.
Entre as teses de origem tomista de grande importância ― e de
interesse para este trabalho ― destaca-se o estudo sobre pessoa. Embora o objetivo do pensamento tomista seja explicar o dogma do mistério da Santíssima Trindade, segundo o qual a essência divina existe em três pessoas com coerência racional, o esforço filosófico de Tomás de Aquino e da
Escolástica produziu reflexão original sobre pessoa e natureza11.
8
Continua o autor: “Em outros termos: que em Deus há uma natureza em três pessoas, que em Cristo há duasnaturezas numa só pessoa”. Edvino A. RABUSKE,Antropologia filosófica: um estudo sistemático, p. 207.
9 Marie-Joseph NICOLAS, Introdução à Suma Teológica, in Suma teológica: teologia, Deus, Trindade. V. 1. Parte I – Questões 1- 43, p. 24. Nobert HORN, Introdução à ciência do Direito e à filosofia jurídica, p. 257 e segs.
10 Marie-Joseph NICOLAS, op. cit., p. 32.
Na Suma Teológica no Artigo 1, da Questão 29, define-se pessoa
como “a substância individual de natureza racional”12.
Por substância deve-se entender o ente enquanto sujeito apto a existir por si. Existir por si significa ser o próprio sujeito do ato indivisível, e por isso mesmo ser constituído em um “ser em si”. Portanto, substância é aquilo que é em si, que não necessita de outro para existir, que é essencialmente independente.
O termo substância foi emprestado de Aristóteles, mas adquiriu novos contornos nos estudos tomistas; a sua definição é relativa à essência, não no sentido coisificado, de substância da coisa, presente em Aristóteles,
mas no sentido de ato de ser. Nesse sentido, pessoa é a substância cuja
essência (ser) é de natureza racional13.
Essa substância é individual porque, como ensina Tomás de Aquino, as substâncias racionais têm o domínio de seus atos, contudo o ato só pode ser realizado pelo indivíduo. O termo indivíduo para definir pessoa é empregado para designar o modo em que essa substância subsiste. Em outras palavras, é individualmente que a substância exerce o ato de existir por si mesma.
Explica ainda Tomás de Aquino que é mais conveniente definir pessoa como ser de natureza racional, e não de essência racional, porque é essa natureza aquela capaz de ser racional, de distinguir e, assim, tornar a
substância singular, individualizando-a14. Nas palavras precisas do autor: “Ora,
o indivíduo é o que é indiviso em si e distinto dos outros. Portanto a pessoa, em qualquer natureza, significa o que é distinto nessa natureza” 15.
12 Essa clássica definição de pessoa é de Boécio e está presente no livro Sobre as duas naturezas, conforme esclarece o próprio Santo Tomás (Suma teológica: Parte I, q. 29, artigo 1, p. 522).
13 Marie-Joseph NICOLAS, Vocabulário da Suma Teológica, in Suma teológica: teologia, Deus, Trindade. V. 1. Parte I – Questões 1- 43, p. 99.
Essa visão metafísica dos estudos tomistas a respeito do conceito
de pessoa é analisada por Walter MORAES16, que ensina que aquilo que é em
si, que não necessita de outro para existir, que é essencialmente independente, denomina-se Substância; esta independência contida na Substância é a Subsistência que significa a aptidão para ser sem dependência; a Substância perfeitamente subsistente denomina-se Suposto. Assim, considerando que a existência de um indivíduo é independente, livre de qualquer outro, sua existência inicia e acaba nele mesmo, na terminologia apresentada, esse indivíduo é um Suposto, por ser uma substância singular perfeitamente subsistente e incomunicável. O Suposto de indivíduo chama-se pessoa.
Pessoa é, portanto, aquilo que existe por si só. É o ser com fins próprios, ou ainda, é o ente que tem a possibilidade de desenvolver e realizar por meio de sua liberdade e vontade os seus fins próprios.
Jean-Hervé NICOLAS explica a opção tomista de definir pessoa com base no entendimento de substância: se pessoa não fosse uma substância - e uma substância individualizada -, não seria real, pois o que a singulariza é que a natureza que nela se realiza é uma natureza racional, conferindo-lhe uma superioridade de grau e de ordem em relação a todos os outros entes. Essa superioridade que deriva da racionalidade manifesta-se pela prerrogativa da liberdade, apresentada como o poder de dirigir-se a si mesmo, conduzir-se, em
vez de passivamente estar submetido às forças exteriores – que, todavia, agem
também sobre ela, mas não sem que possa agir para diminuir ou impedir os
seus efeitos. Conhecimento e liberdade, eis o que caracteriza a pessoa17.
Por isso, continua NICOLAS, todas as riquezas que evocam as palavras consciência e liberdade seriam irreais, apenas uma ideia abstrata, não pertencendo de fato a um ente se Tomás de Aquino não tivesse iniciado pela
concepção de substância da definição de pessoa. E conclui: “(...) para ser
realmente um centro de consciência e uma fonte de liberdade, é lhe preciso primeiramente ser”18.
Na concepção tomista, pessoa é o que há de mais perfeito, e à
perfeição dá-se o nome de Deus, portanto é correto dizer que Deus é pessoa19
(o que justifica o pensamento teológico). Mas não apenas Ele, o homem também é pessoa, mesmo que imperfeito, pois é “substância individual de natureza racional”.
Conforme referido neste trabalho, a origem da palavra pessoa deriva das máscaras que os atores gregos utilizavam para fazer soar mais forte suas vozes quando representavam personagens humanos, e, nesse sentido, o termo não parece ser apropriado para designar Deus. Contudo, Tomás de Aquino responde a essa questão afastando do significado da palavra pessoa o sentido de máscara, mas dando a ela um novo sentido, já presente em seu tempo, o de “aquele que é constituído de dignidade”. Ora, subsistir em uma natureza racional é uma grande dignidade, por isso dá-se o nome de pessoa a todo indivíduo dessa natureza racional, e como a dignidade da natureza divina
ultrapassa toda dignidade, o nome de pessoa convém também a Deus20.
O estudo tomista apresentado explica o significado filosófico da
palavra pessoa (a substância individual que subsiste em uma natureza
racional) e porque esta palavra serve para designar Deus. Contudo, se o nome pessoa convém a Deus, porque é o que de mais perfeito existe em toda natureza, por que se dá ao homem o nome de pessoa?
Continuando a analisar o tema pela perspectiva tomista, o homem é pessoa porque é feito à imagem de Deus. A preposição “a” indica que existe uma aproximação, não uma igualdade, o que significa que há algo divino na natureza humana, mas que a natureza continua a ser humana, e esse algo é o
18 Idem, ibidem.
de ter o indivíduo humano uma natureza racional. É em razão dessa natureza
racional que pode se dar ao homem o nome de pessoa, de pessoa humana21.
Jean-Hervé NICOLAS ao comentar o artigo 3 da questão 29 da
Suma explica:
“Só se pode fazer essa transposição, é evidente, respeitando-se as leis da analogia: a condição de pessoa em Deus só pode respeitando-ser atingida por nosso conhecimento como fonte de tudo o que diz respeito à condição de pessoa, por negação de todas as formas imperfeitas nas quais se realiza no homem a condição de pessoa, por exaltação ao infinito de tudo o que existe de positivo nessas realizações, e que faz a dignidade singular da pessoa entre todos os entes, apesar dessas imperfeições. Por meio disso, Santo Tomás refuta de antemão os filósofos modernos que recusam a Deus a condição de pessoa, em virtude dos limites que esta apresenta no homem, não é a condição de pessoa como tal que é imperfeita, é o homem que é imperfeitamente pessoa, embora o sendo verdadeiramente”22.
A filosofia tomista contribuiu com a ciência jurídica ao concluir que o que faz que um homem (ser humano) seja pessoa é a sua natureza: a mesma entre todos os seres humanos, em qualquer tempo ou lugar, o que implica dizer que cada ser humano é distinto de qualquer outro, mas todos têm em comum o fato de serem seres humanos.
Nas palavras de Maire-Joseph NICOLAS:
“Sempre se reconhecerá no homem, quaisquer que sejam a raça, o tempo e o meio, o que é propriamente humano: um pensamento, uma razão, que só atua mediante os sentidos, mediante um enraizamento biológico: o espirito encarnado. A partir daí quanta diversidade em sua maneira de ser e estar no mundo, de acordo com
21 Tomás de AQUINO, Suma teológica: Parte I, q. 29, artigo 3, r. 2, p. 530. 22
o que conhece, com sua maneira de conhecê-lo e, consequentemente, segundo a maneira de ser e de reagir!”23.
Michel VILLEY entende que repousam também no pensamento tomista as origens das liberdades individuais do direito moderno, como liberdade de consciência e de opinião, pois ao demonstrar que o ser humano é gênero de uma mesma natureza, dá a cada indivíduo uma dignidade própria,
de modo que ele não faz parte apenas do coletivo, da polis, como diziam os
gregos, mas responde também à sua própria existência24.
Para Walter MORAES, o sentido filosófico de pessoa desenvolvido pela escolástica de ser aquele que age na natureza, de ser o sujeito primeiro de atribuição da natureza racional, coincide com os conceitos jurídicos de pessoa e personalidade a serem desenvolvidos neste trabalho. Por isso, MORAES entende que neste aspecto das definições de pessoa e
personalidade os conceitos ontológicos e éticos se equiparam25.
1.2. Conceito jurídico de pessoa
De acordo com PONTES DE MIRANDA, o ponto de partida para a análise do conceito de pessoa deve ser precedido pelo estudo dos sujeitos de
direitos, pois para a Ciência Jurídica “ser pessoa é apenas a possibilidade de
ser sujeito de direito”26.
Ser sujeito de direito é estar na posição de titular de direito (ou, como igualmente correto, na posição de titular da pretensão, titular da ação,
titular da exceção27) em uma situação jurídica. Em outras palavras, sujeito de
23 Introdução à Suma Teológica, In Suma teológica: teologia, Deus, Trindade. V. 1. Parte I – Questões 1 a 43, p. 48.
24 Michel VILLEY, A formação do pensamento jurídico moderno, p. 51.
25 Walter MORAES, Concepção Tomista de Pessoa: um contributo para a teoria do direito da personalidade, in Doutrinas essenciais: Responsabilidade Civil, v. 1. Teoria Geral, p. 827. 26 Pontes de MIRANDA, Tratado de direito privado, Tomo I, § 47, 1, p. 243.
27 Pontes de MIRANDA
direito é o ente que pode figurar tanto no polo ativo quanto passivo de uma relação jurídica.
Destaca Tercio Sampaio FERRAZ Jr. que o uso mais tradicional do termo sujeito tende a vê-lo como o ser humano concreto. Para o autor a base ideológica dessa concepção está na noção de que cabe ao direito objetivo garantir e proteger o titular da propriedade privada. O ser humano tem o seu próprio corpo como uma propriedade primeira, que utiliza como fonte de
trabalho e, por essa razão, o ser humano é por excelência sujeito jurídico28.
Esta utilização mais tradicional, referida por Tercio Sampaio FERRAZ Jr., era a disposta no Art. 2º do Código Civil de 1916 que utilizava a palavra “homem”, evidentemente no sentido de ente integrante do gênero humano, como o sujeito capaz de direitos e obrigações.
O Código Civil de 2002 alterou a palavra “homem” para “pessoa”, e muito embora não defina o que seja “pessoa”, é certo que se compreenda como “ser humano”, como qualquer ser humano. Essa percepção decorre da
própria sistematização do Código Civil que dispõe o Art. 1.º (“toda pessoa é
capaz de direitos e deveres na ordem civil”), no livro Das Pessoas, no título Das Pessoas Naturais.
No entanto, o escopo do dispositivo legal é tratar de sujeito de
direito. Na definição de Tercio Sampaio FERRAZ Jr., o sujeito de direito “é o
ponto geométrico de confluência de diversas normas. Esse ponto pode ser uma pessoa, física ou jurídica, mas também um patrimônio”29, por exemplo, as
heranças jacente e vacante (disciplinadas nos Arts. 1819 a 1823 do Código Civil), pois, embora não possua personalidade jurídica, a lei permite que possa comparecer em juízo, tanto de forma ativa quanto passiva (CPC, Art. 12, IV), ou ainda, o espólio (CPC, Art. 12, V), e, desse modo, apesar de não serem pessoas, são sujeitos de direito.
de direito, pretensões, ações e exceções, deveres, obrigações e situações passivas nas ações e exceções’, (...)’’. Op. cit., § 81, 2, p. 317.
28 Tercio Sampaio FERRAZ JR., Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, p. 125.
Os autores que atualizaram o Tratado de Direito Privado, tomo I, de
PONTES DE MIRANDA, afirmam: “Do ponto de vista lógico, o adequado seria
o Código Civil preceituar, no Art. 1º, que todo sujeito de direito é titular de
direitos e deveres na ordem civil (...)”30. Contudo, os próprios atualizadores
admitem que a alteração de “pessoa” para “sujeito” pode conduzir a outros novos problemas, pois alguns doutrinadores têm reivindicado a extensão da condição de sujeito aos animais, o que é incompatível com o ordenamento
jurídico brasileiro31.
Certo é que toda pessoa é sujeito de direito, pois pode figurar tanto no polo ativo quanto passivo de uma relação jurídica, pode, portanto, pôr a máscara para entrar no teatro do mundo jurídico e desempenhar o papel de
sujeito de direito32.
A existência da pessoa para a Ciência Jurídica decorre de duas
perspectivas: da eficácia do fato jurídico stricto sensu de nascer o ser humano
vivo no caso da pessoa natural; e do ato jurídico de registro de ato constitutivo
no órgão competente para as pessoas jurídicas33.
Ao comentar o Art. 1º do Código Civil, Rosa Maria de Andrade
NERY ensina que pessoa é o ente dotado de personalidade34.
30 Judith Martins-COSTA, Gustavo HAICAL e Jorge Cesa Ferreira da SILVA, Panorama Atual pelos Atualizadores, § 50. B – Doutrina, in op. cit., p. 260.
31 Idem, p. 263. Entre os autores que defendem essa concepção está Fernando Araújo, no livro A hora dos direitos dos animais. Coimbra: Almadina, 2003. O jornal Folha de S.Paulo, em 11 de março de 2012, na seção Ciência, divulgou notícia intitulada “Quase humanos”, em que registrava que o “(...) parque aquático Sea World, nos EUA, foi processado por confinar cinco membros de sua equipe em um espaço diminuto e obrigá-los a fazer rotineiramente apresentações para o público. As autoras da ação? Um grupo de cinco orcas. Elas foram representadas por uma ONG de direitos dos animais, que entrou com o pedido. Embora o juiz tenha optado por não levar o caso adiante, essa foi a primeira vez que um tribunal federal americano chegou a analisar algo do tipo”. Segundo o texto jornalístico há um movimento de cientistas e organizações que se mobilizam para o reconhecimento dos cetáceos (que inclui golfinhos e baleias) como “pessoas não humanas”. Disponível: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/31897-quase-humano.shtml>. Acesso 29.01.2013. 32 Pontes de MIRANDA, Tratado de direito privado, Tomo I, § 50, 2, p. 254.
33 Marco Bernardes de MELO, Teoria do fato jurídico: plano da existência, p.119 e Teoria do fato jurídico: plano da eficácia, p. 140.
A personalidade é a qualidade de ser a pessoa um ente individualizado, é o que a caracteriza como aquilo que existe por si. Não se adquire personalidade, se é. Como atributo inseparável da pessoa, existe independente de qualquer requisito, decorre simplesmente da existência. Assim, até mesmo um bebê recém-nascido, um deficiente mental ou alguém com enfermidade, que têm impedidos o devido discernimento sobre os seus atos ou a possibilidade de expressão de sua vontade, possuem personalidade e, portanto, têm aptidão para ser pessoa. E são, consequentemente, sujeitos de direito.
Pessoa e personalidade são conceitos interligados, pois se pessoa é sujeito (quem atua), personalidade é a qualidade que torna o ente pessoa. Em outras palavras, a personalidade é a capacidade para ser pessoa, “é o quid que faz com que algo seja pessoa”35.
O legislador no Código Civil entrelaça esses conceitos de sujeito de direito, pessoa e personalidade ao dispor no livro Das Pessoas, ao tratar das
pessoas naturais, no Art. 2º, quando ressalta: “A personalidade civil da pessoa
começa do nascimento com vida; (...)”. E no Art. 1º ao registrar que “(...) toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”.
Pessoa natural é, nesse sentido, a transposição ao âmbito jurídico
da qualidade humana36 e é ela quem adquire personalidade civil no momento
de seu nascimento com vida e, por conseguinte, a aptidão para ser sujeito de direito.
A existência da personalidade é que permite à pessoa ser capaz de direitos ou deveres. Ensina José de Oliveira ASCENÇÃO que conceito nada diz sobre a extensão dessa titularidade, se uma pessoa tem poucos ou muitos
direitos, mas somente que os pode ter37. Se for pessoa tem personalidade, e
somente quem é dotado de personalidade pode ser titular de direitos,
pretensões, ações e exceções e também de deveres, obrigações, ações e
exceções38.
É preciso destacar que personalidade se distingue de capacidade. A capacidade é um atributo da personalidade. Para José de Oliveira ASCENÇÃO, a capacidade é quantitativa. Esse autor define capacidade como a medida das situações jurídicas de que uma pessoa pode ser titular ou que pode atuar, pois “pode-se ser mais ou menos capaz, mas não se é mais ou menos pessoa”39.
Personalidade também não deve ser confundida com direitos da personalidade, uma vez que a distância jurídica entre eles é enorme. Enquanto personalidade é um valor jurídico derivado da condição de ser pessoa natural ou jurídica, os denominados direitos da personalidade, que serão analisados no próximo capítulo, são efetivamente direitos subjetivos próprios da pessoa natural, previstos em caráter exemplificativo na legislação e extensíveis, apenas parcialmente e, por analogia, às pessoas jurídicas.
Finalmente, a pessoa humana é sujeito, fundamento e fim do Direito.
Como sujeito de direito, evidentemente não se quer dizer que o ser humano é de forma exclusiva, porque outros entes também o são (como a pessoa jurídica obviamente), mas que não pode deixar de ser. Ele é sujeito de direito por excelência, pois apenas atuando na vida jurídica pode exprimir na vida social sua autonomia. Como fundamento e fim porque o Direito existe em consequência de ter sido uma criação do homem. É na realidade da pessoa que se encontra a justificação profunda do Direito e é para a realização da
pessoa que a ordem jurídica existe40.
38 Pontes de MIRANDA, Tratado de direito privado, Tomo I, § 48, 1, p. 245. 39 Op. cit., p. 116-117.
1.2.1. Características da personalidade
Sendo a personalidade a aptidão para ser pessoa, porque é o que reveste o sujeito de individualidade, o que lhe faz único, Rosa NERY destaca cinco características da personalidade, às quais denomina de atributos da
personalidade41, que à luz da Teoria Geral do Direito Privado permitem a
individualização da pessoa como sujeito de direito42.
Essas características são capacidade, status (estado), nome,
domicílio e fama. Todas elas fundem-se à pessoa de modo que sua individualização seja reconhecida, diferenciando-a dos demais membros da coletividade.
1.2.1.1. Capacidade
A característica da Capacidade é a possibilidade de a pessoa
adquirir ou de exercer direito e deveres; por vezes é confundida com o conceito de personalidade, mas como visto o conceito de personalidade refere-se à existência da pessoa, já capacidade é aptidão da pessoa para a realização de atos civis.
A capacidade pode ser de direito ou de fato. A capacidade de direito é a aquisição de direitos atribuída indistintamente a todas as pessoas. Capacidade de fato (ou de exercício de direito) não é própria de toda pessoa, mas apenas dos sujeitos de direitos que estão aptos para os atos da vida civil e para a maneira de exercê-los.
A capacidade de exercer direitos das pessoas jurídicas é plena, sem limitação, enquanto as pessoas físicas ou naturais poderão sofrer limitação em sua capacidade de exercício, de modo absoluto ou relativo em razão da idade
41 Também utilizam essa denominação Limongi FRANÇA, Manual de direito civil. v. 1, p. 145 e Louis JOSSERAND, Derecho Civil: Tomo I, v. 1. p. 193.
(Art. 3º, I e Art. 4º, I do CC) ou em razão de estado de saúde física ou mental permanente ou temporária, mais grave ou menos grave (Art. 3, II e III e Art. 4º, II, III, e IV do CC).
Ressalte-se que as hipóteses de limitação da capacidade de exercício da pessoa natural em nada afetam a sua personalidade, pois, o menor de idade, o enfermo que não puder exprimir sua vontade, o doente mental, o pródigo, o interditado civilmente, conservam integralmente sua individualidade.
A limitação da capacidade de exercício dessas pessoas, nessas situações, está no exercício de sua capacidade na vida jurídica, e para cada situação jurídica há uma solução jurídica possível (são representados ou assistidos, conforme seja a incapacidade absoluta ou relativa). Isso porque o exercício é limitado, mas não é restringido, uma vez que se houvesse restrição se atingiria a própria qualidade de pessoa. Nota-se que a capacidade é a regra, a incapacidade, exceção.
A capacidade se justifica como característica da personalidade, pois se fosse negada à pessoa, como sujeito de direito, a capacidade de adquirir direitos (e, por consequência, deveres) e de exercício de direitos, o resultado seria a negação da existência de pessoa no mundo jurídico. Nesse sentido, Rosa NERY aponta que a capacidade, assim como os demais atributos, está
intimamente relacionada com exercício, negação ou diminuição da cidadania43.
É esta condição de atributo que torna impossível à pessoa renunciar ou
declarar reduzida sua capacidade44.
1.2.1.2. Estado individual, familiar e político
43 Idem, p. 278.
A formulação do conceito de capacidade, no direito antigo, se organizou em torno do conceito de “status”45, pois quem reunia as qualidades
jurídicas específicas do status libertatis, do status civitatis e do status familiae
gozava de capacidade plena46. A falta desses estados acarretava a capitis
diminutio, máxima, média e mínima, respectivamente47.
Caio Mário da Silva PEREIRA explica que o estado da pessoa “relaciona-se com a personalidade, porque é uma forma de sua integração, e articula-se com a capacidade porque influi sobre ela48”, uma vez que o estado político importa para o exercício de direitos na ordem política, enquanto o estado civil interfere no exercício de direitos na ordem civil.
O estado (status) é característica da personalidade, que traduz a
qualificação jurídica da pessoa no grupo social no qual está inserida, seja no âmbito individual, familiar ou político.
As pessoas são qualificadas pelo seu estado individual (status
personalis)49 que corresponde à maneira de ser da pessoa quanto ao gênero (masculino/feminino), quanto à idade, que pode ser modificada pelo fator tempo (maioridade ou menoridade), quanto à saúde mental (livre de qualquer das hipóteses previstas nos arts. 3º e 4º do CC).
A qualificação do estado ocorre também pelo status familiae que
corresponde ao papel, ou melhor, papéis, que a pessoa exerce no núcleo familiar, derivado de fato natural, como o nascimento, ou de fato jurídico, como a adoção ou casamento. Esses papéis podem ser o de pai, mãe, filho, irmão, avô/avó, neto, tio, sobrinho, sogro/a, genro, nora, cunhado. Cada um desses papéis produz uma enorme gama de direitos e obrigações, assumidos pela
45 Rosa Maria de Andrade NERY, Noções preliminares de direito civil, p. 155. 46 Carlos Roberto GONÇALVES, Direito civil brasileiro: parte geral, p. 168. 47 Silvio de Salvo VENOSA, Direito civil: parte geral, p. 129.
48 Instituições de direito civil
: v. I, p. 265. No mesmo trecho o autor ensina: “O direito romano atentava para o fato de o individuo ser ou não cidadão, ou ser livre ou escravo, para conceder-lhe ou recusar-conceder-lhe a capacidade de direito, e a isto chamava-se status civitatis e status libertatis. O direito moderno indaga se o homem é casado, solteiro ou viúvo; se é separado ou divorciado, se é nacional ou estrangeiro(...)”.
pessoa em razão de estar em determinada posição jurídica ― assim como um filho tem direitos e deveres próprios dessa condição de filho e os pais direitos e
deveres inerentes a esse status50. As normas referentes ao estado familiar são
próprias do direito de família, mas repercutem no direito das coisas, das obrigações e das sucessões.
Maria Helena DINIZ destaca que os efeitos dos estados individual e familiar são de grande importância, a ponto de o Art. 9º do CC exigir o registro público, de nascimento, casamento, óbito, emancipação, interdição e de sentença declaratória de ausência e de morte presumida, e o Art. 10 requerer a
averbação em registro público de alterações dessas situações51.
A qualificação da pessoa também ocorre pelo estado político (status
civitatis) que identifica a pessoa perante a ordem política, em seu estado de nacional, estrangeiro ou apátrida, ou, ainda, de nato ou naturalizado. A
identificação do status político da pessoa diante do Estado influi na sua
condição de ser ou não cidadão, estabelecendo direitos e obrigações referentes à situação exercida.
Sendo o estado individual, familiar e político um atributo da personalidade, portanto vinculado à condição de pessoa, ele é indivisível, indisponível e imprescritível. Indivisível porque a pessoa está impedida de ser titular simultaneamente de condições incompatíveis, como ser maior de idade e menor de idade; ser casado e solteiro; ser brasileiro e estrangeiro (salvo exceção legal da dupla nacionalidade). Indisponível, pois a pessoa não pode renunciar ou transacionar sua condição de filho, de brasileiro etc. É possível apenas a modificação que, todavia, não é arbitrária, visto que sempre ocorrerá na maneira prevista por lei. Finalmente é imprescritível, uma vez que a inércia da pessoa no tempo em nada interfere na aquisição ou perda do estado que lhe compete, por exemplo, uma vida de décadas em união estável, não altera o
50 Rosa Maria de Andrade NERY, Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado, p. 280.
estado das pessoas para casado porque a celebração do casamento é ato essencial e solene de validade. Outro exemplo: o estado de filho pode ser
pleiteado em qualquer tempo52.
O estado como elemento integrante da personalidade nasce com a
pessoa e com ela desaparece, por ocasião de seu falecimento53, podendo ser
modificado apenas de acordo com a lei.
PONTES DE MIRANDA relata que houve quem classificasse o “status” como um direito da personalidade, contudo a qualificação da pessoa quanto à nacionalidade, à cidadania, ao estado civil, à filiação, não se irradia da sua natureza humana, mas de fato jurídico. Exemplifica o autor: “(...) se o exposto nunca veio a conhecer a sua origem, paterna ou materna, nem por isso se pode entender que algo perdeu da sua pessoa”, ou “tão-pouco perde em sua pessoa o que nasce sem pátria, ou fica sem pátria: o apátrida é pessoa, como o que tem pátria”54. Ou seja, ainda que não se conheça
ascendentes ou nacionalidade a que pertence a pessoa, inalterável a sua natureza humana suporte fáticos dos direitos da personalidade.
Portanto, o “status” prende-se à personalidade como característica desta, e não aos denominados direitos da personalidade, que se referem à natureza da pessoa.
1.2.1.3. Nome
PONTES DE MIRANDA explica: “(...) o direito ao nome é atribuído à
pessoa ― possibilidade de ser sujeito de direitos e deveres exige que se adote e se tenha direito ao nome. Se esse direito implica o uso exclusivo, ou se apenas dá pretensão e ação a não ser lesado por nome igual, depende do sistema jurídico”55. Muito embora os recursos linguísticos sejam limitados para
52 Caio Mário da Silva PEREIRA, Instituições de direito civil: v. I, p. 266 e 267.
possibilitar um nome único para cada indivíduo, é por meio dele que a pessoa é individualizada.
O nome das pessoas naturais compreende o prenome, o sobrenome e o agnome, se houver. O prenome é a identificação individual, o sobrenome a identificação da família, da origem familiar do indivíduo; e o agnome, utilizado para distinguir parentes que possuem o mesmo nome (prenome e sobrenome), por exemplo “júnior”, “neto”, “sobrinho”.
Limongi FRANÇA explica ainda que o nome seja escolhido apenas no momento do registro do nascimento; o rebento é identificado, chamado, denominado de algum modo, como “bebê”, “nenê”, e nas maternidades como “a criança número tal" ou “a criança Tal (nome da mãe)”, sem o que muitas das suas atividades essenciais para garantir-lhe ao próprio direito à vida (como alimentação, higiene, tratamento médico) não podem ser atendidas de modo regular56.
A doutrina ensina que, por ser característica da personalidade, o
nome é inalienável, imprescritível, portanto protegido judicialmente57. Todavia,
a compreensão do nome como característica da personalidade, parte da percepção de que o sujeito está impedido de renunciar a ser nominado, pois o nome tem função identificativa.
A função identificativa do nome não implica que o nome seja em si imutável e inalterável. Alteração do prenome, do sobrenome ou do nome completo é possível, nos termos da legislação específica ou no caso de ato ilícito como utilização de nomes falsos. Há sempre a necessidade de um nome qualquer, o sujeito deve ser identificado de alguma maneira.
A esse respeito há um exemplo curioso, ocorrido em 1993 com o cantor norte-americano Prince, que travou uma briga judicial em defesa dos direitos de suas músicas com a Warner Bros., gravadora que comercializava o trabalho dele. Em razão desse conflito, Prince mudou seu nome para um
56 Limongi FRANÇA, Do nome das pessoas naturais, p. 139.
símbolo impronunciável, que unia caracteres masculinos e femininos. Pelo fato
de não ter como pronunciar o símbolo, o cantor exigia que o chamassem de “o
artista anteriormente conhecido como Prince” ou de “o Artista”, e somente voltou a utilizar seu nome em 16 de maio de 2000, quando o seu contrato com
a gravadora expirou58. Esse período foi o de menor sucesso comercial da
carreira do cantor, talvez pela falta de nome. De qualquer forma, apesar da excentricidade e contrariando a vontade do cantor, ele continuou a ser Prince nesse período, mesmo que não atendesse a quem assim o chamasse.
O nome é a designação ou sinal exterior pelo qual a pessoa
identifica-se no seio da família e da sociedade59. O nome independe da
vontade da pessoa, que o adquire com o nascimento e o carrega consigo até seu falecimento. Em suma, não há pessoa sem nome.
1.2.1.4. Domicílio
O domicílio constitui uma característica da personalidade, porque a
dimensão espaço60 é inerente à existência da pessoa, a existência não ocorre
no vazio, no nada. A pessoa está sempre em algum lugar e apenas em um
58“Prince Roger Nelson (nascido em 7 de junho de 1958, em Minneapolis, nos Estados Unidos) é um multi-instrumentista, músico e dançarino. Sua música mescla diversos gêneros musicais como funk, R&B, soul, new wave, jazz, rock psicodélico, pop, hip hop. Foi considerado o 33º melhor guitarrista de todos os tempos pela revista norte-americana Rolling Stone. Prince tem a habilidade de juntar elementos de todos estes estilos musicais fazendo uso de sintetizadores e bateria eletrônica, desde o início de sua carreira, no fim dos anos 70, tornando conhecido o som de Minneapolis, que influencia muitos artistas até hoje. Já vendeu mais de 100 milhões de álbuns em todo o mundo. O álbum duplo Sign O’The Times, lançado em 1987, entrou para a lista dos 100 melhores álbuns de todos os tempos da Rolling Stone e da revista Time, sendo eleito o melhor dos anos 80. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Prince>. Acesso em: 30 de janeiro de 2013.
59 Carlos Roberto GONÇALVES, Direito civil brasileiro, vol. 1 p. 148. 60 Conforme ABBAGNANO, no Dicionário de Filosofia
lugar. A essa dimensão espacial da pessoa deu-se no campo jurídico a denominação de domicílio.
A sua importância encontra origem na Antiguidade, momento no qual se exigia que o cidadão, para poder participar dos assuntos do mundo,
deveria possuir uma casa, um lugar que fosse propriamente seu61.
O domicílio é definido pelo direito romano como o local onde alguém
constitui o seu lar, bem como a sede de seus negócios62. É, em linguagem
mais moderna, “(...) a sede jurídica da pessoa, onde ela se presume presente para efeitos de direito e onde exerce ou pratica, habitualmente, seus atos e negócios jurídicos63”.
A normatização do instituto no Brasil está no Código Civil de 2002, nos artigos 70 a 78, que dispõe sobre o domicílio da pessoa natural e jurídica, da mudança, das espécies - voluntário, legal (necessário) e de eleição. O instituto produz consequências em diversas áreas do direito, tanto na esfera material quanto processual.
Prescreve o artigo 70 do Código Civil de 2002: “(...) o domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo”. Segundo Carlos Roberto GONÇALVES o conceito de domicílio civil se compõe de dois elementos: “(...) o objetivo, que é a residência, mero estado de fato material; e o subjetivo, de caráter psicológico, consistente no ânimo
definitivo, na intenção de aí fixar-se de modo permanente64”. O conjunto desses
dois elementos forma o domicílio civil.
O aspecto que se quer ressaltar, no entanto, é o de compreendê-lo como característica da personalidade. A fixação espacial da pessoa independe de sua disposição de vontade, tanto que, mesmo que não tenha residência
61 Hannah ARENDT, A condição humana, p. 35. A autora alerta, no entanto, que o sentido não é de riqueza, de propriedade, mas de limites entre esfera pública e privada.
62“Ubi quis larem rerumque ac fortunarum suarum summan constituit” in Caio Mario da Silva PEREIRA, Instituições de direito civil: v. I, p. 369.
habitual ― por ser nômade, como os ciganos, ou desprovido de recursos, como os moradores de rua, ou, ainda, porque passa a vida viajando, sem um ponto central de negócios ―, terá por domicílio o local em que for encontrada (Art. 73 do CC e Art. 94, §2º do CPC). Conclui-se que toda pessoa possui domicílio, pois sua existência ocupa um espaço.
1.2.1.5. Fama
Toda pessoa traz consigo características e qualidades que a tornam única e irrepetível, porque a individualizam.
Individualizar significa diferenciar, tornar singular. A singularidade de cada pessoa é composta de infinitos elementos que conjuntamente a identificam, a fazem única e a tornam conhecida em seu ambiente social. A este conjunto de traços distintivos dá-se o nome de fama.
A fama tem assim a função de fazer alguém ser conhecido ou reconhecido por suas características (qualidades, defeitos, méritos), singularizando-o. É, portanto, mais um critério de identificação do sujeito, juntamente com a capacidade, o estado, o nome e o domicilio, compõe o conjunto das características da personalidade.
A fama, como atributo da personalidade, não se confunde com a fama no sentido de reputação. Como atributo da personalidade, ela limita-se a
identificar o sujeito, por exemplo: “Fulano da Silva, empresário do ramo
agropecuário...”. Quando se passa a qualificar a pessoa de Fulano da Silva referindo à sua fama (reputação) de bom ou mau empresário, pode-se atingir a integridade moral ou profissional dessa pessoa, causando-lhe prejuízos tanto morais quanto materiais.
chamados direitos da personalidade, pois adquirirá o caráter de objeto, pois se
referirá à natureza do homem, à humanidade do ser, como a autoestima65.
1.3. Natureza humana
A fim de fixar parâmetros para o trabalho que aqui desenvolvemos, importa conhecer e identificar a natureza humana, pois reconhecer que o homem (ser humano) é pessoa não explica, todavia, o que significa ser homem, ou, de outro modo, o que significa o ente com a natureza humana. A compreensão do significado do que seja ser homem não se encontra no sentido de pessoa, mas no de natureza humana.
Saber em que consiste a natureza humana é mais uma das contribuições tomistas à história do pensamento filosófico. Tomás de AQUINO ensina que a natureza é a diferença específica que informa cada coisa. Conhecer essa diferença é conhecer a natureza do objeto, e a função da
natureza é a de completar a definição da coisa66.
Desse modo, compreender a natureza humana importa para determinar o que faz o homem ser homem (ou ser humano, se assim se preferir), ou, em outras palavras, o que no homem o diferencia de Deus e dos demais seres vivos, “o que” o caracteriza.
Na concepção aristotélica, Natureza é o movimento que todas as
coisas existentes possuem67, sendo “ao mesmo tempo, término e princípio do
movimento que resulta naquilo ‘que nasce’, ‘que é gerado’”68. Tomás de Aquino
recupera esse sentido de movimento, de agir para um fim, para explicar que
65 Rosa Maria de Andrade NERY, Noções preliminares de direito civil, p. 160.
66 Tomás de AQUINO, Suma teológica: Parte I – Questões 1 a 43, q. 29, a. 1, r. 4, p. 524. 67
As expressões “Permitir a ação da natureza”, “Entregar-se à natureza” ou “Seguir a natureza” decorrem desse conceito, conforme o verbete “Natureza” do Dicionário de Filosofia, de Nicola ABBAGNANO, p. 814.
natureza é o que age para que o ser realize seu fim69. Para que seja o que se é, causa e fim.
Assim, dizer “natureza” é revelar o que é, ou qual é a essência do ser.
Para Tomás de Aquino, ser significa existir70. Existir em uma forma,
para que se situe esse ser em uma espécie determinada, e existir no ato que lhe dá origem, na sua essência. O que significa que cada ente tem sua própria essência e que deve existir conforme essa essência.
Mas natureza e essência são conceitos distintos. A essência que existe do ser é estática, enquanto a natureza como “aquilo que age” é dinâmica. Daí que os conceitos se complementam para significar que cada ente deve agir de acordo com a sua natureza, com seus limites, suas
particularidades, suas possíveis deficiências71.
A natureza humana é um composto de matéria e forma. Matéria significa, no sentido aristotélico, “puro princípio de indeterminação, de pluralidade e de dispersão72”, matéria pode ser assim qualquer coisa. Já forma significa “princípio de determinação, de atualização e de especificação”73. A
forma é no ser vivo o princípio vital que dá à matéria específica unidade, autonomia e espontaneidade, que faz com que deixe de ser indeterminada.
A concepção tomista de que o homem é um composto de matéria e forma é a aplicação ao ser humano do hilomorfismo grego, que afirma que tudo
que é compõe-se de matéria e forma74. Nesse sentido, uma não existe sem a
outra; para a existência de uma coisa qualquer é necessário a união da matéria
69 Marie-Joseph NICOLAS, Verbete: Natureza..., p. 88.
70 Marie-Joseph NICOLAS, Verbete: Ser (Esse, ens)..., p. 97.
71 Maire-Joseph NICOLAS, Introdução à Suma teológica, In Suma teológica: teologia, Deus, Trindade. V. 1. Parte I – Questões 1- 43, p. 43.
72 Maire-Joseph NICOLAS, op. cit., p. 46 e Nicola ABBAGNANO, verbete Matéria, in Dicionário de Filosofia, p. 744.
73 Maire-Joseph NICOLAS, idem, ibidem.
com a forma. Transportando essa ideia de hilomorfismo para compreender a natureza humana, significa que, como um composto de matéria e forma, o ser humano não é apenas uma coisa ou outra, ele é a unidade de matéria e forma.
O homem é corpo75 e espírito.
De modo que “quando o homem pensa, é o composto inteiro que pensa, embora seja pela atividade própria e espiritual da alma que, pensando, se torna livre da matéria que ela informa, mas não a ponto de abrir mão dela e das atividades de que é inseparável”76.
Ao explicar a intrínseca relação entre esses dois elementos, Edvino A. RABUSKE comenta: “(...) é difícil encontrar a terminologia adequada. Não posso dizer simplesmente: ‘eu sou o meu corpo’, porque sou mais que isto. Também não é exato dizer: ’Eu tenho um corpo’. O verbo ‘ter’ não é apropriado para exprimir a relação de transcendência e de imanência do espírito com o corpo. Igualmente é insuficiente falar em ‘expressão ‘ ou ‘verbalização’: que o espírito ‘se exprime’, ‘se verbaliza’ no corpo”77.
Para Tomás de Aquino, espírito significa consciência e liberdade (livre-arbítrio). Consciência é conhecer e pensar, para compreender o ser em sua amplitude, e por consequência, amar. Liberdade é ser livre para agir e querer. De modo que, por meio de atos intelectivos e volitivos, o espírito humano se manifesta.
Como ato intelectivo, a antropologia aponta a consciência, que se caracteriza pela percepção do “eu”, que simultaneamente percebe que não é o outro ― essa consciência produz o conhecimento que se realiza pelo ato de pensar. Mas não é apenas a consciência e o pensamento que definem o
75 Para José de Oliveira ASCENSÃO corpo humano é tudo o que é expresso pelo mesmo genoma. (Dignidade da pessoa e o fundamento dos direitos humanos, In: Revista Mestrado em Direito, p. 88).
76 Maire-Joseph NICOLAS, op. cit., p. 47.
espírito, pois ele também se manifesta pela vontade, e a característica
fundamental da vontade é a liberdade78.
Assim, a natureza humana é espiritual, pode pensar e é livre para
agir. Muito diferente das outras naturezas, como a dos animais e vegetais79,
que não possuem escolha e, assim, estão fadadas a agir conforme sua
natureza. Conclui, então, Maire-Joseph NICOLAS: “(...) daí vem que a natureza
humana, mesmo única e constante nas pessoas e através dos tempos, é capaz de diversificações mais profundas que as das naturezas puramente materiais”80.
Possuir consciência e liberdade permite ao homem escapar do determinismo do universo, porque ele é responsável pelo seu próprio destino, e esta diferença específica o distingue dos animais. Graças à razão e à liberdade, o homem é o único ser dotado de inteligência e vontade capaz de, a partir da sua interioridade, buscar e realizar os valores que sua natureza lhe
permite realizar81. Essa diferença específica faz com que o homem seja
pessoa.
Mas o que faz do homem ser humano? Se, para os estudos
tomistas, pessoa é o que há de mais perfeito em toda a natureza82, e, por isso,
é o nome que cabe para designar Deus, o que faz a pessoa humana ser humana?
A resposta encontra-se também na natureza, nessa diferença específica que caracteriza o homem como o ser a se realizar, o homem em toda a sua magnífica imperfeição.
78 Edvino A. RABUSKE, Antropologia filosófica: um estudo sistemático, p. 68 e 87.
79 Na concepção aristotélica-tomista todos os seres vivos são matéria e forma, mas como explica Maire-Joseph NICOLAS no animal a forma é um princípio psíquico, que dá lhe a sensibilidade, a aptidão para captar as qualidades das coisas sem ser modificado por elas, mas também sem retirá-las de seu condicionamento material. Enquanto no homem a forma é espiritual. (Introdução à Suma teológica, In Suma teológica: teologia, Deus, Trindade. V. 1. Parte I – Questões 1- 43, p. 46.).
80 Op. cit., p. 48.
81 Jacy de Souza MENDONÇA, Introdução ao estudo do direito, p. 180.
Como demonstrado nos parágrafos anteriores, o homem é composto de duas substâncias incompletas: espírito (anima, psique, eu, consciência) e matéria (corpo). A união dessas substâncias forma o ser humano, é essa sua natureza. E é tal união de espírito/matéria que possibilita a vida, o movimento, ele é o que é (causa), e o que se torna (fim).
Tornar-se o que já se é, é ser em essência ou ter a potência (a
faculdade, a capacidade)83 de ser.
As potências, conforme a classificação, podem ser vegetativa,
sensitiva e intelectiva. A potência vegetativa corresponde ao poder de nutrição,
crescimento e procriação dos seres vivos; a potência sensitiva é própria dos
animais e compreende a sensibilidade ― sensação, percepção, imaginação e
memória; e a potência intelectiva abrange atenção, ideia, juízo e raciocínio. A
potência sensitiva realiza-se em atos de instinto, prazer e dor, já a potência
intelectiva realiza-se em atos de vontade (apetite e desejo) e de intelecto, propriamente dito.
Evidentemente que no ser humano todas as potências (vegetativa, sensitiva e intelectiva) estão presentes, porque é um ser vivo (potência vegetativa), porque pertence como espécie ao reino dos animais (potência sensitiva), mas é a potência intelectiva, como potência característica dos seres humanos, que o faz o ser admirável que é. A vontade como ato da potência intelectiva tem como propriedade essencial a liberdade. O que significa que o ser humano ao ser livre para conhecer, agir e querer tornar-se aquilo que já é, cumpre com sua natureza.
Assim, o que há de mais humano no homem é ser em potência, é ser um ser a se realizar. Destaca-se que a potência é potencialmente infinita, mas cada homem está de algum modo limitado em sua potência. De modo que para a compreensão da natureza humana é necessário entender que ela somente se realiza na pluralidade, em si ilimitada, de indivíduos.
83
2. DIREITOS DA PERSONALIDADE
No capítulo I, destacou-se que o sujeito de direito para atuar no mundo jurídico é individualizado pela capacidade, nome, estado, domicílio e fama. Esses elementos característicos da personalidade referem-se à pessoa, em outras palavras, ao ente dotado de personalidade.
A proposta do presente capítulo é analisar o sentido daquilo que a doutrina identifica como Direitos da Personalidade.
2.1. Considerações sobre direitos da personalidade, direitos humanos e direitos fundamentais
Os direitos da personalidade são direitos inerentes à pessoa em
razão de sua natureza84 humana, sendo o seu bem jurídico o resguardo da
natureza humana nas relações privadas. O valor que fundamenta os direitos da personalidade é a dignidade da pessoa humana.
O conteúdo dos direitos da personalidade insere-se nos direitos
fundamentais e nos direitos humanos85. Embora sustentem seu fundamento no
mesmo valor que os direitos da personalidade, com ele não se confundem86.
A denominação “direitos humanos” se refere aos documentos de direito internacional que tratam da regulação da proteção da dignidade humana no âmbito internacional, no qual a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 é exemplo máximo, pois inaugurou uma época em que se tornou
84 Roberto Senise LISBOA, Manual de direito civil: teoria geral do direito civil, v. 1, p. 204. 85 Francisco AMARAL, Direito Civil: Introdução, p. 285; Anderson SCHREIBER, Direitos da personalidade, p. 13.
possível implementar mecanismos jurídicos de proteção à pessoa humana em
face da soberania do Estado87.
Já a denominação “direitos fundamentais” é utilizada para designar os direitos positivados, que tratam desse conteúdo, no texto constitucional de um determinado Estado; é a terminologia apropriada para tratar da proteção da
pessoa humana no plano interno, no âmbito do direito constitucional positivo88.
Direitos fundamentais são todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, por seu conteúdo e importância, foram previstas constitucionalmente, ou que, como ensina Ingo Wolfgang SARLET, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se também à
Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal89.
Os direitos fundamentais são fundados no pacto constituinte e limitam o poder das maiorias parlamentares para qualquer alteração normativa que o atinja, enquanto os direitos humanos são direitos supraestatais, com validade universal, e são vinculativos até mesmo em relação às maiorias
constituintes90.
A distinção entre direitos fundamentais e direitos de personalidade é destacada por José de Oliveira ASCENSÃO ao afirmar que não há
equivalência entre os direitos91, pois cada um tem uma preocupação diferente.
O texto constitucional, por sua vez, tem em vista a posição do indivíduo em face do Estado, o direito da personalidade atende às emanações da natureza humana em si.
Quanto à abrangência dos direitos fundamentais e da personalidade é preciso observar que o catálogo dos direitos fundamentais contempla proteção a outros bens de caráter patrimonial (por exemplo, direito de herança e direito de propriedade) ou de caráter coletivo (como o direito de greve), que
87 Ingo Wolfgang SARLET, op. cit., p. 29. 88 Anderson SCHEIBER, op. cit., p. 13. 89 Ingo Wolfgang SARLET, op. cit., p. 77. 90 Ingo Wolfgang SARLET, op. cit., p. 30.